Garotas para mudar o mundo

Com o projeto Força Meninas, Déborah De Mari quer despertar potência feminina para ciências e tecnologia

Carlos Minuano Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Fernando Moraes/UOL

"Eu era uma mulher de 35 anos quando percebi que, em algum momento da minha vida, fui induzida a fazer escolhas não apenas baseadas em minhas vontades ou no meu potencial para obter os resultados que eu alcancei.

Quem me olhava achava que eu estava muito bem. Uma menina de uma família de funcionários públicos de classe média baixa que se tornou executiva em grandes empresas ganhando ótimos salários. Era o sonho da minha geração, um bom emprego e estabilidade. Mas eu me sentia muito incompleta.

O projeto Força Meninas nasce desses conflitos. Eu não via mais significado no meu trabalho, queria fazer algo que tivesse relevância, que deixasse alguma mudança para o mundo e para a sociedade.

Outro ponto foi o fato de ser mulher no ambiente corporativo: apesar de ter chegado numa posição sênior, foi muito difícil atingir esse estágio, me coloquei muitas vezes em situações de estresse extremo. E quanto mais eu me desenvolvia, menos mulheres eu encontrava.

Tinha vontade de ser mãe, mas trabalhava 13 horas por dia e faltava coragem. Ser uma executiva e ter filhos é um desafio monstruoso. Estava cansada, sem propósito e perdida. Decidi abandonar a carreira corporativa, pedi demissão, tinha uma reserva que me permitia isso.

Comecei a fazer terapia para tentar resgatar aquela menina que eu era. Essa jornada de autoconhecimento me deu as pistas de que queria trabalhar com igualdade de gênero. Foi então que me lancei numa pesquisa para entender tudo o que limitava o potencial das mulheres."

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Curiosa e criativa

"O projeto que eu criei está relacionado com a menina que eu fui, curiosa e criativa", conta Déborah De Mari. Ela é idealizadora do Força Meninas, uma plataforma de conhecimento que, desde 2016, busca incentivar o interesse de meninas a partir de 6 anos por carreiras em ciências, tecnologia, engenharia e matemática — áreas com muitas oportunidades, bons salários, mas pouca participação feminina.

Por sua atuação no projeto, De Mari foi vencedora do Prêmio de Direitos Humanos da Embaixada do Canadá em 2021 e entrou no Top 100 das pessoas mais influentes do mundo em políticas de gênero, da organização britânica Apolitical. Além disso, em 2020, o Força Meninas ficou entre os dez projetos finalistas na competição Solve MIT, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, que premia iniciativas que propõem soluções para problemas globais.

O seu próprio interesse pela ciência começou cedo, ainda na década de 1980. "Nas minhas férias, quando eu ia para a casa da minha avó, brincava num quintalzinho que fazia explodir minha criatividade. Aquilo era o meu laboratório, onde eu explorava plantas e bichos", lembra a empreendedora.

No ambiente escolar, por outro lado, sua personalidade criativa nem sempre encontrava apoio: "Eu era aquela criança que queria levar o estudo da ciência para fora da sala de aula, que perguntava muito, e na minha geração isso não era papel de menina. Olhando para trás, percebo o quanto essa falta de incentivo limitou minhas escolhas."

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Questões de gênero

Quando chegou a hora de decidir qual profissão seguir, De Mari sofreu com a falta de referências femininas nas áreas pelas quais se interessava. "As mulheres que eu conhecia estavam em áreas tradicionalmente femininas", relembra.

Decidiu então ir para o jornalismo, que lhe possibilitou aguçar o olhar investigativo. Mas quando foi procurar emprego não encontrou. "Participei de muitos processos seletivos e não passei em nenhum", diz. Aos poucos foi migrando para outras áreas, como RH, marketing e tecnologia, até ocupar por muitos anos cargos gerenciais em grandes empresas.

Após abandonar a carreira como executiva e antes de se lançar de cabeça em seu próprio projeto, De Mari morou na Irlanda durante um ano. Lá, trabalhou como voluntária em organizações focadas em questões como desigualdade de gênero e liderança para meninas.

Depois ainda encarou uma formação para educadoras nos EUA com foco no desenvolvimento do potencial de crianças e jovens do sexo feminino. Ao se aprofundar nesses temas, ficou claro para a empresária como padrões sociais e culturais impactam diretamente nas coisas que a menina deixa de fazer. "Por exemplo, parar de expressar a própria opinião para evitar desaprovação ou desistir do talento em matemática para focar em uma área tida como 'mais feminina'", aponta.

Esse novo conhecimento ajudou a moldar as bases do que depois seria o Força Meninas.

Já li uma pesquisa que mostra que a partir dos 6 anos as meninas começam a questionar a própria inteligência comparada a um menino na mesma idade, por questões sociais e culturais. Outro estudo aponta que na transição entre a infância e a adolescência a autoestima da menina cai três vezes mais que a do menino.

