A dona aranha

Ana Lúcia Tourinho classificou 700 aracnídeos, teve fama, mas mudou de rota para ajudar mulheres na ciência

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo Lorena Castilho/UOL

"Não sou uma pessoa dos bichos fofinhos. É muito fácil fazer isso. Gosto de coisas difíceis. Eu nunca fui uma pessoa que tem inclinação para caminhos fáceis e simples. Sempre tive inclinação para as coisas a que as pessoas não estão dando muita atenção.

Eu me aprofundei em muitas ciências e consigo compartilhar um conhecimento que une como se fosse uma teia.

Tenho um nome, um currículo, e os caras da ciência não estavam nem aí para me incluir no debate científico. Imagina o que acontece com as mulheres que estão começando?

A gente decidiu e falou: vamos meter o pé na porta."

A bióloga Ana Lúcia Tourinho estuda aracnídeos e é especialista em opiliões. O opilião é um primo da aranha como você conhece, com pernas compridas fascinantes e estranhas. É uma espécie noturna, inofensiva, que não produz teia ou veneno. Ele vive embaixo de plantas e há menos tempo é estudado pela ciência em relação ao restante da família, como as aranhas e os ácaros. Ana, portanto, é uma aracnóloga. Mas não só. Ela compreendeu que a vida é como uma teia: todos os conhecimentos e seres são conectados. E é preciso de alguém para fortalecer e melhorar essas conexões.

Na pandemia, Ana criou o SWA (Support Women in Arachnology, ou "Apoie Mulheres na Aracnologia") para conectar biólogas contra o preconceito de gênero no meio acadêmico.

O próximo objetivo de Ana é criar um instituto de pesquisa científica em Sinop, em Mato Grosso, uma cidade que afirma ser de uma "cultura incendiária", tomada por forças do agronegócio, e onde há um dos últimos trechos da floresta amazônica na região Centro-Oeste. Apesar do empenho, a rede de apoio entre mulheres e os passos que levaram Ana do Rio de Janeiro até Mato Grosso nem sempre foram indolores.

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Na infância, Ana tinha fascínio por bichinhos que se enterravam no quintal de um prédio no Méier, bairro no Rio de Janeiro. Tatu-bolas, formigas, besouros tinham suas vidas subterrâneas analisadas com curiosidade e empenho. Um tio lhe deu de presente uma edição do livro "O assombroso mundo da natureza" e, sem prever, indicou o futuro de Ana.

Havia na obra a imagem de uma planta carnívora arroxeada com uma pequena aranha na "boca". A futura bióloga tinha 7 anos. "Eu tenho a página impressa na mente", diz. "Fiquei olhando aqueles olhinhos, que sempre gostei de observar bem de perto."

Anos depois, quando estudava zoologia, ouviu um conselho semelhante de um professor. "Escolha um bicho para estudar que você não cansaria de olhar pelo resto da vida", disse. Ela já sabia a resposta: aracnídeos.

A primeira grande pesquisa no Museu Nacional foi em busca de schizomidas, aracnídeos minúsculos que lembram formigas, encontrados pelo pesquisador Adriano Kury no bairro da Urca, no Rio. Havia suspeita de que as espécies não eram do Brasil.

Milimétricos, os schizomidas lembram grãos de terra, mas são "muito ninjas", rápidos e inteligentes. O processo para coletá-los é minucioso. "É um trabalho para nerds", define Ana.

A investigação gerou o primeiro registro do aracnídeo da Costa Rica na América do Sul. O professor dividiu os créditos da pesquisa com Ana, que foi bem reconhecida no meio acadêmico nos anos 2000, e partiu para o mestrado.

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Quando fechava os olhos para dormir, Ana quase podia enxergar as perninhas de opiliões. No mestrado, desenvolveu uma classificação taxonômica de todas as espécies de opiliões na Mata Atlântica. Na prática, cada tipo deste aracnídeo foi coletado e desenhado em apenas dois anos e meio. Foram cerca de 700 desenhos, em mais de 200 páginas. Eram livros grandes para animais pequenos. "Foi um tempo recorde", lembra.

