Gente quer casa

Carmen Silva saiu da Bahia, morou nas ruas de São Paulo e há 24 anos luta para que todos tenham moradia

Paula Rodrigues De Ecoa, Em São Paulo (SP) Fernando Morais/UOL

"Quando eu vim da Bahia, tive que morar um ano nas ruas de São Paulo. Passava o dia andando a pé pela cidade e à noite ia dormir em um albergue da prefeitura. O povo acha que sem-teto é só quem mora na rua, né? Nada disso. Todo mundo que não tem moradia própria está sem teto.

Nas reuniões [do movimento por moradia] fui entendendo que nem eu, nem nenhum outro retirante que viesse para São Paulo encontraria uma cidade acolhedora. A gente não tem direito à cidade, que é você poder andar a pé até sua casa, até o trabalho, até um cinema, teatro, é o direito ao acesso às coisas que a cidade tem a oferecer, né? Mas eu aprendi que esse pertencimento pode nascer quando você dialoga com a cidade. E como você faz isso? Participando das discussões que acontecem nela. Pertencimento é participação efetiva na construção das políticas da cidade.

Aí eu fui buscar saber o que era uma secretaria de habitação, secretaria de saúde, subprefeitura... E assim eu aprendi também que para frequentar esses espaços e para que nossos pedidos tenham força, a gente precisa estar junto e organizado".

Uma baiana sozinha nas ruas de São Paulo

Ela mal chega à Ocupação 9 de julho, no centro de São Paulo, e já vê coisa errada: "Quem foi que botou a roupa suja junto com a limpa?". Mas logo se distrai com o barulho do celular que toca de cinco em cinco minutos. São 16h e Carmen Silva Ferreira está desde às 6h em pé botando a vida em ordem. Anda de um lado para o outro resolvendo problemas. Avisa que no sábado a água vai ser cortada temporariamente para realizarem a limpeza da caixa d'água. Pergunta para as crianças sobre a escola. Dá bronca na adolescente desobediente que revira os olhos com o puxão de orelha e reclama soltando um "oxe" bem baixinho. "Oxe nada. Aqui tem ordem, viu?", responde com firmeza a baiana, mãe, líder de movimento por moradia, atriz e professora de Urbanismo no Insper (Insper Instituto de Ensino e Pesquisa).

Filha de uma trabalhadora doméstica e de um militar, Carmen, 61, nasceu em São Estevão, na Bahia. Mudou com a família para Salvador aos 4 anos e lá ficou até os 35, quando pegou um ônibus com destino a São Paulo — onde mora até hoje na região central da cidade.

Deixou com o pai dela os 8 filhos que teve com o ex-marido. Precisou fazer isso para fugir da perseguição e violência do homem com quem casou aos 17 anos. "Foi uma grande burrada ter casado porque, na verdade, só saí de um dono para o outro".

Em 1993, juntou o medo e a esperança de uma vida melhor, fez as malas e entrou em um ônibus com destino à capital paulista. O dinheiro do seguro-desemprego que ganhou com a demissão de uma empresa de transporte urbano onde trabalhava desde os 16 anos só durou por um ano.

Não conseguiu arrumar emprego na capital paulista e, sem escolha, foi para a rua. Quando perguntada sobre o que sentiu, ela sorri. Os olhos pequenos se espremem ainda mais com o sorriso. Brilham muito também. "Orgulho!", responde. Carmen não sabia como, mas tinha certeza de que a situação seria temporária; que não tinha saído da Bahia à toa.

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Tanta casa sem gente

Todo dia pela manhã andava a pé por São Paulo enquanto procurava emprego. Para ela, o momento mais estranho era sempre quando o relógio marcava 18h. À época, o centro de São Paulo era pouco habitado. Quando terminava o fim de expediente para muitas pessoas, o que se via nas ruas era um vai e vem. Um formigueiro de gente indo para o terminal de ônibus Parque Dom Pedro pegar o transporte para casa.

"Aí, eu começava a olhar para cima, para os prédios, e muitos, muitos mesmo estavam sem ninguém. As pessoas só passavam pelo centro, não moravam aqui.'"

Toda noite, após perambular pela cidade à procura de emprego e dinheiro para conseguir trazer logo os filhos para perto, ela ia para um albergue noturno da prefeitura, que é um espaço cedido para que pessoas em situação de rua tenham onde dormir. Em um deles conheceu uma mulher que frequentava assiduamente as reuniões do Fórum de Cortiços, movimento que luta por moradia, criado na década de 1990.

"Essa pessoa me chamava direto para participar das reuniões, falava da luta deles para que todo mundo tivesse casa. Pra ser sincera, eu não acreditava em nada disso, eu acreditava que eu tinha que arrumar emprego e só isso já seria suficiente para mudar de vida", conta. Mas a conhecida acabou ganhando pelo cansaço.

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Por que ocupar um prédio?

Movimentos de moradia como no que Carmen entrou começaram a ocupar prédios na cidade de São Paulo com mais frequência no final da década de 1990. Ela participou pela primeira vez de uma ocupação em 1997, mas não chegou a morar lá. Só conseguiu uma casa quando em 2 de novembro daquele ano entrou em um prédio da Rua Álvaro de Carvalho.

Agora conhecido como Ocupação 9 de Julho, o espaço foi o berço para o nascimento do Movimento Sem-Teto do Centro, criado por Carmen e outras mulheres, em 2000, quando decidiram tomar outros caminhos e sair do Fórum de Cortiços. Foi também nesse ano que finalmente Carmen conseguiu trazer os filhos da Bahia para morar com ela na capital paulista. Moraram lá por seis anos.

