Sobrenome Moradia

Ela perdeu a casa que tinha, agora luta por moradia digna para todos na favela: 'Direito inegociável'

Tereza Novaes (texto) e Matias Maxx (fotos) colaboração para Ecoa, do Rio de Janeiro (RJ) Matias Maxx/UOL

No começo deste mês, uma mulher negra circulava por Brasília. Estava ali para ver a posse do novo presidente. Também assistiu Anielle Franco e Sonia Guajajara se tornarem ministras. Nas redes sociais, compartilhou os encontros que teve com pessoas como Gil do Vigor e Fátima Bernardes.

E em todas as ocasiões, carregava o boné CPX, que ficou famoso após ter sido usado por Lula em uma visita ao Complexo do Alemão (RJ) durante a campanha de 2022.

Era Camila Santos, de 37 anos, mais conhecida como Camila Moradia — nome que adotou por toda a luta que vem travando nos últimos anos em busca de casa para quem não tem.

Nesse dia, Camila fez questão de mostrar que não batalha sozinha e pediu para que outras mulheres da comunidade assinassem a camiseta que vestia. "Quis homenagear quem veio antes de mim, quem luta aqui há muitos anos por melhores condições para todos", conta a Ecoa.

Matias Maxx/UOL
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Antes de ser Moradia

A história de luta de Camila começou ainda cedo. Aprendeu tudo que sabe sobre cobrar por seus direitos com a própria mãe.

"Quando era criança, frequentava uma creche, e lá distribuíam leite para os alunos. Só que em algum momento, isso foi interrompido. Lembro da minha mãe se reunindo com outras mulheres para descobrir quem tinha desviado o leite e onde elas iam cobrar para que ele voltasse. De maneira geral, eu sempre estive envolvida na luta por direitos, mas algumas questões nos atravessam mais: o racismo, porque nós somos todos negros, e a pobreza também", conta.

Por cerca de oito anos, ela morou na Favelinha da Skol, no Complexo do Alemão, em uma estrutura com três prédios onde antes funcionava uma cervejaria. O local era precário, com esgoto a céu aberto correndo no meio dos barracos de madeira.

"Muitas pessoas do Complexo que não tinham onde morar ou que pagavam aluguel foram para lá. Era um local de risco, onde havia muitos acidentes envolvendo queda. Um primo meu, de quatro anos, caiu no esgoto e foi a óbito", recorda.

Em 2011, no entanto, o governo estadual retirou as cerca de 600 famílias do local com a promessa de que elas ganhariam uma casa.

A promessa era a de que em um ano e meio novas habitações ficariam prontas. Como as obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) já estavam acontecendo em algumas regiões, então, não houve resistência, os moradores confiaram na promessa, saíram de lá e começaram a receber o aluguel social de R$ 400.

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A luta pelo prometido

O tempo, no entanto, passou, Pezão virou governador e se reelegeu em 2014, mas não havia nenhum sinal de obras. "O terreno virou um lixão. Eu não era da associação, mas sempre ia lá perguntar e nada acontecia. Até que surgiu uma história de que nesse terreno seria construída uma universidade. Isso me despertou: 'Ali é para construir nossa moradia!'"

Camila então passou a brigar pelo que lhe foi prometido: uma casa. E não só para ela, como também para outras famílias que até hoje estão na mesma situação.

Um episódio exemplifica muito bem como a moradia é um problema crucial para essas pessoas. Era 2015, quatro anos após a remoção, quando uma audiência pública foi marcada no Complexo do Alemão para falar sobre segurança.

Camila conta: "Como a gente sempre faz, nos reunimos e tivemos a ideia de, dentro dessa audiência onde haveria vários parlamentares, abordar outros temas, como a habitação. Poucos dias antes do encontro, assumi a mobilização, através das redes sociais, explicando que já havia passado muito tempo e que nós estávamos sendo enganados. Por incrível que pareça, as pessoas lotaram esse espaço mais pela questão da moradia do que da segurança."

O grupo não conseguiu falar, mas fez barulho e começou a ganhar espaço. Surgiu ali a ideia de ir até o terreno para gravar vídeos denunciando.

Desde desse dia, eu surgi como uma das pessoas que estão no movimento de moradia. Foi quando eu me tornei uma ativista de fato. Essa história não é só dessas pessoas, é uma história minha: eu tinha uma casa, fui removida e agora estou no aluguel. É um processo meu também.

Camila Moradia, ativista

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Além de moradia

Embora o episódio da remoção e seus anos de engajamento tenham sido fundamentais - renderam inclusive o "sobrenome" Moradia, que Camila adotou -, ela ampliou sua atuação e criou o Mulheres em Ação no Alemão (MEAA), movimento que ajuda mulheres em situação de vulnerabilidade e que já acolheu 400 delas.

