TV que educa

Cao Hamburger: "Teria colocado mais representatividade no 'Castelo Rá-Tim-Bum', mais personagens negros"

Matheus Pichonelli Colaboração para Ecoa, de Campinas (SP) Danilo Verpa/Folhapress

Quase quatro décadas depois, Carlos Império Hamburger, 58, ainda se lembra de um certo domingo de páscoa em que almoçou com a família da mãe, formada por italianos católicos, passou a tarde com os tios, alemães judeus do lado do pai, e à noite foi ensaiar na bateria de uma escola de samba em São Paulo.

"Essa mistura toda é a riqueza do Brasil. A sua grande riqueza é a sua diversidade cultural e a gente tem que valorizar muito isso", diz o autor, produtor e diretor de cinema e TV, por telefone, à Ecoa.

A palavra diversidade não tinha o alcance que tem hoje quando, sob o impacto do sistema operacional Windows, criado pela Microsoft, Cao Hamburger idealizou um programa infantil para a TV construído a partir de janelas em um mundo que se abria. "Castelo Rá-Tim-Bum", que se tornaria um clássico da TV Cultura e formaria uma geração, foi o resultado de uma escolha consciente: a de fazer um retrato da diversidade do Brasil, com protagonismo feminino, personagens negros e representantes das culturas indígenas.

"Acho que a gente representou bem, foram personagens importantes", relembra o diretor paulistano, para quem "a nossa consciência foi ficando mais forte" de lá pra cá. Tanto que, se pudesse, hoje escolheria mais dois personagens negros para levar mais equilíbrio ao Castelo do Tio Vitor e da bruxa Morgana.

As marcas desse Brasil diverso estão presentes também em outros trabalhos do diretor, como a série "Filhos do Carnaval" e a produção recém-lançada pela GloboPlay "As Five", um spin-off de "Malhação, Viva a Diferença", também dirigida por Cao.

A nova série, que Hamburger finalizou remotamente por causa da pandemia, traz à dramaturgia os dilemas da geração centennial, que ele chamava de "geração ressaca" e que acaba de entrar na vida adulta com as expectativas frustradas diante de um mundo em crise e que agora se fecha. "Isso para a dramaturgia é muito interessante. É uma coisa que o mundo está vivendo", diz.

Filho de cientistas, Cao Hamburger tem acompanhado com apreensão o que chama de "obscurantismo" do contexto político. Ele lamenta também a ausência de programas de qualidade voltados para o público infantil na TV aberta. "É muito ruim. É uma pena."

Para ele, que diz não acompanhar a produção de youtubers que viraram hit entre as crianças, a TV aberta deveria ter a responsabilidade social em um contexto em que o acesso à internet e à TV a cabo é ainda limitado.

"A justificativa das televisões para terem tirado a programação infantil é o endurecimento das leis. Eu não sei se é verdade ou não é", diz.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

Ecoa - Em que etapa estava a série "As Five" quando veio a pandemia?

Cao Hamburger - Estava começando a escrever a segunda temporada e terminando de escrever a primeira. A edição dos últimos episódios foi remota. Tivemos sorte porque não tinha mais filmagens e conseguimos manter um trabalho de edição, finalização e escrita com todo mundo trabalhando remotamente. Ainda estamos trabalhando de casa, fazendo reuniões por videoconferência. Ainda bem que existe essa tecnologia, mas não é a mesma coisa. Sinto falta das reuniões presenciais, mas eu e a equipe preferimos assim.

Nas suas produções mais recentes a ideia de diversidade está muito presente. Isso já era discutido e pensado no começo dos anos 1990, quando idealizaram o "Castelo Rá-Tim-Bum"?

Isso já vem desde muito tempo. Acho um pouco pelo fato de eu ser de família misturada. Do lado do pai sou de família judaica alemã. Da mãe, italiano católico. Meus pais sempre foram muito abertos. Tivemos uma educação muito voltada para a diversidade. Em todos os níveis, inclusive religiosos. Por conta da tremenda desigualdade no Brasil, tive a convivência, que é um dos privilégios da classe média, de ter empregada doméstica. No meu caso, e na maioria dos casos, foram pessoas negras e muito importantes para nossa formação. A dona Maria e a dona Das Dores foram pessoas muito importantes.

