Ciência Divertida

Como Carlla Vicna fez jovens da rede pública de Manaus se apaixonarem por astronomia

Bárbara Forte De Ecoa Pablo Saborido/UOL

É do tamanho do sol a vontade de Carlla Vicna, 21 anos, fazer brilhar em cada estudante do ensino público de Manaus (AM) o gosto pela ciência. A jovem, que se mudou para a capital manauara aos cinco anos e passou por diversas escolas públicas da cidade, deparou-se com todo tipo de dificuldade: de biblioteca fechada a falta de professores.

As ausências, no entanto, motivaram a menina nascida em Belém (PA) a criar o próprio modelo de educação por meio de um projeto que atua para despertar potências que ali existem, mas que costumam estar adormecidas.

Nada de metodologias chatas, que dão sono no aluno só de imaginar. Com uma linguagem jovem, aulas práticas e um universo lúdico, ela e outros quatro jovens colocaram em prática, em 2015, o Projeto Cosmos, que aproxima a astronomia do currículo escolar.

O resultado, em quatro anos, foi maior que o esperado por Carlla: cerca de 2 mil estudantes impactados, 11 alunos de escolas públicas medalhistas na OBA (Olimpíada Brasileira de Astronomia e Astronáutica) e um salto no número de voluntários, que passou de cinco para 38. Juntos, eles replicam o modelo em parceria com instituições de ensino de Manaus.

Estudante de engenharia da computação da UFAM (Universidade Federal do Amazonas), Carlla foi uma dos nove jovens escolhidos entre 60 candidatos do Brasil para participar do Programa Jovens Transformadores da Ashoka, uma das cinco ONGs internacionais de maior impacto social. A organização promove a conexão entre agentes de transformação dos 92 países onde atua e realiza atividades para incrementar o trabalho deles.

Pablo Saborido/UOL
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Matemática por osmose

Nalva Cristina Andrade dos Reis, de 45 anos, engravidou de Carlla quando cursava matemática na UFPA (Universidade Federal do Pará). A menina acompanhou - de dentro da barriga e depois fora - grande parte das aulas da faculdade da mãe.

"Vinda de Castanhal para a capital, Belém, minha mãe estava longe de minha avó e não tinha com quem me deixar para continuar estudando. O jeito foi me levar junto."

Quando Carlla completou cinco anos, Nalva passou em dois concursos para trabalhar na rede municipal e estadual de ensino de Manaus. Mais uma vez, as duas fizeram as malas e se distanciaram ainda mais da família para que Nalva mantivesse o sonho de trabalhar como professora.

"Ela trabalha em três horários até hoje - de manhã, de tarde e de noite. Nos dois primeiros períodos, ela dá aulas de matemática na Escola Estadual de Tempo Integral Gilberto Mestrinho de Medeiros e, de noite, trabalha na Escola Municipal Anastácio Assunção, onde leciona para alunos do EJA (Educação de Jovens Adultos)", conta Carlla.

Determinação estelar

Em Manaus, Carlla, que já estava em idade escolar, mudava de casa e de escola com frequência, o que a fez conhecer os mais diversos métodos de ensino da rede pública local.

"A gente morava de aluguel e vivia mudando. Era bem sofrido, pois, quando eu me adaptava em uma escola e criava uma relação, tinha que sair. O acesso a variados cenários estudantis me fez ter, desde muito cedo, uma consciência das carências daqueles lugares", lembra a jovem.

Eu tinha nove anos quando reclamei ao diretor de uma das instituições que a biblioteca não abria. E eu estava na melhor escola por onde passei, na zona sul"

Ao migrar para a zona leste, os problemas foram ampliados: "Faltavam professores e, para que todos conseguissem acompanhar as disciplinas, o ensino era nivelado por baixo. Havia uma série de precariedades".

Aos 11, Carlla chorava todo dia. Não queria mais ir à escola, já que não era mais divertido estudar. Nalva, então, desdobrou-se para encontrar soluções de reforço para a menina, embora a renda da família fosse insuficiente.

"Descobrimos um cursinho pré-vestibulinho chamado Provest, que preparava o aluno para cursar o ensino médio em escolas técnicas. Consegui uma bolsa e tive reforço em português e matemática por dois anos", conta.

"O discurso motivacional dos professores mudou minhas perspectivas com relação aos estudos. Eu comecei a me enxergar em uma escola técnica de qualidade e comecei a aspirar uma vaga em universidade pública. Dediquei-me ao máximo até passar na Fundação Nokia (hoje Fundação Matias Machline), onde cursei o ensino médio e fiz o técnico em mecatrônica."

Minha mãe sempre me falava que só havia encontrado oportunidade por meio da educação e que essa era a única forma de a gente mudar. Vem daí a base da minha crença de que a educação é, mesmo, transformadora."

Carlla Vicna, fundadora do Projeto Cosmos

Pablo Saborido/UOL Pablo Saborido/UOL

Uma jornada espacial

"Eu sempre me interessei por disciplinas de exatas e, antes mesmo de chegar ao ensino médio, lia livros de química e física. Não entendia nada!

Quando eu iniciei os estudos no ensino técnico, fui estimulada por outro professor, Reginaldo Paixão, a estudar para as olimpíadas de matemática, física, química e... astronomia.

