Retalhos refeitos

Após depressão, Ariane Santos abriu negócio de impacto que reaproveita resíduos têxteis e empodera mulheres

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo (SP) Theo Marques/UOL

"Trabalhei em grandes empresas, sou administradora e designer. Num determinado momento, parei pra cuidar de uma questão de saúde da minha avó e tive que recomeçar após o falecimento dela.

Foi um período de bastante sofrimento, mas também de muito reconhecimento. Até mesmo na questão da minha ancestralidade, de buscar minhas raízes... foi estando esse tempo com a minha avó que escutei muito mais as histórias da época dela. Isso me fez sair de uma guria com o cabelo alisado pra uma pessoa que cortou o cabelo bem curtinho e deixou o crespo assumir o seu lugar.

Os valores que a gente tinha mais presentes eram o amor, o cuidado e a educação. Cresci num ninho em que tive muito amor, apesar de ser extremamente vulnerável. Quando tive essa ruptura, de ver minha avó, a pessoa que eu sempre amei, indo embora aos poucos, me fez refletir muito sobre a vida, sobre o ritmo que a gente leva. A gente é muito acelerado pra tudo, aí às vezes vai deixando as pessoas que a gente ama e que estão do nosso lado sentindo falta da gente ou de uma atenção maior. Me impactou muito o quanto eu poderia ter curtido mais.

Foi muito doloroso, quase cometi suicídio, desisti por um minutinho - acho que minha avó interferiu. Então, a Badu nasce pra que as pessoas não cheguem nesse ponto."

O nascimento da Badu

Ariane Santos passeia com a câmera do celular pela sede da sua empresa, a Badu Design, em Curitiba. O espaço amplo é preenchido por objetos feitos de materiais reaproveitados: móveis, acessórios, bolsas. Na videoconferência, ela também mostra a Ecoa a matéria-prima, resíduos dispostos em prateleiras e organizados em um ateliê de costura. Uniformes e bancos de carro aguardam ali até que as costureiras da Badu lhes deem uma segunda vida.

Oito anos atrás, em 2013, Ariane enfrentava uma encruzilhada pessoal e profissional. Sem emprego e em depressão, ela criou a Badu Design com um investimento inicial de apenas R$ 30.

Algum tempo antes, ela tinha deixado o curso de Administração na Universidade Federal do Paraná no último período e o cargo de coordenadora de marketing em uma empresa para cuidar da avó, que vinha tendo complicações de saúde decorrentes do diabetes e de quem era muito próxima. Com sua morte, Ariane entrou em depressão e chegou a tentar suicídio. "Estar lá naquele buraquinho, naquele poço escuro, me entregou algo muito dolorido e ao mesmo tempo muito empoderador, de poder repensar minha vida, de ter um tempo de parar", diz.

Foi quando resgatou o passatempo de customizar cadernos e agendas, que colocou à venda numa papelaria. O sucesso dos primeiros produtos a encorajou, e o negócio foi crescendo, permitindo a ela agregar como colaboradoras mulheres que tinha conhecido nos corredores de hospitais, durante a doença da avó. Cuidadoras que, como ela, tinham deixado suas ocupações para se dedicar a um ente querido e muitas vezes não tinham renda própria.

Além do ramo da produção, Ariane passou a realizar também a capacitação de mulheres em situações de vulnerabilidade para trabalhar com a transformação de resíduos, fornecendo noções de design, costura e empreendedorismo. Hoje, 486 mulheres do Paraná já participaram das capacitações da empresa e integram sua rede de colaboradoras, acionadas pela Badu para produzir sob demanda. Cerca de 1.700, no total, já passaram por alguma de suas ações.

Assim como essas mulheres eram vistas como sem valor em algumas relações, esses materiais também eram

Ariane Santos, fundadora da Badu Design

Theo Marques/UOL Theo Marques/UOL

Economia circular

O negócio de Ariane é pautado nos princípios do design e da economia circular, que se baseiam na reutilização de resíduos. A ideia é evitar o desperdício, mirando no lixo zero, e aumentar o ciclo de uso dos materiais. Para isso, trabalha com resíduos têxteis (e, atualmente, alguns outros materiais) de empresas locais.

No início, os materiais vinham como doações. Certo dia, quando o ateliê da Badu ainda ficava na casa de Ariane — segundo ela, era seu "quarteliê" — um caminhão com diversas caixas cheias de resíduos chegou ao seu endereço. Ele foi enviado por uma empresa sem aviso, quando ela sequer estava em casa para receber o material.

"Eram várias caixas que não cabia nem na minha casa direito. Eles só deixaram as coisas lá e foram embora, tipo 'nos livramos desse material'. Quando vi aquilo, falei meu deus, como assim? Não entrava na minha cabeça que a empresa pudesse ter feito aquilo", diz.

A partir daí, a empresária começou a se aprofundar no tema dos resíduos têxteis, descobrindo se tratar de um grave problema ambiental. Descobriu também que, pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, as empresas são responsáveis pela destinação dos resíduos que produzem.