Vivi num caldeirão diverso. O Brasil é um caldeirão diverso e vivi isso intensamente. Depois estudei em escola pública no começo da infância. Tem um domingo da minha juventude, e eu tinha lá meus 18, 19 anos, que ilustra bem esse caldeirão. Era uma páscoa, então eu fui almoçar na páscoa italiana com minha família italiana, fui na casa dos meus tios judeus no final da tarde e à noite fui para uma escola de samba ensaiar. Eu tocava na bateria. Essa mistura toda é a riqueza do Brasil. A sua grande riqueza é a sua diversidade cultural e a gente tem que valorizar muito isso.

No caso do "Castelo Rá-Tim-Bum", isso já estava consciente?

No "Castelo Rá-Tim-Bum" tinha, entre os personagens negros, a Biba, que era a criança, o Bongô, personagem ligado à música, que era entregador de pizza, e o Doutor Abobrinha, que era o vilão. E tinha a caipora, que era indígena, vivia nas matas. Acho que a gente representou bem. Foram personagens importantes. Era muito consciente. Queríamos representar a diversidade do Brasil. Mas acho que a nossa consciência foi ficando mais forte. "O ano em que meus pais saíram de férias" tem essa coisa dos judeus, dos católicos, dos negros e tal. Depois teve os "Filhos do Carnaval", em que isso foi muito forte.

Mas vocês já discutiam nesses termos, diversidade e representatividade, naquele começo dos anos 90?

Já, sim. Pelo menos no "Castelo Rá-Tim-Bum", sim. Mas hoje eu teria colocado um pouco mais de representatividade. Mais um ou dois (personagens negros), para ficar meio a meio.

Eduardo Knapp/Folhapress Eduardo Knapp/Folhapress

Na série "As five" as personagens que eram adolescentes até ontem começam a envelhecer e se deparar com o mundo adulto. Como é sair do universo infantil para o juvenil e do juvenil para a vida adulta?

Foi a maneira que eu encontrei de me interessar em fazer a série. Já tinha feito sobre adolescência e falado tudo daqueles personagens na adolescência. Então, quando veio essa ideia de fazer sobre o universo adulto, uma série adulta, sobre jovens adultos, me interessei em fazer a série. O público estava pedindo muito um spin-off. Foi por insistência do público que a gente resolveu fazer. Mas só decidi fazer quando me veio essa ideia. É uma série que fala de jovens adultos, por volta dos 23, 24 anos, da geração Z, uma geração muito interessante de falar. Falar dessa geração é falar muito sobre o mundo. É a primeira geração conectada, nativa digital e tem muita coisa interessante.

Acha que conseguiu capturar as diferenças entre essa geração mais jovem e a millennial, que envelheceu?

Quando comecei a pesquisar essa geração eu percebi como era rico falar sobre ela. Todo mundo esperava que quando ela chegasse à vida adulta ela iria resolver a parada. Era a geração que ia salvar o mundo, entre aspas. Uma geração muito bem informada, muito conectada, muito conectada entre si, com uma nova ideia de fronteiras entre países, muito engajamento, muito consciente. Então achavam que eles iam chegar no mercado de trabalho e iam trabalhar só com o que gostassem, iam ser bons companheiros, solidários. E eles acreditaram nisso também. Acreditaram que iam ser isso. Mas quando eles viraram adultos o mundo estava numa crise muito forte. Uma crise financeira, econômica, uma crise ambiental, uma crise política, com essa polarização, esse autoritarismo, e começaram a entender o lado ruim até das redes sociais. Então é uma geração ansiosa, dispersa muitas vezes, com dificuldades de encarar derrotas. A gente começou a chamar de "geração ressaca". A gente esperava tudo dela. E isso para a dramaturgia é muito interessante. É uma coisa que o mundo está vivendo.

