Mandacaru Científico

Reconhecida mundialmente, Natália Mota carrega o Nordeste em busca de igualdade e apoio à ciência brasileira

Rafael Duarte Colaboração para Ecoa Allan Lira/UOL

Quando mandacaru floresce na seca é sinal de que venceu a resistência na paisagem nordestina. A flor símbolo da região, que nasce do cacto no sertão brasileiro, é a primeira imagem que vem à cabeça da psiquiatra e neurocientista Natália Mota quando alguém pergunta se ela pensa em deixar o país em meio ao retrocesso social e ao corte de investimento federal nas áreas de ciência e tecnologia.

Aos 35, com graduação, mestrado e doutorado pela UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Natália se orgulha de nunca ter saído do Nordeste para estudar. Natural de Fortaleza, de onde herdou o bom humor, e radicada em Natal há 20 anos, foi a única cientista sul-americana indicada ao prêmio Nature Research Award de 2019, voltado para mulheres cientistas que inspiram outras mulheres.

O reconhecimento veio por causa do projeto que desenvolve desde 2016, em que, a partir de um programa de computador, consegue reduzir o tempo do diagnóstico de esquizofrenia, que geralmente leva dois anos — o trabalho contribui para antecipar tratamentos e controlar o distúrbio.

Nesta terça-feira (11), dia no qual a ONU (Organização das Nações Unidas) celebra o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, a neurocientista conta como trava todos os dias uma batalha em defesa da presença de mais mulheres na ciência e relembra sua trajetória, que inclui centenas de horas de pesquisa em laboratório e residência médica intercaladas com a vida pessoal de quem teve duas gestações durante esse processo.

Allan Lira/UOL

Somos flor de mandacaru. Dá na caatinga, é lindo, floresce. Tem gente fazendo muito bonito aqui no Nordeste. A ciência precisa de criatividade e temos uma capacidade criativa imensa no Brasil. Se há pensamentos retrógrados, temos uma cultura belíssima, uma cultura de resistência. É a mistura que faz a gente brasileiro. Ao não ser que ficasse inviável de vez, eu não ia me sentir bem [sair do país]. Ia me sentir em um exílio.

Natália Mota, neurocientista

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De volta para o futuro

Se o futuro é fundamental, o presente é urgente. Embora se considere mais pesquisadora do que psiquiatra em razão de estar há vários anos sem trabalhar a parte clínica, Natália reflete sobre o que ela chama de "glorificação da exaustão", quando médicos ou médicas passam noites sem dormir para conseguir dar conta do trabalho, enquanto toda a sociedade enxerga isso como algo louvável.

"O curso de Medicina prepara médico pra iniciativa privada e para uma técnica que, daqui a pouco e num cenário mais pessimista, um computador estará fazendo isso melhor que um profissional. Precisamos ter o papel de agente público. Um paciente não é um cliente", desabafa.

Natália se diz apaixonada pela psiquiatria, mas lembra que escolheu a medicina porque o juiz Sílvio Mota, pai dela, lhe deu apenas três opções: Medicina, Direito ou Engenharia. O pai chegou até a incentivá-la, comprando uma maleta médica de brinquedo, mas recebeu como resposta uma cara feia da filha.

"Eu falei: ?pai, eu não quero ser cientista de remédio, eu quero ser cientista de brinquedo?", relembra. Na verdade, a filha do juiz queria mesmo era ser cientista. O desejo vinha especialmente do cinema. A trilogia "De Volta para o Futuro" fazia brilhar os olhos da cearense.

Allan Lira/UOL Allan Lira/UOL

Diagnóstico para esquizofrenia

O único projeto brasileiro reconhecido em 2019 pela revista científica "Nature" nasceu da ausência. Por ser membro do laboratório Sono, Sonhos e Memória do Instituto do Cérebro da UFRN, deparou-se com a dificuldade em encontrar exames que auxiliam o diagnóstico das chamadas desordens mentais.

Ela conta que conseguiu organizar, por meio do desenvolvimento de um algoritmo computacional, a trajetória das palavras de pacientes com uma entidade matemática. Realizou os primeiros estudos em pacientes já diagnosticados com o distúrbio. Assim, percebeu que pessoas com esquizofrenia fazem discursos menos conectados, de um jeito em que as frases formadas apresentam um modelo diferente quando comparado com a fala de quem não possui a patologia.

Os primeiros protótipos vieram em 2009, quando passou a se dedicar a aprender sobre ferramentas que precisava usar na pesquisa. Em pouco tempo, notou que precisava aprender algumas técnicas, como códigos e programas de computação, para não depender sempre de outras pessoas. E adotou uma estratégia: a todos os colegas e profissionais a quem pedia ajuda, solicitava também o passo a passo para garantir autonomia.

"Como o Nordeste não tem uma massa crítica enorme, não existe um programador que está ali há 20 anos. Então, se você quer, vai ter fazer sozinha. E para isso você tem ferramentas online, comunidades explicando códigos.... Sempre busquei isso. Foi ouro porque quebrei o estigma de ser capaz de fazer e abrir espaço e me tornar independente," afirma.

Allan Lira/UOL Allan Lira/UOL
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Ciência solitária

As pesquisas para aperfeiçoar o projeto coincidiram com o nascimento dos dois filhos: Ernesto, de 9 anos, e Sérgio, de apenas 2 anos. A maternidade chegou quando ela tinha 27 anos, estava terminando a residência médica, tinha três empregos, além de trabalhos voluntários. De repente, uma gravidez inesperada e de risco: foi diagnosticada com toxoplasmose. A mudança no corpo foi acompanhada de alterações drásticas na rotina.

