A capitão pela justiça

Carola Rackete foi detida após comandar missão de resgate de refugiados no Mar Mediterrâneo; agora lança livro

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo Divulgação

"Eu não tinha um grande interesse por questões ambientais ou sociais quando era mais jovem. Em 2011, me formei como oficial náutico e imediatamente comecei a trabalhar em um quebra-gelo da pesquisa polar alemã.

Na minha primeira viagem, subimos até o Polo Norte e fiquei bastante chocada com a sua aparência. Eu tinha essa ideia, provavelmente tirada de livros infantis que tinha lido ou de documentários que havia assistido, de que haveria muito gelo e que seria muito difícil chegar lá com o navio. Mas na verdade foi muito fácil, porque a maior parte do gelo tinha apenas um ano de idade — era gelo que havia congelado no inverno anterior, enquanto no passado costumava haver muito do chamado gelo multiano, formado ao longo de vários anos. Tivemos realmente que procurar por muito tempo até encontrar gelo espesso e antigo para fazer o trabalho de pesquisa. Isso foi há nove anos. Ficou muito pior desde então.

Quando conversei com os cientistas nesta missão, havia pessoas que faziam esse trabalho há 20 ou 30 anos. Eles diziam: 'nós temos relatado os dados ao longo de toda nossa carreira. Sempre pensamos que se levássemos os fatos científicos aos políticos, aos governos, eles tomariam as medidas cabíveis'.

Mas é claro que isso não funcionou. Trabalhei dois anos e meio para o instituto de pesquisa polar alemão e tive muitas conversas semelhantes a essa com cientistas. Eles diziam que a ciência que vinha sendo produzida sobre aquecimento global, proteção da biodiversidade, pesca predatória, não estava levando a ações políticas.

No começo, talvez eu fosse ingênua, tivesse esperança de que, trabalhando em um navio de pesquisa, estava fazendo algo de bom, contribuindo com algo útil. Mas percebi que não. Porque, claro, precisamos da ciência, mas o que falta mesmo é vontade política para implementar as soluções e recomendações dos cientistas. Esse é o grande problema. Por isso decidi que queria fazer algo além de pilotar o ônibus dos cientistas."

Em junho de 2019, Carola Rackete teve seu nome estampado nas manchetes dos principais jornais da Europa e do mundo. Capitão da Sea-Watch 3, uma embarcação que havia resgatado mais de 40 pessoas que se encontravam em botes inseguros no Mar Mediterrâneo, a alemã foi detida por atracar sem autorização no porto de Lampedusa, na Itália.

Olhando de fora, a decisão pode aparentar ter sido impetuosa, tomada no calor do momento. Mas não foi bem assim.

A embarcação havia ficado parada no mar territorial da Itália durante 17 dias, sob um sol escaldante de verão, sem que os passageiros tivessem autorização para desembarcar em solo europeu. Muitos se encontravam em condições de saúde delicadas devido à travessia feita para deixar seu país de origem. Membros da tripulação precisavam vigiar alguns dos resgatados durante todo o tempo para evitar que cometessem suicídio. Autoridades italianas iam e vinham, pedindo paciência.

Aportar à revelia do governo italiano era o último recurso para a capitão — como prefere ser chamada em serviço, sem flexão do substantivo para o feminino —, que esperou tanto quanto possível para que as providências cabíveis fossem tomadas. Por fim, depois de muito refletir, fez aquilo que enxergava como seu dever diante da situação e que, para seu desagrado, rendeu-lhe fama de heroína e a alçou a posto de referência na luta de refugiados pelo mundo.

O episódio é o ponto de partida do livro "É Hora de Agir - Um Apelo à Última Geração", escrito por Rackete e lançado no Brasil no mês passado pela Arquipélago Editorial. O livro já foi publicado países como Alemanha, Itália, França e Holanda. Ancorado na experiência pessoal da autora e no percurso que a transformou numa ativista, o livro conecta a crise humanitária das migrações à crise climática global e faz um chamado urgente para a mobilização pelo clima e a justiça social.

