A ciência como caminho

Anna Benite trabalha pela descolonização dos currículos e por mais espaço para meninas e negros na ciência

Diana Carvalho De Ecoa, em São Paulo Pryscilla K./UOL

"'Onde estão as pessoas que vieram do mesmo lugar que eu e cadê as mulheres?'. Todas as vezes me fazia essa pergunta enquanto andava pelos corredores da universidade de química. Era um lugar tão monocromático.

No mestrado, a mesma ausência. Meus orientadores eram dois homens, brancos. Cheguei a ser questionada se não me sentiria mal em ter que interromper meu trabalho de pesquisa para ter filho. Segui em frente, mas o grande problema é que ainda há espaço para esse tipo de atitude, que menospreza e tenta limitar o 'ser mulher'.

Por isso, ficava me perguntando: até quando terei que passar por isso? Até quando vou continuar sem pares, sem referências? Em uma disciplina superdifícil, de físico-química-orgânica, comecei a tirar A. E não tinha um só colega de sala que não falasse: "Ah, você é muito esforçada. Parabéns!". Isso me irritava profundamente. Por que eu era a esforçada e quando eram eles que tiravam notas boas, isso era normal, ou eles eram acima da média?

De alguma maneira, a química entrou na minha vida com uma perspectiva de transformação. A ciência da transformação. Foi por isso que decidi 'recomeçar' após o meu doutorado. Voltei meu trabalho para o lugar de onde saí, foquei na educação de base para que mais meninas e jovens ocupem seu lugar de direito. E que lá na frente, no ensino superior, possam encontrar os pares que não encontrei no passado."

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Doutora em ciência pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Anna Benite viveu a maior parte da infância e adolescência na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Em casa, a mãe dava conta, sozinha, dela e da irmã, transformando dificuldades em soluções.

"Minha mãe é uma pessoa extremamente inspiradora. Foi professora de escola pública, mas nunca fez curso de licenciatura. Hoje, ela tem 84 anos e naquela época um curso ginasial bastava para que você pudesse dar aula. E foi o que ela fez, com aulas de

ciências para crianças e jovens. Vivíamos com a grana apertada, mas ela era extremamente comprometida em nos tirar de um ciclo vicioso de violência e pobreza que cercava a maioria dos jovens da Baixada", diz.

Depois de prestar vestibular e passar em Química na UFRJ, Anna precisou se virar como para dar conta de acompanhar os estudos. "Eu trabalhei com produção de crochê, depois em um centro de confecção de roupas e de vendedora em loja de shopping. Essa é uma trajetória muito comum para jovens como eu, jovens de onde eu vim. A gente vai só tentando sair daquele lugar. A diferença é que, no meu caso, tinha a faculdade. E eu já enxergava o ensino como uma oportunidade para me tirar do trabalho subalterno".

Para a maior parte das pessoas é assim, né? O estudo é única forma de garantir um pouco mais de mobilidade social

Anna Benite

Sem computador e microscópio do lixo

Seguindo o caminho do ensino, Anna trilhou outros destinos. Começou como bibliotecária concursada, em uma escola pública, e depois passou a trabalhar dentro da universidade como bioterista - profissional que estuda animais de laboratório para pesquisas biomédicas.

Foi vivenciando a rotina acadêmica, cercada por pensadores e artigos científicos, que ela decidiu seguir. Tentaria o mestrado. E, por que não, o doutorado? "Via pesquisadores discutindo temas tão interessantes, um universo tão rico, e comecei a pensar que poderia fazer parte disso. Foi aí que surgiu uma das primeiras pessoas que acreditou na minha trajetória. Por que é isso, né? Em algum momento, você vai precisar de apoio. A meritocracia é uma grande falácia, uma bobagem".

A partir do apoio de um dos chefes do laboratório onde trabalhava, Anna começou sua iniciação científica. Ele flexibilizou os horários para que ela pudesse estudar e, além, disso deu a chave do laboratório para ela usar durante as pesquisas.

"Ele chegou a pegar um microscópio eletrônico que seria dispensado pelo departamento. Era velho, tinham comprado um mais moderno, mas funcionava perfeitamente. Ele me deu aquele equipamento e, a partir daí, dei um salto na minha carreira, me dedicando à microscopia".

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Roda de samba vs noite de queijos e vinhos

Depois de concluir o mestrado e o doutorado em Química Bioinorgânica Medicinal, Anna chegou a receber uma proposta para um trabalho de pesquisa na Alemanha. Tudo ia bem em sua vida profissional. Mas ela começou a perceber um incômodo, muito parecido com aquele que sentia ao não encontrar pessoas como ela dentro do espaço acadêmico.

"Eu olhava para a minha família. Metade dela vivia da prática do candomblé e a outra metade trabalhava em posto de gasolina. Naquele momento, pensei: qual é o impacto que o meu trabalho têm na vida deles? Nenhum. Muitos não sabiam nem o que eu fazia, na prática. De que me valiam tantos artigos, produtos finais, se eu nada conseguia mudar ali, no meu círculo social?".

Anna conta que, quanto mais avançava profissionalmente, mais se distanciava dos seus. "Entre uma roda de samba e uma noite de queijos e vinhos com o povo da academia, era muito mais legal a roda de samba. Aqueles encontros, convivência... fui percebendo que não faziam parte da minha vivência. E isso não tem a ver com competência ou gosto refinado, tem a ver sobre quem a gente é de fato. E aquilo estava ali, dentro de mim. Impregnado. Foi aí que decidi voltar para a área do ensino"

"Foi o ensino que transformou a minha vida. Antes da Química, aprendi que quem faz verdadeiras transformações é a escola", diz ela.