Ele dizia que os mais bem colocados poderiam ir para uma jornada espacial. Eu não tinha ideia do que se tratava, mas queria estar lá. Peguei os materiais de apoio que ele nos disponibilizou e comecei a estudar. No primeiro ano, conquistei uma medalha de bronze na OBA (Olimpíada Brasileira de Astronomia e Astronáutica). Não foi o suficiente para ir, mas eu me mantive firme nos estudos.

Conclusão: no ano seguinte, em 2013, eu não só fui medalhista de ouro, como acertei todas as questões da prova e fui convidada para participar da tão sonhada Jornada Espacial, uma viagem de uma semana para São José dos Campos (SP), cidade considerada um polo astronômico do país.

Lá, eu pude conhecer gente de todo o país e ainda assistir a palestras de cientistas brasileiros, além de poder colocar a mão na massa, criar experimentos - muito do que a gente faz no Projeto Cosmos hoje. Foi como se um mundo de oportunidades, mais uma vez, se abrisse para mim."

Pablo Saborido/UOL

Ação e reação

A experiência de estudos durante todo o ensino técnico ajudou a jovem não apenas nas olimpíadas nacionais. O gosto pela educação fez com que Carlla Vicna passasse em primeiro lugar no vestibular de Engenharia da Computação da UFAM (Universidade Federal do Amazonas), em 2014. E sem muito esforço, segundo ela: "Eu nem precisei estudar".

Diante da nova oportunidade, a universitária parou para refletir sobre sua trajetória até então e chegou à conclusão de que precisava retribuir de alguma forma.

"Eu fiquei pensando que muito do que eu aprendi sobre astronomia nunca estaria na grade curricular daquelas escolas onde eu havia estudado anos antes, e que eu tinha a chance de manter isso vivo em mim, levando o que aprendi para os alunos de escolas como aquelas onde minha mãe permanecia lecionando.

Escrevi um projeto em duas páginas de Word, com metodologia científica, e levei para a diretora da Fundação Nokia. Disse que já tinha aulas prontas e outros voluntários para trabalhar comigo - tudo mentira. Mas, mesmo assim, ela confiou nas minhas intenções e a gente começou o que, depois, chamamos de Projeto Cosmos.

Reuni quatro amigos: Dimerson, Matheus, Thayná e Luan. A ideia era criar um curso preparatório para a OBA fora do horário escolar. Com memes, gifs, piadas e uma linguagem jovem, que se aproximava dos demais alunos, conseguimos fazer com que muita gente achasse divertido acordar cedo aos sábados."

A alma do projeto é a diversão. E essa diversão fez com que a gente se surpreendesse com o empenho dos alunos. Prova disso foi um dia em que, mesmo após uma chuvarada, o auditório da escola ficou lotado com 50 pessoas. E elas não eram obrigadas a estar ali."

Carlla Vicna, fundadora do Projeto Cosmos

Com o tempo, Carlla e os amigos começaram a levar a proposta para a rede estadual e municipal. "Hoje, estamos cinco escolas - uma municipal e quatro estaduais, na capital, e já visitamos dez escolas de comunidades ribeirinhas para falar sobre ciência."

O trabalho chamou a atenção, inclusive, da UFAM, que levou as atividades para dentro do ambiente universitário. O Cosmos foi formalizado como um projeto de extensão da universidade e hoje tem uma sala no campus, onde também oferece aulas com livre acesso para qualquer estudante.

Os resultados também apareceram nas olimpíadas: só nas escolas públicas foram 11 medalhas (uma em 2017, três em 2018 e sete em 2019). Antes disso, o projeto não tem dados registrados sobre os medalhistas que participaram da ação. Ao todo, cerca de duas mil pessoas passaram pelas aulas preparatórias.

Pablo Saborido/UOL

Espaço não é o limite

A visibilidade conquistada por Carlla e os amigos rendeu a aprovação do projeto, dois anos seguidos, no Simpósio em Atividades de Educação Espacial - realizado na Hungria em 2018, e na Inglaterra em 2019. A ação também passou em dois editais de financiamento, o que garantiu verba de R$ 180 mil para investimento em novas atividades.

"Com o dinheiro em mãos, começamos dois projetos paralelos: o Fabuloso Circo da Ciência e o Clube da Ciência. Em ambos os casos, nosso objetivo é atuar não apenas com estudantes do ensino médio, mas crianças de seis a 15 anos, ajudando todos a se divertirem por meio dos experimentos e mão na massa."

Carlla explica que as ações não têm o objetivo de formar cientistas, mas de despertar o espírito cidadão em cada jovem de Manaus:

O principal não é que eles aprendam cálculos e fórmulas. A gente acha importante eles aprenderem o processo da ciência para que apliquem no dia a dia. Nem todo mundo vai ser cientista. A gente nem quer isso. A gente quer formar cidadãos. E a gente acha que, para isso, é preciso ter uma base científica muito boa, de sempre questionar, ter curiosidade em relação às coisas. Saber aplicar uma metodologia para investigar algo e descobrir, chegar a um conhecimento. E se perguntar sempre se o conhecimento, a informação, é verdadeira."

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