No primeiro ano, precisou dar aulas no ensino médio e fundamental por não ter conseguido uma bolsa — e fazia curso de inglês. A produtividade excessiva cobrou o preço.

"Era dia e noite desenhando, de maneira solitária, onde você falava consigo mesma", diz. "Há a parte bonita de ser famosa por um trabalho, mas não se fala da parte feia em que tive uma depressão profunda quando terminei."

Logo após, foi selecionada para uma tese de doutorado na USP, mas decidiu recomeçar do zero. "Foi doloroso chegar à conclusão de que tudo que tinha feito era maravilhoso, mas era só um veículo para fazer outras coisas", diz.

A bióloga começou a estudar ecologia, um campo da biologia que olha para a relação entre os seres e o meio ambiente. Era como mudar de um time para o outro no futebol, com colegas e ambientes novos.

Ana foi selecionada para uma bolsa de estudos ecológicos na Amazônia e embarcou para Sinop. De lá, alterou a vida das pessoas que a rodeiam assim como reordenou a própria caminhada.

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Hoje, Ana é pós-doutora e professora na Universidade Federal de Mato Grosso e também divulgadora científica. Para isso, tem apoio da estudante de biologia Michele Costa, a quem ensinou a ir com mais calma.

"O nosso trabalho com a Ana nos ensinou a respeitar nosso limite e a cuidar da nossa saúde emocional", diz Michele. "Nós não somos robôs que produzem o tempo todo e definir esse limite ajuda muito a todos os profissionais."

Nesse meio tempo, ela também criou um grupo só de mulheres aracnólogas. Segundo Ana, há palestras de zoologia compostas apenas por homens e também falta de crédito a estudos de aracnólogas.

A professora dos cursos de ciências biológicas da UERJ Amanda Cruz Mendes lembra de Ana ainda como pesquisadora do Museu Nacional, há cerca de 20 anos. Eram poucas mulheres, e daquele tempo só algumas continuaram na carreira.

A misoginia é refletida em vários aspectos, como homens com currículos menores do que suas colegas mulheres serem chamadas para palestras cursos e edição de revistas acadêmicas enquanto que elas não são. Outro diz respeito ao acesso à formação.

"Em um congresso de zoologia antes da quarentena, 64% das participantes eram mulheres, mas apenas 20% a 30% delas tinham acesso às bolsas CNPQ, a elite da pesquisa nacional", diz.

A gente demorou para enxergar de forma sistemática, mas quando a ficha caiu nós nos unimos

Ana Lúcia Tourinho

Lorena Castilho/UOL

Os aracnídeos são interpretados como instigantes e amedrontadores na história da humanidade. Na mitologia grega, a jovem mortal Aracne desafiou a deusa Atenas e foi amaldiçoada com um corpo cheio de pernas e olhos. A maldição foi dada pela ousadia em bordar cenas amorosas e indecorosas de Zeus, algo que se desejava esconder.

Os opiliões também são habilidosos em demonstrar verdades incômodas. A presença deles revela a saúde do espaço onde estão, e o meio ambiente anda cada vez menos sadio.

A bióloga estudou os opiliões em todo rio Negro, Amazonas, e concluiu que eles são sensíveis e bons medidores de alterações ambientais.

Até hoje, cientistas declaram a existência de um apocalipse de insetos e seres rastejantes, que caminham silenciosamente para a extinção por ação humana, seja por desinteresse, repulsa ou por extermínio da natureza.

Por isso, Ana estuda criar um instituto de pesquisa em Sinop. O objetivo é comprar uma pedaço de terra na cidade e preservá-la como um dos últimos trechos da Amazônia antes do Cerrado.

Até lá, continuará a destrinchar os desafios das mulheres e levar conhecimento sobre ecologia. O que a motiva a encarar tantos projetos é um sentimento parecido com o de observar os bichinhos que se enterravam no quintal de seus pais no Rio. "Quando você tem algo que ninguém está fazendo, não deve ser a coisa mais fácil de se fazer", diz "As coisas que as pessoas não dão atenção me incomodam."

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