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A ciência como possibilidade

Com mestrado e doutorado, Anna foi aprovada em três concursos públicos de docência e convocada para das aulas na Universidade Federal de Goiás, em 2006. É nesse momento que começa seu trabalho de descolonização do currículo de Ciências.

"Fundei junto com meu grupo de pesquisa o Coletivo Negro (a) CIATA do Laboratório de Pesquisas em Educação Química e Inclusão (LPEQI ) - do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás, com o objetivo de trabalhar sob a perspectiva de uma episteme não-branca ou europeia nos currículos de Química".

Anna explica que isso não significa trocar um centrismo por outro, mas incluir elementos de culturas oprimidas. "Somos a maioria, mas a minoria em direitos. É muito difícil, em sala de aula, um professor fazer referência a uma cientista negra ou a um cientista negro. E isso acontece porque a cultura hegemônica visa o sujeito universal, que é o homem branco. Nosso trabalho é tirar da invisibilidade o passado em produção de Ciência e Tecnologia dos nossos ancestrais africanos e da diáspora, tornando a escola um lugar mais atrativo para todas crianças e adolescentes negros", diz.

No Colégio Estadual Solon Amaral, que fica na periferia da cidade de Goiânia, o grupo formado pela cientista trabalha com mais de 1500 alunos do ensino médio durante o turno escolar. Dentro do contexto da diáspora, Anna usa, por exemplo, o dendê, em uma aula de química inorgânica que estuda elementos e substâncias da natureza, investigando suas propriedades e processos de reações.

"O dendê é um fruto sagrado na religião de matriz africana, vem de uma árvore em que quase tudo dela se aproveita. A folha é utilizada para demarcar o espaço sagrado, a semente é utilizada para consultar o oráculo. Em sala de aula, não só contextualizamos a história - porque a palmeira do dendê não é natural daqui, ela veio com a diáspora -,como também usamos a casca do dendê, que tem um material altamente absorvente, em testes com resíduos metálicos", explica.

Ao fazer esse recorte, o objetivo é estimular o interesse de meninos e meninas por uma ciência mais representativa e próxima, que usa elementos do dia a dia para explicar compostos e processos químicos. O mesmo aprendizado é levado para o Grupo de Mulheres Negras Dandara no Cerrado - que desenvolve o fortalecimento e empoderamento de mulheres negras da periferia. Na ONG, o conhecimento em ciência e química acontece por meio de oficinas que contextualizam os processos de transformação ensinando, por exemplo, a fazer papel de folha de bananeira.

"O grande desafio como cientista é dizer para uma pessoa de fora da área que ciência é bacana, que ciência está na vida dela e que ela também pode se interessar. Porque tem outras mulheres iguais a ela que estudam e trabalham com isso".

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Investiga Menina

Além do trabalho de descolonização de currículos, Anna é coordenadora do Investiga Menina, projeto que busca estimular que meninas negras escolham carreiras de ciências, exatas e tecnológicas.

O projeto, que nasceu em 2015, leva pesquisadoras negras para dentro da sala de aula. Lá, elas compartilham suas trajetórias e aprendizado por meio de palestras e oficinas para alunas de escola pública.

Uma pesquisa sobre estatísticas e gênero do IBGE, realizada em 2018, mostrou que apenas 10,4% das mulheres negras com idade entre 25 a 44 anos concluem o ensino superior. Já o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), aponta que o percentual de mulheres negras (pretas e pardas) doutoras de programa de pós graduação é inferior a 3%.

"Crianças e adolescentes negros de escolas públicas precisam entender que o potencial é transformador. E que eles podem, sim, cursar farmácia, geologia, engenharia. Mas essa percepção de que a universidade é um lugar distante só diminui quando nos vemos representados. Por isso a importância de levar cientistas negras contemporâneas para a sala de aula, para quebrar esse círculo branco e masculino, que desestimula a entrada de mulheres para o mundo da ciência".

Apesar dos impactos da pandemia de Covid-19, que paralisou boa parte das atividades realizadas em sala de aula, a cientista acredita que o vírus causou um olhar mais positivo para a ciência que é realizada no país.

"Antes da pandemia, a gente tinha aquela coisa de que a ciência e a tecnologia estão bombando em outros países e que somos apenas consumidores. Mas não. A pandemia mostrou que estamos todos correndo atrás", diz, lembrando o exemplo das pesquisas por uma vacina contra o coronavírus. "Na minha área, resolvi investir em produtos sociais, porque acredito que se você transforma a trajetória de uma pessoa, você transforma a trajetória de uma família. É uma transformação contínua e que vejo acontecer".

Amanda Miranda/UOL

Re_construção

Ecoa propõe durante o mês de outubro um ciclo temático de reportagens e entrevistas sobre Re_construção. A proposta é falar sobre pessoas e ideias que oferecem diferentes maneiras de ver e lidar com nosso mundo e sociedade durante e após a pandemia.

Ao longo de três semanas nos aprofundaremos em debates que vão da necessidade de se falar (e agir) sobre as populações mais vulnerabilizadas, a luta antirracista, os saberes ancestrais e seus ensinamentos e, é claro, o mundo dos negócios e o futuro do trabalho.

Não perca nenhum conteúdo do ciclo temático!

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