Sem professor ou carteira

Com 35 anos em sala de aula, educadora Eda Luiz conta como é possível e urgente transformar a educação no país

Thaís Regina Colaboração para Ecoa, de São Paulo Ricardo Borges/UOL

"O que é hoje o CIEJA Campo Limpo era centro Supletivo de Educação de Jovens e Adultos, mas percebemos em 1998 que essa escola não dava muito certo porque era através de apostilas, eliminação de matérias. Até tinha professor para tirar dúvidas, mas os estudantes por si só tinham que estudar as apostilas e fazer as provas. Estudar sozinho é muito difícil. Requer muita disciplina, muita compreensão, e as dúvidas não são tiradas — para mim, é na troca que você começa a refletir e aprender.

Em 2000, mudamos para CIEJA, Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos. Saímos no bairro em que estávamos na Vila das Belezas, perto de Santo Amaro, e fomos para o Capão Redondo, que tinha o maior índice de evasão escolar entre jovens e adultos, além de uma alta população imigrante com baixo grau de escolarização e, por isso, eram pessoas com dificuldade de ingressar no mercado de trabalho. Chegamos no lugar mais violento do mundo, na época, e percebemos que tínhamos que fazer uma educação diferente: escutar as pessoas que estavam fora das escolas.

Para nossa surpresa, pediram uma escola sem carteira, sem professor e sem disciplina.

Eu vou te explicar por que. Um jovem de 15 anos me falou que a carteira é a cela solitária: você é obrigado a ficar quieto, fazer o que mandam, não pode se mexer, nem fazer qualquer outra coisa; a escola já tem essa característica de prisão: as cores, o ambiente disciplinador. Os estudantes não queriam que os professores trouxessem o planejamento pronto, queriam ser ouvidos, ter suas necessidades entendidas. Sobre as disciplinas, disseram que quando bate os 45 minutos da aula é quando você começa a aprender, se envolver com o conteúdo e vem o sinal — um barulho horrível, o qual corta o pensamento, deixa as dúvidas para serem vistas dali 4 dias. Esses estudantes queriam educação de outras maneiras.ä

Eda Luiz tem 72 anos e acredita que todas as pessoas vêm à vida com uma missão. "Tenho a felicidade de ter conseguido ser aquilo que eu sempre desejei ser. Educar é a minha missão; acredito demais na escola pública de qualidade para todos, como um direito", reflete ao final da nossa conversa. Eda gosta de ouvir samba-rock e educar para tornar as pessoas livres, visíveis e munidas de autoestima. Afinal, a partir do seu trabalho com a alfabetização de adultos, ela concluiu que, infelizmente, os analfabetos são invisíveis no mundo letrado, um preconceito que passa pelo não reconhecimento dos saberes de cada um e causa dano emocional, psicológico, um constante sentimento de não-pertencimento aliado a um vácuo identitário, da percepção de si como relevante na sociedade, como cidadão.

Ao longo da conversa com Ecoa, ela fala da urgência de se agir em prol de uma educação transformadora, libertadora e relembra o desafio bom que assumiu ao aceitar o cargo de coordenadora pedagógica da escola que se tornaria o CIEJA, Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos. Ela também evoca várias vezes a LDB, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, uma das ferramentas fundamentais para sua postura perseverante ao longo dos 50 anos de atuação na educação pública paulista.

Foram 35 anos dentro das salas de aula, ensinando "tudo que você puder imaginar", mas com a última década focada no ensino de jovens e adultos. A inquietação sempre moveu Eda. Ela relembra que, certa vez, quando lecionava para jovens e adultos no período noturno, chegou um decreto da Prefeitura de São Paulo falando que a escola deveria se tornar um supletivo. Na sala de professores, "as pessoas estavam discutindo, parecia arbitrário e eu pensava será que somos nós que temos que escolher isso? Como não tem uma lógica que embasa essa decisão?", questionava. "Isso vinha me incomodando, eu fui procurar ajuda na PUC (Pontifícia Universidade Católica). Conheci um grupo que o Paulo Freire coordenava sobre educação popular. Durante um ano, ouvi Paulo Freire. A gente tinha esses encontros para o MOVA, Movimento de Alfabetização, eu ficava encantada porque eram pessoas dizendo que era possível, que a gente pode mudar. Isso foi se agigantando dentro de mim", relembra.