Com 14 andares, o prédio é enorme. Fácil de se perder lá dentro. Tem uma grande horta na entrada ao lado de um abacateiro carregado. "Não fica embaixo dele, não, vai acabar caindo abacate na sua cabeça", avisa. No primeiro andar, há escritórios, cozinha, brinquedoteca e toda a parte de administração da ocupação. No subsolo, uma galeria de arte que recebia centenas de pessoas nos fins de semana pré-pandemia. Os andares de cima são destinados a moradia. Construído em 1943, o prédio foi sede do INSS até 1976 e depois foi esvaziado. Foram 21 anos sem ninguém dentro. Por esse motivo foi escolhido para ser ocupado.

Carmen explica melhor como funciona a escolha de lugares a serem ocupados por movimentos de moradia: "Primeiro a gente identifica o prédio pelo tempo que ele está abandonado e a dívida de IPTU, ou seja, quando os donos deixam de pagar os impostos para a cidade. Não entramos em nenhum prédio que esteja bonitinho com o dono pagando imposto, não, só nos que estão em dívida."

Ao todo, são 290 mil imóveis vazios na capital paulista, de acordo com o Censo de 2010 do IBGE. Desde 2014 até 2019, a prefeitura de São Paulo notificou 1.425 imóveis ociosos que não cumprem a função social, ou seja, são construções que não estão sendo usadas em benefício da sociedade.

A situação que Carmen e os membros do MSTC encontram nos prédios é precária: muito lixo, entulhos, ratos. Por isso, a primeira ação que organizam é um mutirão de limpeza. Para garantir a manutenção do prédio, as famílias pagam uma taxa de R$ 200 mensais.

Fernando Moraes/UOL

"Mãe de todos nós"

Carmen lidera o MSTC, que coordena cinco ocupações, sendo a 9 de Julho a maior delas com 123 famílias. A família da taxista Marineide Jesus da Silva é uma delas. Ela mora há três anos lá com os seis filhos e o marido. Veio para a ocupação por causa da falta de condição de pagar o aluguel que aumentava.

"Conheci a dona Carmen e o movimento por causa de uma amiga minha. Estava procurando casa para morar, mas qualquer kitnet de um cômodo já custava mais de R$1200. Não tinha como pagar", conta. A taxista entrou pela primeira vez na Ocupação do Hotel Cambridge há oito anos.

À época, havia um pedido da prefeitura para que as famílias que lá moravam saíssem do local. Mesmo assim Marineide confiou, principalmente em Carmen. "Eu fiquei com medo, mas ela ia conversar com a gente, explicava como funcionava tudo isso. Ela falava que ia dar certo, e a gente confiava. Essa mulher é como uma mãe pra todos nós, né? A gente aprende muito com ela. Aprendi muito sobre meus direitos."

Apesar das ocupações serem as ações mais vistas, Carmen conta que quando pensou em criar o MSTC, sabia que ele também precisava ser educativo para ajudar as pessoas a entenderem coisas básicas e necessárias. O primeiro passo do movimento é o de orientar as famílias que o procuram sobre a emissão e atualização de documentos pessoais para que assim possam se cadastrar em programas de habitação social, por exemplo. "Não pode passar duas eleições sem votar porque aí o CPF é bloqueado e isso faz com que não possa participar de nenhum programa social, entende? Esse é o primeiro passo porque temos a prática da moradia como prática de cidadania mesmo."

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

"A cidade é a gente que faz"

Por causa de uma carta anônima, em junho de 2019, Carmen foi proibida pela justiça de entrar nas ocupações por ser acusada de associação criminosa e extorsão. A extorsão se referia ao valor de R$ 200 que as famílias pagam pela manutenção dos prédios que ocupam. Carmen precisou passar um tempo foragida.

Foi das fases mais tensas da vida da ativista. Dois de seus filhos, aqueles que ela havia lutado tanto para trazer da Bahia para uma casa em São Paulo, foram presos. Estamos falando da atriz e cantora Preta Ferreira e do educador Sidney Ferreira. O inquérito investigava um desabamento de prédio no centro de São Paulo, onde viviam 150 famílias. No entanto, a ocupação desse prédio nada tinha a ver com o MSTC, movimento liderado pro Carmen. Os cem dias de prisão viraram, inclusive, um livro "Minha Carne: Diário de Uma Prisão", de Preta Ferreira.

"Eu fiquei longe, mas com o coração nos meus filhos. Eu preparei eles para lutar por casa mesmo, mas a injustiça machuca", diz. No final do ano, porém, desembargadores absolveram Carmen por falta de provas e por acreditarem que as acusações eram insuficientes.

"Depois que eu saí do meu exílio, eu dei aula magna para juiz, para defensor público", contou Carmen Silva para o Suplemento Pernambuco, em 2020. É que a líder do MSTC abrira as portas da ocupação para alunos de urbanismo, o que acabou em um convite para que Carmen desse aulas em lugares como o respeitado Insper e a Escola da Cidade. Nada mal para uma retirante que chegou à cidade procurando "apenas" emprego e teto e ganhou o mundo.

+ Causadores

keiny_andrade/UOL

Ferrréz

Ele vendeu 100 mil livros sobre a quebrada e para a quebrada

Ler mais
Arte/UOL

Capitã Carola

Ela virou heroína por salvar refugiados na Europa

Ler mais
Patrick Mendes/UOL

Gilmara Cunha

"Brasil pode mudar pelas mãos de uma mulher trans"

Ler mais
Topo