Uma das personagens começa a se dar conta, a contragosto, que está ficando parecida demais com a mãe. Essa geração está começando a ter medo de ficar também mais careta?

Tem até a música do Belchior, né? "Como nossos pais". É uma crise que toda geração passa um pouco por isso, de não querer ficar igual os pais. Mas acaba ficando parecida. Mas essa geração, por outro lado, está enfrentando... A minha, quando estava nessa idade, era o contrário. Estava no final de uma ditadura e tudo se abria, tudo estava clareando. Era uma coisa mais otimista. Agora, aqui, as perspectivas começaram a ficar mais sombrias. Com a pandemia, então... Estava lembrando disso outro dia. Como a situação já estava muito grave antes da pandemia, já estava assustador.

A geração millennial, que é a minha, falhou em acreditar que algumas conquistas, e a própria ideia de democracia, estavam dadas. Hoje temos que explicar que a vacina é importante. Acha que a geração centennial vai estar mais atenta e forte, para citar outra música?

Eles estão tendo que aprender na marra, tendo que crescer na marra. E tem força para crescer. Estão se tornando pessoas fortes. Eles vão ser muito importantes para a gente sair desse buraco, não só do Brasil mas no mundo todo. É uma geração que, apesar de ter todos os obstáculos, vai ser uma força importante para a gente sair dessa crise.

Eduardo Knapp/Folhapress

"Castelo Rá-Tim-Bum" capturou o espírito do tempo, naquele início dos anos 90, quando você via janelas se abrindo pelo mundo com a chegada do Windows. Depois você fez um filme que revia a ditadura num momento em que a América Latina estava fazendo essa revisão histórica. Também lançou "Que Monstro Te Mordeu" no momento em que as coisas estavam ficando mais sombrias nos anos 2013, 2014. Como funciona esta antena para captar esse espírito do tempo?

Eu procuro estar conectado com o que está acontecendo, em termos de literatura e música, principalmente. Não sei explicar muito bem, não. Mas estou sempre pensando em função do que está acontecendo. Talvez por isso tenha alguma influência no trabalho. A série ("As Five"), chega no meio da pandemia e vamos falar de uma coisa que é anterior. Tem esse tempo. Às vezes demora muito para acontecer.

Depois do Windows, teve alguma plataforma tecnológica que te inspirou?

Da maneira como influenciou o "Castelo Rá-Tim-Bum" não tive ainda nenhum insight vindo da tecnologia tão determinante. O Castelo foi realmente uma inspiração. Aquele formato do programa é um formato inovador. Para fazer o Castelo assisti programas do mundo inteiro. Desde programas japoneses, pesquisei muito o que estava sendo produzido na época. E tem uma mistura de linguagens. Mas esse formato com uma história com começo, meio e fim e é intercalada por quadros, entrecortando a história, é uma linguagem que lembra muito o que assistimos atualmente, com duas telas na mão, cortando a narrativa. Isso nunca tinha sido feito. O castelo da história é um lugar que tem muitas janelas para se abrir. Mas é como eu disse: essas coisas estão no ar, estão acontecendo. Mesmo que a gente não tenha muita consciência para onde está indo, está acontecendo. Aquele momento era o começo dessa revolução. O comecinho. Não tinha internet nem celular nem nada. Só tinha um computador com o Windows. Mas era o começo dessa grande revolução. A gente pegou o impulso desse começo. E acho que por isso o programa ficou tanto tempo no ar.

"Castelo Rá-Tim-Bum" teria chegado a tantas pessoas, e marcado tanto uma geração, se não fosse a TV aberta?

Era outro momento. Não tinha TV a cabo ainda, pelo que me lembro. TV a cabo veio logo depois. A gente ficou em segundo lugar de audiência. Passou o SBT, a Record...

Por que não existem mais programas infantis do tipo na TV aberta?

