Rainha da sucata

A professora que usou lixo para ensinar robótica e hoje replica modelo para 2,5 milhões de alunos de SP

Bárbara Forte de Ecoa Marcus Leoni/UOL

"Se você não estudar, vai assassinar 30 crianças por ano", ouvia Débora Garofalo de uma professora do magistério [antigo curso de formação docente], em 1996. Ela tinha 16 anos e levou o ensinamento a sério.

Acreditando no papel decisivo que o professor tem na vida de cada aluno e já formada em Letras e Pedagogia, ela criou um projeto que transformou em solução um problema que afeta diretamente o dia a dia dos estudantes de uma escola municipal da periferia de São Paulo: o lixo.

"Na primeira aula fora da escola, eu fiquei sem comer por dois dias. Eu via ratos enormes entrando nas casas das crianças. É muito duro."

Débora dava aulas na EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Almirante Ary Parreiras, instituição localizada entre quatro grandes favelas da zona sul de São Paulo (Alba, Vietnã, Beira Rio 1 e 2), e foi para a rua com os alunos para juntar resíduos e usá-los em aulas de tecnologia.

O projeto "Robótica com sucata promovendo a sustentabilidade" recolheu, nos últimos quatro anos, cerca de uma tonelada de lixo das ruas do bairro Vila Babilônia para transformar em componentes de circuitos eletrônicos.

A iniciativa rendeu a Débora a indicação ao Global Teacher Prize 2019, premiação considerada o Nobel da Educação. A professora ficou entre os dez finalistas, tornando-se a primeira mulher brasileira a alcançar o feito, e foi convidada pela Secretaria de Educação de São Paulo para replicar o modelo criado por ela para 2,5 milhões de estudantes no estado.

Marcus Leoni/UOL

Existir e resistir

Débora nasceu prematura, com apenas seis meses de vida. Caçula de uma família com outras duas irmãs, ela viu sua mãe trabalhar muito para conseguir que as meninas estudassem.

Dona Lourdes foi mãe e pai e concluiu apenas o ensino fundamental. "Ela não teve condições de estudar, mas adorava ler e tinha o maior orgulho de mim por eu querer ser professora."

Para ajudar a mãe, a jovem começou a trabalhar muito cedo, aos 13 anos. "Eu não achava justo ela trabalhar tanto para nos sustentar. Eu já demonstrava que queria ser professora e encontrei uma oportunidade como recreadora em uma escola."

Dona Lourdes morreu aos 63 anos, vítima de câncer, em 2011. "Eu me sinto triste por ela não ter tido a oportunidade de ver aonde a filha dela chegou. Mas eu só alcancei tudo isso por conta do aprendizado que tive com ela."

Débora está em processo de finalização do mestrado em Educação e fez pós-graduação em Língua Portuguesa. Atuou nos últimos 14 anos como professora de crianças, adolescentes e adultos na rede pública de São Paulo e, em 2019, passou a trabalhar na Secretaria de Educação.

Conheceu a robótica por meio de um trabalho que realizou em uma fábrica, antes de ser docente, e se aprimorou de forma autodidata, pesquisando e construindo ao lado dos alunos quando teve a oportunidade de ser professora de tecnologias na EMEF Almirante Ary Parreiras.

No início do projeto, Débora enfrentou a descrença de familiares e colegas de profissão. "Diziam que não daria certo, compararam o projeto de robótica com artesanato e tentaram, de todas as formas, desmerecê-lo. Mas os alunos acreditaram na ação e a fizeram transformar suas realidades."

Marcus Leoni/UOL Marcus Leoni/UOL

Violência de todos os lados

Como educadora em bairros periféricos, Débora presenciou as mais variadas (e cruéis) situações que comprometem a infância. A violência se apresenta de diversas formas na realidade dos alunos - de abuso sexual a tráfico de drogas, passando por falta de saneamento básico e até de comida.