Guglielmo Mangiapane/Reuters Guglielmo Mangiapane/Reuters

Nascida no norte da Alemanha, Carola tem pouco mais de 30 anos e leva uma vida quase nômade, com alguns poucos pertences reunidos em uma mochila, comandando embarcações de pesquisa e colaborando com organizações como o Greenpeace.

Ela não trabalha formalmente para a Sea-Watch, organização responsável pela missão de resgate de 2019. Tornou-se voluntária após tomar conhecimento de que a ONG enfrentava grande necessidade de reforços. Carola já havia comandado algumas missões de resgate em anos anteriores ao salvamento que a tornou conhecida, mas tinha por foco principal a preservação ambiental.

Sua atuação para salvar migrantes forçados a colocarem suas vidas em risco na travessia do Mediterrâneo é descrita no livro quase como obra do acaso, o cumprimento de uma responsabilidade inescapável de qualquer oficial náutico.

"Muitas pessoas comuns fazem coisas muito corajosas o tempo todo e a maioria delas não recebe a atenção da mídia. Não quero essa atenção. A história deve ser sobre as pessoas que arriscam suas vidas [ao migrar] para encontrar segurança", disse Rackete a Ecoa, em uma entrevista concedida via Zoom, de uma embarcação localizada em algum lugar no Círculo Polar Ártico, próximo à Noruega.

Atual coordenadora da campanha de oceanos do Greenpeace no Reino Unido, a jornalista brasileira Julia Zanolli conheceu a ativista no início de 2020, em uma expedição à Antártida. Ela afirma que a postura crítica e reservada de Rackete com relação a ter sido alçada a um lugar de autoridade sobre a questão migratória na Europa fez crescer sua admiração pela ativista.

"Acho que [a projeção que ela ganhou a partir de 2019] tem muito a ver com o que ela fala mesmo, com o fato de ser uma mulher branca europeia e de as pessoas precisarem de heróis", disse Julia. "Mas também tem o lado de ela realmente inspirar muita gente, da coragem. Essa é uma palavra que me salta ao falar dela. Ela tem um comprometimento total e uma determinação, de saber o que está pegando e o que precisa ser feito. E é uma pessoa muito coerente -- isso se reflete no que ela faz".

O mito a respeito dos heróis é que eles são pessoas especiais, diferentes das pessoas comuns. Que podem alcançar coisas que uma pessoa comum não pode. Acredito que esse mito é falso e não quero reforçá-lo.

Carola Rackete, em entrevista a Ecoa

O fato de que alguém que sente tamanho incômodo com o posto de "salvador branco" e com a exposição midiática causada pelo ocorrido em Lampedusa tenha concordado em escrever um livro narrando sua experiência soa improvável, para não dizer contraditório.

Mas a justificativa de Rackete para a publicação é apresentada quase como um projeto de subversão: por maior que seu desconforto com os holofotes pudesse ser, a ativista compreendeu que poderia aproveitar o interesse despertado no público para passar sua mensagem.

"Muitos editores me abordaram após a missão de resgate, creio que interessados naqueles 17 dias", disse. "Pensei que escrever um livro poderia ser uma maneira de mostrar às pessoas as conexões entre o que está acontecendo com aqueles que são forçadas a migrar, no meio ambiente, na economia e por que precisamos fazer alguma coisa. É um livro para levar algumas ideias novas àqueles que sabem da história do Sea-Watch 3 e que talvez comprassem o livro interessados em saber mais".

De fato, as conexões mencionadas por Rackete são o eixo central do livro, que recusa a ideia de uma luta pela questão climática que não leve em consideração a justiça social e vice-versa.

"Precisamos de movimentos que reivindiquem não apenas ação climática, mas justiça climática. Partidos de extrema-direita também têm propostas para lidar com o colapso climático. Na Europa, sua proposta clara é manter as fronteiras fechadas e deixar [quem vem de fora do continente] se afogar no Mediterrâneo, deixar morrer. Por isso precisamos basear nosso movimento em um chamado por justiça e redistribuição", afirmou a ativista.

