A amiga da onça

A bióloga Sofia Heinonen liderou um trabalho que levou os yaguaretés de volta para seu habitat na Argentina

Carolina Unzelte Colaboração para Ecoa, em São Paulo Malu Campello/UOL

"Quando a onça chega?". Depois de um trabalho de dez anos de Corrientes, nordeste da Argentina, Sofía Heinonen ouvia essa pergunta dos moradores da região com frequência. Algumas décadas antes seria difícil de imaginar que eles estariam ansiosos para rever yaguaretés, como nossos vizinhos chamam a onça-pintada.

O animal ficou extinto naquele território por 70 anos, graças à ganância por sua majestosa pele e o medo dos ataques às criações de gado da região. Mas em 2022 voltaram a nascer filhotes no Parque Nacional de Iberá.

Era o início de um novo capítulo para o animal, para o ecossistema e para quem vive em Corrientes, escrito pelas mãos de Sofía. No mesmo ano, a ativista e bióloga se tornou a única argentina a figurar na lista de mulheres mais influentes e inspiradoras do mundo elaborada pela rede estatal britânica BBC.

O início da empreitada

Como CEO da Fundação Rewilding, Sofía tem como principal objetivo lutar contra a extinção de biodiversidade em ecossistemas a partir da reintrodução de espécies-chave, que são animais fundamentais para a existência de outros animais.

Seu combate em Corrientes, região Nordeste da Argentina, começou quando um casal de filantropos norte-americanos viu no Pantanal argentino a possibilidade de regeneração do ecossistema a partir da reinserção de um predador (uma espécie no topo da cadeia alimentar). A inspiração veio da experiência do Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos.

Sofía foi contratada para a empreitada pelo casal, que comprou 150.000 hectares de terra na região. Outros 600.000 hectares foram doados pelo governo, e assim nasceu o Parque Nacional de Iberá. "Não dá para gerar uma mudança permanente se isso não for uma política de Estado", diz a ativista.

Malu Campello/UOL Malu Campello/UOL

O Brasil como modelo

O local estava desestabilizado ambiental e economicamente. A inundação dos rios locais (causada pela construção de estradas, e pela alteração do fenômeno El Niño, que aquece as águas do Oceano Pacífico) havia acabado com os campos de criação de gado.

O trabalho já não atraía a maioria das pessoas. "A pecuária extensiva é solitária, envolve o tradicional gaúcho viajando a cavalo sem sua família", descreve Sofía.

O Brasil serviu de exemplo para o novo modelo econômico. Políticos de Corrientes visitaram o Pantanal brasileiro para entender o funcionamento de cidades em torno do bioma. A volta da onça-pintada significava a possibilidade de turismo de avistamento como uma opção para a região.

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O retorno das onças

Os primeiros cinco anos de trabalho foram sensibilizando a população sobre a mudança de sistema econômico, e ensinando os moradores de Corrientes a lidar com o bicho: regras para convivência e como agir em caso de encontros inesperados, por exemplo. Isso significava se envolver com o dia-a-dia das comunidades, falar com políticos locais e entender as particularidades da região.

Os outros dez anos foram dedicados a trazer os yaguaretés de volta. O investimento da Fundação, em 15 anos, para compra de terras e construção de infraestrutura, foi de 28 milhões de euros. Já a gestão do processo de reintrodução e manejo dos animais custa por volta de 1 milhão de dólares por ano. A verba vem de doações.

As primeiras onças, vindas de zoológicos ao redor do mundo, procriavam sob os cuidados de mais de 150 biólogos da Fundação Rewilding, em cativeiro. Depois, os filhotes eram transferidos para um semi-cativeiro (grandes cercados, semelhantes ao habitat natural, onde não tinham contato com humanos e caçavam presas vivas).

Esse processo acontecia ao completarem um ano de idade, e algumas vezes os bichinhos eram acompanhados por suas mães. Depois de um ano e meio, estavam prontos para ir viver na natureza de fato.

Em 2021, a espera de todos acabou quando os primeiros animais foram soltos na região. O pequeno Arami nasceu em 2018 no centro de reintrodução criado pela Fundação Rewilding. Já Jatobazinho é um exemplar brasileiro levado à Argentina por meio de colaboração com o governo.

Em 2022, nasceram seus dois primeiros filhotes, os primeiros concebidos em liberdade em Iberá. Eles receberam o nome de Arandu, "um ser sábio", e Jasy, "lua", em tupi-guarani. Eles foram avistados sendo carregados pela mamãe pelas câmeras que a Fundação tem para monitoramento do parque - com eles, agora a população de onças em Iberá é de dez exemplares.