A professora se lembra de uma ocasião em que estava jantando pizza com a família quando recebeu a mensagem de uma aluna.

"Camila* era uma menina de 13 anos que vivia de cabeça baixa na aula, não se interessava de jeito nenhum. Quando recebi a mensagem, me espantei: dizia que, naquele momento, me contaria por que era cabisbaixa na classe. Ela contou que havia perdido todas suas coisas em uma enchente e que, naquele momento, sua casa estava alagada. Ela não tinha nada para comer."

Aquela mensagem fez Débora se dar conta de que a questão do lixo, que saltava aos olhos no entorno da escola, gerando cenas difíceis como a dos ratos entrando nas casas das crianças, trazia ainda um sofrimento adicional, como as enchentes, e precisava ser trabalhada em sala de aula. "Como é que aquela garota se concentraria na escola tradicional se a necessidade dela e da família era outra?"

Como resposta ao que havia encontrado, ela resolveu perseverar: "Ou eu abandonava, como muitos, e me lamentava, ou eu lidava com o que eu tinha nas minhas mãos. Para mim, o problema do lixo, das doenças, como dengue e leptospirose, era muito mais relevante e precisava de atitudes vindas da escola para ser resolvido".

* O nome foi alterado para preservar a identidade da aluna

Danilo Verpa/Folhapress Danilo Verpa/Folhapress

Licença ao tráfico

O trabalho multidisciplinar realizado pelos alunos e liderado pela professora começou com delicadeza. Em 2015, ela pediu à gestão da escola que liberasse os estudantes para andar pela região em busca de materiais jogados no lixo que pudessem virar conteúdo de trabalho.

"Eu queria que fosse para todos, das crianças do primeiro ao nono ano. Com muita conversa, me deixaram seguir em frente."

Os circuitos mais simples eram feitos com os pequenos, de seis anos, e os mais complexos eram realizados pelas turmas mais avançadas: "A gente precisava entrar nas vielas, pedir licença ao tráfico de drogas. Não era uma coisa simples. Mas eu pude fazer isso porque eu tive o apoio deles e de seus pais, que muitas vezes iam conosco em nossas andanças".

"Lembro até de passar dando bom dia, boa tarde, e eles me alertarem para não falar muito. Eram dicas que eles me davam. Em alguns pontos onde a gente estava pela comunidade eu cheguei a ser abordada. Eles queriam saber por que eu estava ali, o que eu estava fazendo."

Foi no caminho que fazia ao lado dos alunos que conseguiu entender, de fato, a realidade que eles viviam. "Havia, assim como a casa da Camila, outras residências muito próximas ao córrego. Havia mau cheiro. Eu via as crianças fazendo um esforço enorme para fazer aquele ambiente limpo."

Marcus Leoni/UOL Marcus Leoni/UOL

De volta à escola

O trabalho continuava quando as crianças e a professora voltavam à escola. Ali, o lixo era separado, e dava-se início ao exercício do pensamento científico, em que os alunos, com a mediação da professora, pesquisavam o que eles iriam produzir.

Garrafas pet, vidro, papelão, plástico, entre outros materiais estavam disponíveis para que as crianças soltassem a imaginação. "Era um processo. Os alunos tinham aula de programação e iam desenvolvendo protótipos plugados ao computador, agregando os componentes recolhidos."

Em algumas criações, as realidades e vivências cotidianas dos estudantes - inclusive as dores - foram sendo expostas. "Um grupo de alunos fez uma casa com energia sustentável. Eu achei aquela ideia fantástica." Os jovens colocaram um temporizador de energia que fazia tudo desligar quando não houvesse pessoas na casa. Tudo conectado à bateria de um celular.

Quando Débora perguntou de onde havia surgido a ideia, veio a surpresa. "Um deles me chamou e contou: 'Você lembra do último incêndio que houve na comunidade? Infelizmente minha casa pegou fogo, e minha irmã com deficiência não conseguiu escapar e morreu. Não quero que outras crianças passem por isso'".