Sean Gallup/Getty Images Sean Gallup/Getty Images

A jornalista Julia Zanolli acredita ser poderoso o uso que a ativista faz de sua notoriedade para jogar luz sobre a crise climática e suas relações com questões sociais e humanitárias. Zanolli destaca que essa ponte ainda é feita por pouca gente, mas deve ficar cada vez mais em evidência.

Rackete é extremamente crítica em relação ao papel exercido pela União Europeia e por todo o norte global na manutenção da ordem econômica e política que está levando o planeta ao limite. Ela considera que acolher pessoas que enfrentam riscos e privações em seus países de origem é uma obrigação moral e legal do continente e o responsabiliza pelos fatores que levam pessoas a migrar, como conflitos e eventos climáticos extremos.

Ela alerta, ainda, que as migrações devem se intensificar no futuro próximo, em grande parte devido à crise climática. Por isso, vê o tratamento dado ao tema como uma questão fundamental e determinante para a sociedade que queremos construir.

"Há uma clara erosão da adesão aos direitos humanos. Atualmente, ela afeta os mais vulneráveis da sociedade, como refugiados e pessoas sem-teto. Mas, gradualmente, afetará mais e mais grupos. Se permitirmos que os direitos humanos sejam violados para alguns, em breve serão completamente esvaziados de seu significado para todos", disse.

Rackete pondera que o atual contexto político global, marcado pela ascensão de autoritarismos, dificulta a atuação progressista da sociedade civil, mas reforça que o único caminho é se engajar. "E quanto mais cedo melhor, porque só ficará mais difícil se não for feito agora".

Ela é uma ativista muito comprometida, que está na causa há muito tempo e tem uma visão estratégica do ativismo ambiental no contexto que vivemos agora.

Julia Zanolli, ativista brasileira que conheceu Carola em 2020

Thomas Lohnes/AFP Thomas Lohnes/AFP

A última geração

A necessidade de agir imediatamente, como coloca o título do livro, deve-se ao fato de estarmos nos aproximando dos chamados pontos de não retorno.

Elementos do sistema terrestre — como a atmosfera e os oceanos — têm um equilíbrio instável e, ultrapassado determinado nível de mudança climática, podem se tornar altamente sensíveis. Com isso, perturbações mínimas podem levar a transformações ambientais drásticas. Os pontos de não retorno podem ainda desencadear processos que se retroalimentam e gerar entre si um efeito cascata.

É a essa iminência da catástrofe que a ativista se referiu ao endereçar seu livro à "última geração". "É claro que haverá gerações futuras, mas o clima talvez já esteja completamente fora de controle, de maneira que ficará cada vez mais difícil de fazer alguma coisa. Pode ser que tenhamos uma cascata de pontos de inflexão e que a partir disso a redução de emissões não tenha mais efeito sobre o clima", alertou.

O que acontecer nessa década, entre 2020 e 2030, será decisivo para o planeta

Mas por onde começar? A própria trajetória de Rackete pode dar algumas pistas, mas ela responde sem hesitação: agir coletivamente é o caminho.

"Na Europa, muitos ativistas ou organizações dizem coisas como 'você precisa comprar uma escova de dentes de bambu e deixar de usar sacolas plásticas', como se a gente pudesse mudar tudo através do comportamento do consumidor. O problema é que o mercado não vai mudar, se não mudou nos últimos 40 anos. Precisamos de ações políticas coletivas, construir movimentos de base", defendeu a alemã.

Como exemplo de movimento recente que teve êxito em colocar a opinião pública a favor da pauta climática, ela citou o movimento Greve pelo Clima, iniciado pela jovem sueca Greta Thunberg e encabeçado por crianças e jovens de vários países que faltam à aula nas sextas-feiras para protestarem pelo direito a terem um futuro.

"É avassalador ser cobrado a resolver sozinho os problemas do mundo. Muitas pessoas ficam muito frustradas porque sentem que não têm poder. Como eu, sozinha, poderia contribuir de alguma forma para reduzir as emissões? Acho que praticamente ninguém pode", pondera.