Estamos perdendo soldados todos os dias nas selvas. E com quem vamos enfrentar essa batalha senão com nossa família, amigos, com bichos como as formigas e assim por diante?

Sofia Heinonen, bióloga

Malu Campello/UOL

Exército de formigas

Para a bióloga, a grande perda de biodiversidade e a crise climática que enfrentamos fazem parte de uma guerra em curso. E os animais com quem o ser humano evoluiu durante milhões de anos são nossos aliados nessa batalha.

Isso porque nós fazemos parte de um ecossistema completo, em que devem coexistir todas as espécies que ali habitam desde os tempos pré-históricos. Se uma espécie entra em extinção, como aconteceu com a onça-pintada, ocorre um efeito em cascata destrutivo para todos os seres vivos ao seu redor. Por isso é tão importante reintroduzi-las na natureza.

Mas há esperança. Sofía acredita que o mundo está compreendendo a urgência dessa luta, e que isso não pode ser deixado para as próximas gerações. Para ela, a prontidão de resposta à guerra contra o aquecimento global deve ser a mesma com que governantes atuam em conflitos geopolíticos, como a guerra na Ucrânia.

Parte da esperança em ações rápidas vem do Brasil, casa da maior floresta tropical do mundo, a Amazônia. "O presidente Lula tem uma oportunidade enorme agora, porque a comunidade internacional viu como pode ser prejudicial ter um governante que não valoriza a biodiversidade".

Parece uma história infantil, mas é a realidade: os animais são nossos aliados. Nós, sozinhos, não podemos fazer nada. Não existe tecnologia para substituir a natureza, então o que podemos fazer é tentar trazê-la de volta o mais rápido possível.

Sofia Heinonen, bióloga

Malu Campello/UOL

Turismo de onça

A volta das onças representou um renascimento também para os dez municípios que ficam em volta do Parque. "Com o turismo de observação de fauna, o jovem parte para estudar e volta como técnico, volta sabendo línguas, volta revalorizando a cultura", diz Sofía.

"O turismo gera a possibilidade de que filhos de camponeses voltem à cidade, mas de um lugar de orgulho, de se formar, de contar uma história onde são protagonistas da mudança."

A nova atividade econômica também abriu os braços para mulheres, algo que a pecuária extensiva tradicionalmente não faz.

"A cultura em áreas rurais ainda é muito conservadora e é preciso um trabalho muito profundo para que a mulher recupere sua auto-estima e saiba que pode ser uma peça fundamental em sua sua casa."

Sofía gosta de ser chamada de ativista porque é preciso agir e atuar. Para ela, as pessoas na Argentina veem os ativistas como românticos, alguém com bons valores, mas que não vai muito longe.

No Brasil, os ativistas foram mais longe e conseguiram muitas coisas. É por isso que acho que há medo deles. E isso é uma coisa boa: quanto mais se têm medo de um ativista, melhor é o seu trabalho.

Sofia Heinonen, bióloga

De mãe para filha

Nascida em Buenos Aires, o interesse de Sofía pela natureza veio ainda na infância, quando acampava em locais como Chile e Brasil com sua família. Ainda adolescente, trabalhou como voluntária em projetos de conservação ambiental.

Depois de estudar biologia, mudou-se, aos 24 anos, para a cidade de Iguazú para trabalhar na administração de parques nacionais argentinos. A proximidade com a fronteira brasileira lhe deu a chance de aprender um pouco de português e mais sobre os nossos ecossistemas.

Depois, quando se mudou para Iberá com dois filhos pequenos, construiu uma escola para eles e outras crianças, já que não havia nenhuma na região. Camila, sua filha, também se tornou ativista ambiental.

Malu Campello/UOL Malu Campello/UOL

Para todos os lugares

Depois do sucesso em Corrientes, o Chaco argentino, uma região árida, e os oceanos do país, degradados pela indústria petroleira e pesqueira, estão ganhando a atenção de Sofía.

Ela explica que a regeneração de cada ecossistema tem desafios particulares, mas nenhum deles está perdido para sempre, se agirmos rápido.

"Neste momento, a batalha está mais perdida do que ganha, porque estou lutando contra 300 anos de degradação [na Argentina]", diz. "Mas temos que continuar".

Depois de aprender com o Pantanal, Sofía vê o modelo de restauração de sistemas ganhar experiências em outros países do continente, como Bolívia e Paraguai.

"A América do Sul tem uma vida selvagem incrível. O problema é que não sabíamos valorizar. Agora que o público está valorizando, temos que aprender esse trabalho de mudar a economia", diz.

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