Flor de Laranjeira

Motivada pela volta da fome, Daiana Santos lidera coletivo da periferia para a periferia, em Porto Alegre

Guilherme Soares Dias Colaboração para Ecoa, de São Paulo Tiago Coelho/UOL

"Sempre fui dos movimentos sociais. Ser uma mulher preta e lésbica me torna uma militante nata, que luta pelos seus direitos e espaços. Há uma necessidade de fazer isso.

O trabalho que desenvolvo é mais focado nas mulheres da comunidade, que na maior parte são chefe solos de família. Muitas trabalham como doméstica ou catadoras de materiais recicláveis e não tiveram seus empregos ou saúde garantidas na pandemia.

É tudo muito violento."

Tiago Coelho
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Fome nas Laranjeiras

Ver a Vila das Laranjeiras, parte do Morro de Santana, periferia de Porto Alegre (RS), longe de políticas públicas que pudessem melhorar a vida da população em momento de pandemia fez com que a sanitarista e facilitadora de trabalhos sociais Daiana Santos, 39, criasse o Fundo das Mulheres POA.

Um fato triste está na raiz da iniciativa inspiradora: a fome voltou ao Brasil. A coisa piorou com a pandemia de covid-19 que trancou brasileiros em casa e hoje vê 14 milhões de cidadãos nas estatísticas do desemprego.

A distribuição de cestas básicas por Daiana e o Fundo foi motivada porque além do costumeiro acesso precário à saúde, educação e assistência social da Vila das Laranjeiras, seus moradores voltaram a ter falta de comida sem a renda dos trabalhos informais que desenvolviam. Além disso, nem todas tiveram acesso ao auxílio emergencial do governo federal.

Tiago Coelho/UOL Tiago Coelho/UOL

Solo, sim, sozinhas nunca.

A primeira ação de Daiana foi criar uma plataforma virtual com uma vaquinha online para que pessoas que queriam ajudar sem sair de casa, pudessem doar. A intenção inicial era atender 100 mulheres que trabalham com reciclagem e são mães solo. Nos primeiros 15 dias, receberam material suficiente para ajudar 400 pessoas. Eram quatro voluntários e o número passou para nove. "Vamos de casa em casa para ver quem está mais vulnerabilizado", conta Daiana.

O Fundo das Mulheres POA cataloga as pessoas atendidas com endereço, idade e perfil de quantas pessoas moram casa. O grupo leva comida, cobertores e escuta.

A ajuda foi crescendo por meio de parcerias, como instituições que doam dinheiro, produtos de higiene e limpeza, além de doações individuais de eletrodomésticos. Entre maio e dezembro de 2020, pelo menos 6 mil famílias foram atendidas ou cerca de 15 mil pessoas que passaram um período com a certeza de que a comida não ia faltar.

Tiago Coelho/UOL Tiago Coelho/UOL

"É gente que não tem dinheiro. Não é coletivo de universidade"

A iniciativa que Daiana coordena surgiu no meio da comunidade e tem como voluntários pessoas que também têm poucos recursos, mas disposição e vontade de ajudar.

"É gente que não tem dinheiro. Não é coletivo de universidade. As voluntárias são diaristas", ressalta. Isso faz com que o movimento crie identificação e percorra lugares onde a população "não se reconhece como sujeito de direito". Muitos não conseguiram o auxílio emergencial do governo federal por falta de documentação. Há ainda mulheres idosas ou com deficiência física que não conseguiam se deslocar.

Outro problema latente durante a pandemia foi a falta de estrutura das casas da comunidade. O Fundo das Mulheres POA passou a contribuir também para melhoria das construções. "A falta de estrutura não é uma escolha. É um processo de empobrecimento que se dá antes da pandemia e que contribui para a vulnerabilização dos moradores", relata.

Além do recorte social e de gênero, o projeto auxilia majoritariamente mulheres negras, que representam cerca de 80% do público atendido. "Elas fazem parte de um ciclo de violência difícil de romper", constata Daiana.

São pessoas que não sabem a quem recorrer. Ter comida é um mínimo de dignidade.

Daiana Santos, vereadora, sanitarista e facilitadora de trabalhos sociais

A cidade que mais elegeu mulheres no Brasil

Sanitarista formada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Daiana Santos não tem sua quebrada como único ringue de luta. Em 2021, ela foi eleita vereadora pelo PC do B, em Porto Alegre, cidade com maior representação de mulheres na Câmara Municipal: 30,5% dos vereadores eleitos na capital gaúcha são mulheres.

Nascida em Júlio de Castilho (RS), Santos pretende focar seu mandato em cinco grandes pilares: saúde, mulheres, periferia, LGBTQIA+ e assistência social. Assim que foi eleita, ela disse que queria, dentro destes eixos, "garantir recursos para implementar políticas públicas que melhorem a vida das pessoas, garantir a valorização do serviço público."

Tiago Coelho

Pandemia de solidariedade

"O trabalho é espetacular por ajudar as famílias mais necessitadas", diz a a auxiliar de serviços gerais Tânia Lima, 60, que é atendida pelo fundo. "É muito difícil ter pessoa no morro que conseguem viver sem ter ajuda. O salário é pouco e toda a ajuda que vem para nossa comunidade é muito bem-vinda", diz.

Tânia vive na parte da comunidade chamada Alto da Colina e mora com outras quatro pessoas em casa. "Para além da comida, o trabalho tem continuidade", conta ela, que recebeu uma ordem de despejo e fez um vídeo para protestar contra a situação. "A partir daí comecei a trabalhar pela comunidade também".

As cestas são a garantia de que não vai faltar alimento na mesa. O trabalho é árduo e contínuo. "Vamos sendo ajudados e tentando ajudar cada família do entorno", afirma Tânia.

A Curadoria Ecoa

  • Noah Scheffel

    As histórias e pessoas apresentadas todos os dias a você por Ecoa surgem em um processo que não se limita à pratica jornalística tradicional. Além de encontros com especialistas de áreas fundamentais para a compreensão do nosso tempo, repórteres e editores têm uma troca diária de inspiração com um grupo de profissionais muito especial, todos com atuação de impacto no campo social, e que formam a nossa Curadoria. Esta reportagem, por exemplo, nasceu de uma conexão proposta por Noah Scheffel, curador de Ecoa.

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