Inclusão de talentos

Com empresa de consultoria, Carolina Ignarra já gerou mais de 7 mil empregos para pessoas com deficiência

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo (SP) Divulgação

"Nós estamos todos misturados em uma sociedade que culturalmente pede para a gente ignorar e negligenciar a deficiência. As pessoas com deficiência foram educadas a não falarem sobre suas deficiências também, o que eu sou radicalmente contra.

Eu não tenho que trazer a minha deficiência como meu único valor, minha história não se resume à minha deficiência. Mas ela existe, e de vez em quando eu preciso falar sobre as limitações que ela me traz. Só que acredito que essas limitações podem ser compensadas quando a gente tem informação.

Entendo que estar no mercado de trabalho deve ser um direito de todas as pessoas, mas infelizmente nossa cultura capacitista tirou esse direito das pessoas com deficiência por muito tempo.

Para nós existem três pilares que antecedem a vida antes do trabalho. O primeiro é a família, mesmo famílias incríveis paternalizam muito as pessoas com deficiência, o que atrapalha muito. O segundo é o acesso à saúde de qualidade que ainda é complicado no nosso país. E terceiro é a educação. Os que chegam na escola encontram um ambiente que não atende às necessidades deles. Essas pessoas chegam para arrumar trabalho já tendo vivido toda essa estrutura de exclusão.

Hoje estamos trabalhando para desconstruir essas privações."

O sorriso de Carolina Ignarra chega antes dela. E parece que nunca vai embora. Esteve estampado no rosto todo o tempo enquanto contava sua história — a mesma que ela repete várias vezes para empresas que a contratam para prestar consultoria de diversidade e inclusão.

Para ela, é com bom humor que também se fala sério. "Eu pensava: 'cara, agora eu entendi porque eu estou paraplégica! O mundo estava precisando da minha história!' Porque é um exemplo de uma reintegração no trabalho muito bem feita logo depois do meu acidente", diz.

Em 2001, aos 22 anos, a moto em que Carolina estava foi atingida por um carro. O acidente acabou causando uma lesão medular completa que a fez acordar no hospital sem sentir as pernas e com algumas preocupações na cabeça. A principal, ela conta, era o medo de não conseguir engravidar. O que acabou não se confirmando. Hoje tem uma filha adolescente de 16 anos que, inspirada pela mãe, já sonha em dedicar a vida a algo que gere impacto social.

Depois, pensou no trabalho. Àquela época, estava empregada em várias empresas como instrutora de ginástica laboral, e, além disso, sem carro, utilizava o transporte público de São Paulo para realizar o trajeto até os trabalhos. Foram esses motivos que levaram-na a acreditar que, por agora usar uma cadeira de rodas para se locomover, não seria mais possível continuar na profissão.

Ledo engano. As coisas deram tão certo que, aos poucos, ela foi construíndo o que em 2008 estruturou como a Talento Incluir, empresa de consultoria em inclusão que "entende que as pessoas devem ser tratadas de forma igual quando são iguais, e de forma diferente quando são diferentes". Por esse trabalho, em 2020, Carolina entrou para a lista das 20 mulheres mais poderosas da Forbes Brasil.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Mas engana-se quem pensa que o público alvo das ações de Carolina são pessoas com deficiência. Ajudar essas pessoas é só a consequência de sua atuação. O principal foco é ajudar as empresas a enxergar os profissionais com deficência como profissionais, fugindo daquele retrato capacitista pintado pelas histórias de superação.

"No meu caso, a minha gestora olhou primeiro profissionalmente para mim: 'o que ela sabe fazer? Com o que ela tem experiência? Qual a maior habilidade dela?' E aí me deu uma função que contemplava tudo isso e que dava chance para eu me desenvolver, porque, de verdade, eu não estava pronta para fazer aquela atividade logo de cara, mas eu tinha perfil para aquilo", conta.

A gestora em questão foi a primeira a afastar qualquer dúvida que tivesse em relação à volta ao trabalho. Três meses depois do acidente, ela bateu na porta de Carolina a convidando para retomar as atividades. Inicialmente, montava aulas para outros professores aplicarem aos funcionários. E, na medida que a reabilitação ia acontecendo, outras responsabilidades foram surgindo.

Na época, a Lei de Cotas para Pessoas com Deficiência, estabelecida em 1991, começava a gerar frutos. Para Carolina, o resultado mais notório foi a quantidade de oportunidades de emprego que surgiram para ela. Mas a maioria nada tinha a ver com seu perfil. Criada em um bairro tranquilo da zona norte de São Paulo, ela cresceu jogando futebol e vôlei na rua com os amigos e amigas. Foi a paixão por esportes que a levou à faculdade de educação física.