Na mesma época, o Instituto do Cérebro enfrentava seu período mais tenso após um racha entre os neurocientistas Sidarta Ribeiro, com quem é casada, e Miguel Nicolélis. "Eu sentia muito, mas tinha que me manter firme porque o Sidarta estava matando um leão todo dia. A ciência é solitária. Mas aquele período me despertou para essa questão da solidão."

Ela conta relembrando que passou a notar que mesmo os amigos mais próximos não acreditavam no sucesso dela. Aos poucos, Natália foi descobrindo um novo adversário: o machismo estrutural.

O machismo na ciência pode ser traduzido em números. Segundo décima edição da revista "Gênero e Número", as mulheres são maioria na graduação (55%), no mestrado (52%) e estão no mesmo patamar dos homens no doutorado (50%).

No entanto, pesquisa divulgada em 2018 pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) aponta que elas não atingem maioria nos postos de destaque. As mulheres estão abaixo dos homens em relação às lideranças de grupos de pesquisa (47%), dos docentes universitários (46%) e dos pesquisadores reconhecidos no meio científico como os de grande produtividade (36%).

Eu produzia um artigo e as pessoas diziam que tinha sido o Sidarta [Ribeiro]. Produzia outro e diziam que tinha sido outro cientista homem. Produzia mais outro e outro e nada de reconhecimento. Achavam que eu estava sempre auxiliando um homem. Meu nome estava lá, mas as pessoas achavam que eu não deveria estar como autora.

Natália Mota, neurocientista

Allan Lira/UOL

Meninas ensinando ciência

A redução do preconceito e a distância entre homens e mulheres passa pela educação, na visão da neurocientista. Um dos projetos em que atuou em 2019 foi o Sementinha. Realizado pelo Instituto do Cérebro em duas escolas localizadas em bairros periféricos de Natal, tem como meta estimular o gosto pela ciência em meninas. O trabalho foi feito com alunos entre 7 e 9 anos. Na primeira etapa, os alunos ficavam com intervenções mais lúdicas e as alunas aprendiam experimentos científicos. Na sequência, eram formadas duplas e as meninas tinham que ensinar aos garotos o experimento que acabaram de aprender.

Dessa forma, o primeiro contato dos meninos com ciência era por meio das mulheres. O projeto era coordenado pela estudante de Física da UFRN Maria Ribeiro, que convidou Natália Mota para auxiliá-la.

Anteriormente, a neurocientista já tinha fundado o Sci Girls. Criado dentro de um laboratório, o coletivo reúne, uma vez por semana, mulheres cientistas para debater pautas ligadas às dificuldades enfrentadas pelas pesquisadoras na área ou em casa, como o envelhecimento, maternidade, divisão de trabalhos domésticos, entre outros.

Embora a Sci Girls só tenha nascido em 2018, a inspiração surgiu quatro anos antes, em 2014, quando Natália foi selecionada pela Escola Latino Americana de Ciências Para a Educação. A entidade realiza eventos itinerantes e reúne neurocientistas e psicólogos do mundo inteiro que estudam ciência voltada para a educação. Nesse encontro, em Punta Del Este, no Uruguai, as renomadas cientistas Marcela Pena e Susan Goldin convocaram as pesquisadoras para uma roda de conversa.

Elas olharam para nós e perguntaram: 'Qual é a principal questão de ser mulher e trabalhar com ciência para vocês?'. Gringo não está acostumado com nossa emoção, e eu tinha deixado Ernesto pela primeira vez por 15 dias. Já tinha viajado, mas não por tanto tempo. Comecei a chorar, disse que era muito difícil. Percebi que nunca tinha falado sobre isso com ninguém. Nem com Sidarta eu falava.

Natália Mota, neurocientista

"O que aconteceu com o país de vocês?"

Entre uma conversa e outra dentro do laboratório da UFRN, onde Natália recebeu a reportagem, o sorriso fácil da neurocientista vai embora quando o assunto caminha para sobre a visão dos pesquisadores internacionais sobre o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido). Ela conta que passou a viajar mais por causa das premiações em que foi indicada por causa do projeto sobre esquizofrenia. Ao todo, contando com a da revista científica "Nature", em 2019, foram cinco indicações e uma homenagem no Caribe.

Por isso, acabou entrando em contato com diversos pesquisadores e cientistas ao redor do mundo. Em conversas com outros especialistas, diz que uma pergunta sempre é direcionada à ela: "Não tem nenhum ambiente fora do Brasil em que as pessoas não me perguntem: 'o que aconteceu no país de vocês'? A eleição de Bolsonaro prejudicou nossa reputação na ciência."

Ela ainda relembra que os cortes que afetaram tanto a ciência e tecnologia a partir do final do governo de Dilma Roussef e se aprofundaram com Michel Temer e Jair Bolsonaro, atingem ainda mais as mulheres.

Natália Mota tem orgulho de ser nordestina. Escrita assim, no final de uma reportagem, parece um chavão para vender camiseta. Mas no caso dela não é. Enquanto o Brasil vem perdendo pesquisadores para o exterior, a chamada "fuga de cérebros", Natália não pensa em ir embora. À semelhança da flor de mandacaru cantada por Luiz Gonzaga e presente na imagem que ela chama para si, a neurocientista resiste e finca o pé:

Realmente esse bichinho me mordeu quando eu era bem pequenininha. A ciência atravessa nações, não respeita esse espaço de territórios. O desenvolvimento humano também não deve respeitar. Há um jogo de poder entre nações que determina a qualidade de vida das pessoas e até o acesso à ciência. E a gente está muito atrás disso. Me sinto privilegiada de produzir ciência aqui, de estar impactando pessoas lá fora.

Natália Mota, neurocientista

Allan Lira/UOL Allan Lira/UOL

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