"Essas histórias me fazem perceber que eu tenho os melhores alunos do mundo. E que eles só precisavam de carinho, atenção e ferramentas de empoderamento para se sentirem protagonistas de suas vidas. Agora eles sabem que não é aquele lugar onde eles vivem que determina o que eles podem ser."

A mudança de perspectiva também alterou alguns dos índices preocupantes da EMEF Almirante Ary Parreiras durante o período. A nota da escola saltou de 4,2 para 5,2 no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). O trabalho infantil de alunos da instituição teve redução de 95%, segundo questionários realizados pela escola na comunidade, e a evasão escolar também caiu cerca de 93%.

Danilo Verpa/Folhapress Danilo Verpa/Folhapress

Reconhecimento internacional

Em 2019, Débora Garofalo ficou entre os dez melhores professores do mundo no Global Teacher Prize, prêmio considerado "Nobel da Educação". Ela concorreu com trabalhos da Grã-Bretanha, Holanda, Austrália, Geórgia, Índia, Japão, Argentina, EUA e Quênia, de onde veio o vencedor, Peter Tabichi.

Primeira mulher brasileira entre os dez finalistas, ela faz questão de ressaltar que o mérito é dos próprios alunos. "Fui apenas a ferramenta que tornou possível mais pessoas verem que há possibilidade de fazer um projeto de robótica com custo baixo."

A visibilidade fez com que a Secretaria de Educação de São Paulo chamasse a educadora para replicar a atuação para 2,5 milhões de crianças no estado.

"Agora, o projeto tem uma metodologia comprovada de ensino, que traz excelentes resultados a baixos recursos. No estado, o plano de ação está em fase de infraestrutura, como formação docente e produção de cadernos de apoio."

Para o próximo ano, o projeto entra em licitação e começa a ser levado para as escolas. Ao todo, serão 3.808 escolas espalhadas em 422 municípios do estado de São Paulo com aula de robótica com sucata no ano que vem. Ela começa a visitar as diretorias de ensino ainda no final de 2019.

Atualmente, Débora também é blogueira de Ecoa, num espaço destinado a apresentar soluções criativas para a educação.

Marcus Leoni/UOL Marcus Leoni/UOL

Ligação com a sala de aula

Apesar de ter se licenciado da sala de aula para trabalhar como assessora de tecnologias na Secretaria de Educação, Débora ainda volta quinzenalmente à região da Vila Babilônia.

"Por meio do apoio do Centro Assistencial Cruz de Malta [organização que presta assistência a famílias da região], reencontro cerca de 600 crianças - desde ex-alunos até moradores do entorno - para mantermos viva a autoestima trabalhada nos últimos quatro anos. Lá, eles também criam protótipos e mantêm viva a chama do empoderamento que construíram."

Empoderamento este que faz a professora se lembrar com orgulho de um dos seus alunos. "Diego sempre foi brilhante e me marcou por apoiar as ações. Fui professora dele em 2015, quando ele estava no nono ano e o projeto havia acabado de começar. Passados três anos, ele me procurou para dar a notícia de que havia passado em Física na USP (Universidade de São Paulo). Foi uma enorme alegria."

"Saber o quanto a mudança de perspectiva da escola pode, também, transformar a vida de um aluno é muito gratificante."

Danilo Verpa/Folhapress Danilo Verpa/Folhapress

Veja também

Pablo Saborido/UOL

Enderson Araújo

"Não existe comunidade carente; existe comunidade potente", diz criador de mídia periférica

Ler mais
Pablo Saborido/UOL

Nem herói nem coitado

Ele criou rede de educação inclusiva e critica a ideia de superação individual

Ler mais
Clara Gouvêa/UOL

Chamada de imbecil

Após ser explorada e agredida por patrões, Luiza Batista hoje lidera trabalhadoras domésticas

Ler mais
Topo