O que acho complicado no Brasil é a desigualdade, que é muito grande. As pessoas que têm acesso ou a plataformas pagas ou aos canais pagos são uma porcentagem muito pequena da população, seja por questões técnicas, seja por grana mesmo. Então a TV aberta é ainda muito importante no Brasil por conta da desigualdade. E a TV aberta não ter programação infantil, não ter programação infantil de qualidade, ou ter muito pouco, é muito ruim. É uma pena. Agora, exatamente por que pararam de fazer, não sei avaliar. As leis endureceram para propaganda, para publicidade na TV para crianças. Essa é a justificativa das televisões para terem tirado a programação infantil: o endurecimento das leis. Eu não sei se é verdade ou não é, ou até que ponto é verdade. Mas acho, por tudo isso que te falei, uma pena.

A TV aberta deveria ter a responsabilidade social para fazer programas infantis de qualidade no Brasil de alguma forma

Cao Hamburger

Quanto tempo ficou no ar o programa "Que monstro te mordeu?", que foi lançado em 2014 com muita expectativa na TV Cultura?

O "Que monstro te mordeu?" fez uma carreira muito boa na TV a cabo, na Discovery Kids. Acho que se não está passando até hoje parou agora. Fez também carreira boa nas plataformas digitais, na Netflix e agora na GloboPlay. Na TV Cultura eu não sei bem o que aconteceu. A gente fez o programa em uma gestão e estreou em outra. Então não sei se houve uma questão política que logo tiraram da programação. Não entendo o porquê.

Você acredita que o YouTube está virando este lugar que um dia foi da TV aberta? Por conta do acesso mais fácil a conexão 4G ou 3G no celular?

Não acompanho muito a programação infantil no YouTube. Sei que existe, sei que tem fenômenos que aconteceram no YouTube, como a "Galinha Pintadinha". Mas não entendo nada. O "Que monstro que te mordeu?" a gente até fez um acesso pra lá, mas eu não acompanhei direito, não tô muito ligado, não.

Atualmente temos visto alguns youtubers tentando trazer um filtro educativo para seus programas, como é o caso do Luccas Neto, que não era muito bem visto pelos pais e hoje parecem buscar conquistá-los também.

Não conheço. Realmente. Sei que o Luccas Neto é o irmão do Felipe Neto, mas eu não tenho ideia do que ele faz. Nunca vi.

O Sérgio Mamberti diz que até hoje é parado por crianças e adultos nas ruas chamando-o de Tio Vitor. Vocês tinham ideia da dimensão que o "Castelo Rá-Tim-Bum" tomaria?

Antes de estrear qualquer programa é impossível saber se vai ser sucesso ou não. E se vai durar e se vai virar um clássico é mais impossível ainda. Realmente essa máxima de que o sucesso não é possível prever é verdadeira. Você faz. A gente fez com muita dedicação e tal. Mas é como todos os trabalhos que eu já fiz. Alguns fazem muito sucesso, outros fazem menos. O Castelo virou clássico. Nem sei avaliar por quê. É impossível prever.

Você vem de uma família de cientistas, com irmãos que seguiram a carreira artística ou acadêmica. O contexto político é marcado por ataques a esses dois grupos. Como isso te afeta?

Estamos vivendo no Brasil um momento de obscurantismo total, de ataque às artes, à ciência e à educação. E também à civilização. A gente tem que combater esse obscurantismo. Espero que nas urnas vençamos.

Outro tema caro a você é a questão dos povos indígenas, que também estão sob ameaça e que você já retratou no filme "Xingu".

Estamos vendo a destruição de toda a política indigenista e ambiental, que tem muito a ver uma coisa com a outra. As questões indígenas são realmente...A cultura deles protege, eles são muito mais aptos, muito mais evoluídos na questão de convivência com o meio ambiente. Eles nem chamam de meio ambiente. Consideram tudo uma coisa só. Então, temos muito o que aprender com eles. Mas esse governo obscurantista e destruidor, negacionista e... Bem, vai durar pouco. A gente vai vencer. Vai fazer uma grande união nacional para tirar essa gente de lá.

Eduardo Knapp/Folhapress Eduardo Knapp/Folhapress

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