Desde então, a Badu não aceita mais a doação dos resíduos com que trabalha, mas os recebe num regime de corresponsabilidade com as empresas. Hoje, as mesmas que fornecem os resíduos muitas vezes compram os produtos da Badu para revender ou para uso interno.

Jaquetas dos uniformes de funcionários do Grupo Barigui, revendedora de veículos do Sul, por exemplo, são transformadas em mochilas e kits de boas-vindas para novos contratados pela empresa.

Além da produção, dos cursos e workshops para empresas e comunidades, outro ramo de atividade da empresa hoje consiste na análise dos tipos de resíduos de outras organizações para identificar o potencial de transformação dos materiais. Após essa etapa, a ideia é que desenvolvam projetos com a Badu ou outras iniciativas para reaproveitamento desses resíduos.

Theo Marques/UOL Theo Marques/UOL

Acolhimento e crescimento pessoal

Mais do que ter acesso a oportunidades de capacitação e trabalho, as mulheres que passam pela Badu também se beneficiam das trocas de conhecimento e de apoio entre si. Mesmo na pandemia de covid-19, o grupo continuou fazendo encontros online.

Muitas têm como referência a história da própria Ariane para superar as dificuldades. Elizete Aparecida da Silva Souza também atravessava um período de depressão quando conheceu a Badu em 2013. Hoje ela faz parte da Liga Badu de empreendedoras e segue trabalhando com a empresa.

O maior impacto da Badu em sua vida, além da renda, foi o apoio vindo das colegas. "Todas as meninas que trabalham aqui me ajudaram muito a ter autoestima, me mostrando o quanto sou capaz. Eu tinha dificuldade de acreditar em mim. Esse trabalho contribui muito com a minha saúde, cada dia eu aprendo coisas novas, me sinto realizada, amada e até protegida aqui", diz a Ecoa.

A costureira se recorda da primeira mochila que produziu como um sonho realizado. "Quando eu terminei aquilo e vi aquela mochila na minha frente, foi tão gratificante. As meninas todas ficaram tão felizes junto comigo que parecia que a minha alegria era a delas, elas pularam junto comigo de tanta alegria", conta.

Ariane se deu conta de que seu negócio realmente estava fazendo diferença na vida de mulheres em uma ação realizada no interior do estado.

No último dia, em uma roda de conversa e confiança feita como despedida para as participantes, uma mulher compartilhou que ela e os filhos vinham sofrendo violência do marido diariamente. Com a solidariedade das demais, ela conseguiu sair de casa naquele mesmo dia e, mais adiante, obteve uma medida protetiva contra o agressor.

Mais do que a vulnerabilidade, ela enxerga a potência e o conhecimento que as mulheres da Badu têm.

"Fico cada vez mais feliz de ver o quanto o que eu iniciei no meu quartinho pôde ampliar pra outras mulheres. Não é só o que eu elaborei como ideia de transformação, mas a união das mulheres e o jeito de lidar, com uma comunicação mais acessível, com afeto. Mostrando que ela poderia fazer qualquer coisa e que dependia dela dar espaço para a gente apoiar, que isso era possível", diz Ariane.

Theo Marques/UOL Theo Marques/UOL

Cultura do reaproveitar

A avó de Ariane não foi costureira, mas cozinheira. Dona de restaurante, amava receber pessoas e vivia rodeada de muita gente.

"Ela era de uma outra área, mas tinha muito isso de transformar tudo que tinha em volta. Quando a gente vem de uma situação mais vulnerável, aprende desde cedo o que é upcycling, porque precisa transformar o que tem, dar um jeito em tudo", diz.

O termo em inglês nada mais é do que a reutilização criativa de materiais que seriam descartados. Ariane se recorda de ver, na infância, a mãe e a avó reaproveitando roupas e transformando-as em vestidos para ela e as irmãs. Segundo a empresária, seu olhar criativo e transformador vem dessas mulheres fortes da família.

"É lá na base que a gente tem muita energia de transformação. Estamos passando pra essa etapa de economia circular no mundo todo agora, mas a sociedade de base já trabalha com isso há muitos anos e nunca teve reconhecimento de ser algo criativo, transformador, regenerador. Essas mulheres são agentes do futuro, é assim que eu quero que elas sejam enxergadas", diz Ariane.

A Curadoria Ecoa

  • Flora Bitancourt

    As histórias e pessoas apresentadas todos os dias a você por Ecoa surgem em um processo que não se limita à pratica jornalística tradicional. Além de encontros com especialistas de áreas fundamentais para a compreensão do nosso tempo, repórteres e editores têm uma troca diária de inspiração com um grupo de profissionais muito especial, todos com atuação de impacto no campo social, e que formam a nossa Curadoria. Esta reportagem, por exemplo, nasceu de uma conexão proposta por Flora Bitancourt, curadora de Ecoa.

    Imagem: Fernando Moraes/UOL
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