Déborah De Mari, idealizadora do projeto Força Meninas

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Trajetórias inspiradoras

De volta ao Brasil, De Mari prosseguiu mergulhada nessas questões. "Tudo que encontrava sobre o assunto eu compartilhava nas redes sociais", conta. A partir de 2017, ela começou a realizar workshops em São Paulo, onde meninas ouviam mulheres com trajetórias inspiradoras falarem sobre suas carreiras.

Logo após o primeiro evento, realizado no Dia Internacional da Menina (uma data instituída pela ONU em 2011 e celebrada todo dia 11 de outubro), ela descobriu que existiam muitas jovens com um potencial gigante — mas quase ninguém ficava sabendo delas.

Pouco tempo depois veio um primeiro investimento, de uma empresa de transporte por aplicativo, que ajudou a dar um upgrade no negócio. De Mari então percebeu que, com o apoio de empresas, poderia dar escala ao projeto. Foi quando o Força Meninas começou a sair de São Paulo e se espalhar por outras regiões do país, atingindo um número bem maior de pessoas.

"Em 2019, viajamos por 11 estados do Brasil e 18 cidades. Foi um ano de muita expansão", diz. E foi desafiador também. Em janeiro, seu filho nasceu. "Fui a todos os eventos com um neném no colo. Só foi possível graças ao apoio da minha mãe, que viajou comigo para todos esses lugares."

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Mude o mundo como uma menina

Junto com a expansão, De Mari também decidiu diversificar o projeto, criando o prêmio "Mude o mundo como uma menina" para reconhecer jovens que "estão fazendo a diferença no mundo a partir de seus projetos e ações". Em sua primeira edição, em 2019, cinco garotas foram premiadas com uma viagem ao Vale do Silício, na Califórnia.

Em 2020, o projeto, que estava bastante focado em atividades presenciais, quase encerrou por causa do abalo causado pela pandemia da covid-19. "Tive que desmontar a equipe e ainda perdi minha avó e meu pai com 15 dias de diferença", lembra.

Graças ao apoio voluntário de algumas meninas, as atividades migraram para o digital e foi possível realizar a segunda edição do prêmio, em modo online. "Apesar do pouquíssimo apoio financeiro, foram 200 inscrições e 25 garotas premiadas com um programa de mentoria em temas como empreendedorismo, economia verde, inteligência financeira e liderança", conta De Mari.

Em 2021, o evento se manteve online, mas com muito mais fôlego e recursos, já que empresas voltaram a patrociná-lo. "Foram 398 inscrições de todo o país e 35 premiadas. Além de uma mentoria de nove meses, as meninas receberam apoio financeiro com prêmios de até R$ 5 mil", conta.

O Força Meninas também criou programas online para incentivar garotas nas áreas de exatas, e uma comunidade digital que hoje tem 242 inscritas e promove eventos mensais de mentoria.

Este ano, De Mari comemora a volta à estrada com a expedição "Meninas Curiosas, Mulheres de Futuro". O novo projeto vai percorrer 17 cidades das regiões Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste do Brasil, levando palestras com jovens transformadoras sociais, além de teatro e oficinas que trabalham conceitos de linguagem computacional, eletrônica e realidade virtual.

A agenda 2030 de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e relatórios do Fórum Econômico Mundial falam da lacuna econômica que a desigualdade de gênero provoca na sociedade, e um dos pontos salientados é sempre a baixa inserção das mulheres nas áreas de exatas, principalmente na tecnologia.

Déborah De Mari, idealizadora do projeto Força Meninas

Liderança e protagonismo

Desde que foi criado, o Força Meninas já atingiu com suas ações mais de 45 mil garotas em 12 estados e 22 cidades no Brasil. Uma delas é a cearense Sabrina Cabral, 23, que ganhou o prêmio em 2020 com um projeto chamado Ruma, uma plataforma digital para conectar jovens nordestinos a oportunidades e capacitações.

Ela conta que esse acontecimento foi fundamental para a sua carreira. "Conheci o Força Meninas com 20 anos e hoje já conquistei minha independência financeira, algo muito difícil para uma jovem periférica do Nordeste como eu."

O projeto criado por Sabrina surgiu das suas experiências com liderança e protagonismo juvenil como bolsista de um programa da prefeitura de Fortaleza, onde vive, em parceria com o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).

"Participando desse espaço de tomada de decisão a nível local, nacional e internacional, vi a escassez de lideranças que representassem os grupos minoritários da sociedade na região Nordeste."

O projeto de Sabrina já conquistou espaços e sensibilizou dezenas de jovens. Depois do Força Meninas, ela foi selecionada por um programa do MIT voltado ao desenvolvimento de jovens lideranças emergentes com menos de 24 anos, o Solv[ED]. "Ali, participei de workshops com especialistas, aprendi sobre desenvolvimento de soluções e ganhei dois financiamentos para o projeto", comemora.

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