Mas todas as propostas que apareciam após o acidente eram para cargos como atendente de telemarketing, secretária ou recepcionista, por exemplo. Empregos muito bons e que pagavam até mais do que ela ganhava, mas que nada tinham a ver com o perfil de amante de esportes e exercícios de Carolina.

As empresas não estavam acostumadas a ver uma pessoa com deficiência chegar, montar a cadeira, descer do carro e fazer tudo sozinha. Quando me viam com essa independência toda, eles não pensavam na Carol educadora física, pensavam só em contratar alguém com deficiência que saia na rua para preencher a cota que é obrigatória

Carolina Ignarra, fundadora da Talento Incluir

Logo de cara ela percebeu que algo estava errado. Nunca tinha aparecido tanta vaga assim para ela. Quando entendeu que o interesse vinha da obrigatoriedade da lei que diz que empresas com 100 ou mais funcionários devem destinar de 2% a 5% das vagas a pessoas com deficiência, ela diz que até se sentiu ofendida. Não entendia a necessidade das cotas. Se achava capaz o suficiente para conseguir um emprego sem isso.

Mas, como ela diz, se tinha uma lei específica para isso, algum motivo deveria haver. Curiosa, ela foi atrás de conversar com funcionários da Delegacia Regional do Trabalho de Osasco que fiscalizavam empresas para garantir o cumprimento da lei. E a chavinha mudou.

Entendeu que, além de todo o mérito próprio, ela colecionava uma série de privilégios que boa parte da população com deficiência não tem: de ganhar um carro adaptado que facilitou sua locomoção à oportunidade de conhecer a Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, onde ficou por um mês após o acidente, até coisas mais básicas como ter o apoio de familiares e amigos.

"Esse era o núcleo da minha formação, e eu achava que aquela era a realidade da pessoa com deficiência no geral. Depois eu entendi como a nossa sociedade é injusta, e logo percebi essa exclusão estrutural que vem muito antes de chegar na vida adulta. Foi assim que eu entendi que minha história podia servir para ajudar outras pessoas", diz.

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Com isso tudo em mente, Carolina começou em 2003 o que ela considera o rascunho da Talento Incluir. Passou a realizar aulas inclusivas dentro das empresas, depois começou a dar palestras sobre diversidade e inclusão, até que em 2008 conseguiu estruturar de fato a consultoria.

Hoje a empresa constrói programas de empregabilidade para pessoas com deficiência e oferece palestras e workshops, em que olha para questões fundamentais como a conscientização e a transformação da cultura da empresa.

Com a consultoria, quebra barreiras, muitas vezes físicas, para garantir acessibilidade e acolhimento para profissionais com deficiência, e pensa quais caminhos as empresas precisam seguir para assegurar que o funcionário tenha chances de crescer dentro da companhia.

Desde sua criação, a Talento foi responsável por ajudar cerca de 7 mil pessoas com deficiência a arrumar um emprego. A paulistana Michelle Baldemarra foi uma delas. Aos 19 anos, ela ficou paraplégica após um acidente de moto, em 2006.

Dois anos depois, ao entrar em um grupo de teatro, conheceu Carolina. Michelle trabalhava como manicure e fazia a unha de Carol quando o salão que ela costumava frequentar não tinha horário. "Depois, ela acabou me indicando para uma vaga nesse salão e foi quando voltei a estudar também", conta.

O caminho das duas se cruzaram ainda outras vezes. Quando pintou uma vaga temporária na própria Talento, Carol chamou a Michelle. O trabalho previsto para um mês acabou durante quase um ano. Só saiu de lá porque, com auxílio da consultoria, conseguiu outro emprego em uma instituição financeira.

"Foi a Carol que me incentivou [a aceitar a vaga]. Ela achava que eu tinha grande potencial, que conseguiria com certeza participar desse processo seletivo. Lembro que na época ela ficou chateada porque eu sairia da Talento, mas por outro lado torcia muito pelo meu sucesso. Ela sempre deixou isso muito claro", lembra Michelle, que passou no processo seletivo e está há sete anos na empresa. "Estou cada vez mais me desenvolvendo e conquistando coisas, como meu carro, meu apartamento e a faculdade", finaliza.

Não existe nada, nada, sem pessoas. Não se faz negócios sem pessoas. E tudo isso importa porque as pessoas são o valor de tudo que a gente faz. É preciso ter cada vez mais espaço para sermos valorizados pelo que nós somos, e não cobrados pelo que falta na gente. Pode parecer clichê e utópico, mas isso tudo é importante para o mundo, porque eu realmente acredito que toda pessoa merece trabalhar com felicidade. E a diversidade vem para contribuir com isso.

Carolina Ignarra, fundadora da Talento Incluir

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