Atendimento psicológico para as crianças, reforço escolar, aulas de inglês e de artesanato, além de encontros para promoção de autocuidado são algumas das atividades do projeto. Há também distribuição de cestas básicas, e os custos são bancados com a ajuda de madrinhas, em geral, mulheres da zona sul.

"Temos consciência que somos vítimas, que somos extremamente vulneráveis, ainda mais no nosso caso específico, como mulheres negras. Mas não queremos ocupar esse lugar. A nossa luta é para não permanecer nesse lugar."

Por causa desses dois trabalhos, Camila ganhou o Front Line Defenders 2021, prêmio concedido por uma entidade irlandesa que tem como objetivo proteger defensores de direitos humanos.

Ela também se articula com mulheres de outras favelas e, em nome delas, convidou, pelo Twitter, a primeira-dama Janja para um encontro com bolo e café no Complexo do Alemão. A resposta foi positiva e a expectativa é que o encontro aconteça logo.

Ecoa conversou com Camila Moradia em uma das seis estações do Teleférico do Alemão, que liga os pontos mais altos da comunidade, custou mais de R$ 253 milhões e funcionou por apenas dois anos, até 2016.

Atualmente, há uma reforma em curso, com orçamento total de mais de R$ 170 milhões, para reabri-lo. Em março passado, durante o anúncio dessa obra, Camila interrompeu a cerimônia para exigir que as casas prometidas, inclusive para as famílias desalojadas pela instalação do teleférico, fossem entregues.

"Nós não vamos morar no bondinho!", gritou na ocasião. A cena foi filmada e viralizou nas redes sociais. O governador Cláudio Castro (PL), que se reelegeu no primeiro turno, estava presente.

A intervenção fez com que Camila conseguisse iniciar um diálogo com o então secretário de obras do governo, Max Lemos, e uma licitação para a construção das moradias foi antecipada para o mesmo dia.

Ela é uma liderança superativa, que eu conheço há muitos anos. Por causa do trabalho dela de luta por moradia digna, ela já conhecia muitas mulheres e começou a trabalhar com elas. Nos aproximamos no início da pandemia, em 2020, quando criamos o gabinete de crise do Alemão, para mobilizar recursos.
Rene Silva, jornalista e criador do Voz das Comunidades

Érica Martin/TheNews2/Folhapress
Em março de 2022, Camila Moradia fez protesto durante evento de retomada das obras do teleférico do Complexo do Alemão

O episódio rendeu ainda uma enxurrada de ameaças. "Depois que eu tive esse atrito com o governador, foram mais de quarenta, muitas ameaças em rede social. Acontece pessoalmente também, com gente colocando o dedo na minha cara."

Camila não é contra o teleférico, pelo contrário. Apontando para as estações no horizonte, a ativista mostrou à reportagem de Ecoa a importância do transporte voltar a funcionar: uma clínica da família poderá ser reaberta e as crianças de um ponto mais distante terão acesso à escola em 15 minutos, em vez de 1 hora andando por vielas.

Mas ela insiste: é preciso resolver também, e com urgência, a questão da moradia digna para todos na região.

Muito articulada e com conhecimento da legislação, Camila pretende ainda ingressar na faculdade de direito. "Não tenho outra opção de curso", diz, com consciência de sua importância para o movimento.

Matias Maxx Matias Maxx

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Matias Maxx/UOL

Mãe de três crianças, ela também já cogitou entrar para a política institucional, principalmente para fazer diferença na sua pauta.

"Não vejo parlamentar que lute pela moradia. Mas tenho três crianças e sou defensora de direitos humanos. Estamos no Brasil, um dos países que mais mata mulher e defensores dos direitos humanos, onde as mulheres parlamentares não são respeitadas, nem existe uma legislação para garantir a segurança delas".

No movimento por moradia, aliás, há um grande protagonismo feminino, com outras lideranças como Carmen Silva, do Movimento dos Sem-Teto do Centro, de São Paulo, e Jurema Constâncio, da União Nacional por Moradia Popular.

"São elas que estão ali buscando sustento da famílias. O protagonismo é nosso primeiro por conta da nossa resistência, porque não vamos nos vender por, de fato, acreditar no movimento", afirma.

Depois de muita luta, Camila postou no Instagram as primeiras fotos das obras de sua futura casa. Na legenda, escreveu:

Me pego pensando sobre o quanto lutar vale a pena e que direitos são inegociáveis. É muito gostoso poder ver isso. Não há prazer maior em saber que ainda estamos passando pelo processo, mas já é possível enxergar o início do propósito.

Camila Moradia, ativista

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