Carola virou um ícone por que assumiu riscos pessoais para ajudar um grupo de desconhecidos, porém sua jornada não é individual, como gosta de frisar. Seu protagonismo, ainda que exista à revelia, é ferramenta para mostrar a potência de ações organizadas.

"A única coisa que podemos fazer é nos engajar coletivamente. Junte-se a outros que já estão ativos em iniciativas, construa novas iniciativas e faça-as crescer. A chave é a mobilização de muitas e muitas pessoas com o mesmo objetivo de conectar justiça social e meio ambiente limpo para nossa própria sobrevivência e a de todas as espécies vivas neste planeta", recomendou Rackete.

Entre o fim de setembro e meados de novembro do ano passado, ao lado de outros ambientalistas, ela participou da ocupação de uma floresta na Alemanha. Os manifestantes fizeram acampamentos e construíram bloqueios e casas nas árvores para impedir a derrubada de parte da floresta de Dannenroeder, área de preservação ao norte de Frankfurt, para dar lugar à expansão de uma Autobahn (as famosas rodovias alemãs).

"Não tem outro caminho além de se juntar e fazer acontecer. A gente às vezes acha que tem a opção de agir ou não. Essa opção não existe mais. Por isso acho que esse chamado para a ação da Carola vem num momento importantíssimo e espero muito que ajude pessoas a se engajarem com a questão ambiental", afirmou Zanolli.

Boris Roessler/picture alliance via Getty Images Boris Roessler/picture alliance via Getty Images

"Só porque uma lei existe, não quer dizer que esteja certa"

O livro "Hora de Agir" é dedicado "a todas as vítimas da obediência civil". É essa obediência, segundo Rackete, que permite que governos continuem cedendo ao lobby do setor privado em prejuízo do planeta e causando a morte de migrantes pelo fechamento de fronteiras.

"Fazer petições, escrever cartas, marchar com uma faixa, todas essas estratégias, digamos, normais [de protesto] não são tão eficientes quanto se colocar diretamente em perigo", ponderou. A manifestação contra a Autobahn, por exemplo, acabou com a ativista novamente detida e com colegas sendo retirados do local carregados pela polícia.

Sem romantizar o risco desse tipo de protesto, que pode ser muito maior a depender do contexto local e do sistema político, Rackete acredita que ações mais drásticas de desobediência civil, como ocupar florestas ou atracar um barco com dezenas de refugiados sem autorização em um porto seguro, costumam ser mais eficazes porque tornam visíveis problemas sociais ou ambientais que não estão recebendo tanta atenção quanto deveriam.

Essa prática da desobediência, de uma postura questionadora, ativa e destemida, está conectada a um senso de dever e justiça que parece nortear a forma de agir e pensar de Rackete. Nessa perspectiva, proezas como a que realizou no Sea-Watch 3 são colocadas por ela apenas como um imperativo ético, como a atitude correta e necessária a ser tomada.

O exercício de pensar por si próprio a respeito de leis e normas que regem o funcionamento da sociedade, questionando se são corretas e justas ou se precisam evoluir — seja na forma como um país lida com migrantes que tentam conseguir asilo ou com suas florestas —, é a base da ação política proposta por Rackete. Ela afirma que, se essa avaliação não for feita, estamos fadados à aplicação de regras ultrapassadas e sem sentido, que tendem a bloquear mudanças essenciais para o futuro dos seres humanos.

"Só porque algumas leis existem, não quer dizer que sejam justas ou moralmente corretas. Isso fica evidente ao olharmos para a história", disse Rackete.

Christoph Soeder/picture alliance via Getty Images Christoph Soeder/picture alliance via Getty Images

Espero que, no futuro, também olhemos para trás pensando que tínhamos muitas leis estúpidas, que [o momento atual] era como a Idade Média. 'O que as pessoas estavam pensando, dando tanto poder às indústrias? Permitindo que organismos vivos como florestas fossem extirpados apenas para obter lucros, ou ainda permitindo tanto racismo e disparidade salarial entre homens e mulheres?'

Carola Rackete

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