Quando se viu no Capão Redondo para ser coordenadora pedagógica, Eda teve que escolher entre o que já conhecia da sua experiência lecionando e uma construção nova, coletiva, transparente, aberta e, por consequência, imprevisível. "Quando os estudantes pediram uma escola sem carteira, sem professor e sem disciplina, eu poderia falar que não dava porque não é assim que o nosso sistema escolar funciona. Mas, como na época era um projeto, eu decidi apostar com eles. Enfrentei muitas dificuldades para implantar, mas fomos construindo", conta. Desde cruzadas com a Prefeitura de São Paulo para conseguir um mobiliário que não fossem as carteiras tradicionais até o currículo escolar montado em assembleias: todo processo no CIEJA é participativo.

Ricardo Borges/UOL Ricardo Borges/UOL

Na primeira semana de cada ano letivo, Eda reunia todos os funcionários da escola e saíam juntos a pé ou de ônibus para conhecer a comunidade em torno da escola. Para ela, é fundamental saber quais são as potencialidades e dificuldades que o bairro impõe aos seus estudantes. As aulas são chamadas de "encontros" e a escola é literalmente aberta. "A comunidade vai à sala de leitura, sala de computação, tem tudo organizado para a comunidade andar pela escola. Minha ideia é que uma escola nunca deveria ser fechada. Se ela está produzindo conhecimento, como ela não deixa as pessoas entrarem para conviver com esse conhecimento? Todo mundo pode entrar, sentar, assistir o encontro e participar", comenta Eda. O CIEJA funciona de segunda à quinta, os portões são abertos às 7h e fechados às 22h30, quando as atividades se encerram.

Hoje, as mesas são sextavadas, ou seja, compartilhadas por seis pessoas. O conteúdo é estruturado em quatro áreas do conhecimento: Linguagens e Códigos, que consiste em Língua Portuguesa e Inglês; Ensaios Lógicos e Artísticos, que é Matemática e Artes; Ciências Humanas, que compreende Geografia e História; e Ciências do Pensamento, que corresponde a Ciências e Filosofia. Além desse currículo obrigatório, há uma grande assembleia todo mês de fevereiro em que se escolhe um tema central, o qual será desenvolvido por todos os alunos em grupo.

Os estudantes passam um mês em cada área do conhecimento, período no qual trazem uma situação problema do bairro em que vivem relacionada ao tema central para resolver, de forma ética, inclusiva e, se possível, aplicável na comunidade. Na última semana de cada mês, alunos e alunas escrevem um projeto sobre o problema que trouxeram, a solução proposta e o que aprenderam com isso, depois apresentam-no para a escola toda. "Quando escolhemos Meio Ambiente, por exemplo, eram 76 grupos de alunos, logo surgiram 76 formas de pensar o Meio Ambiente. Em uma escola tradicional, seria uma única forma", pontua a educadora paulistana.

Às sextas, a escola fecha para uma oficina continuada de formação de professores, promovida desde 1999. Eda não aceitava a ideia de que, na mesma escola, o professor da manhã não conhecesse o professor da noite; esse tipo de situação acontece porque nas escolas públicas estão previstas apenas 4 reuniões de planejamento do corpo docente ao longo do ano letivo. No CIEJA, ao fim da semana, os professores se reúnem por área de conhecimento, depois por módulo — o que corresponde à ideia de série — e depois há uma reunião geral com a coordenadora pedagógica que, por muitos anos, foi a Eda, hoje aposentada. Além disso, o corpo docente tem um horário de estudos, seja em duplas ou trios, em que se escolhe um autor, estudam-no e apresentam a pesquisa para os demais companheiros. "Então, é uma formação em serviço das necessidades, baseada na humildade e na cumplicidade. Forma-se uma união em defesa da escola pública", diz Eda.

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"Pessimismo é contrarrevolucionário"

"Parecia muito incerto, mas, sabe, a melhor coisa que fiz na minha vida foi acompanhar as loucuras de Dona Eda", diz Severino Batista da Silva, de 55 anos, mais conhecido como Billy de Assis, professor do CIEJA. É com muito carinho que Billy fala de Eda e, quando ele se refere ao momento em que se conheceram, prefere dizer que ela o descobriu.

A conexão de Billy com educação é muito profunda, mas não veio nitidamente para Eda, que sempre quis ser professora. "O primeiro móvel que eu ganhei do meu pai, que era marceneiro, foi uma carteira porque eu adorava brincar de professora, era meio autoritária, mas sentava minhas bonecas e brincava de dar aula", conta Eda, com um sorriso largo no rosto. Para o professor paulistano, no entanto, a visão veio mais tarde.

Quando Billy tinha uma academia de ginástica e promovia teatro para crianças, percebeu uma facilidade para gerir turmas. Uma amiga sugeriu que ele se envolvesse academicamente com a área, ao que ele respondeu com a dúvida honesta, "O que é magistério?". Como a academia era vazia durante o dia, decidiu apostar, como quem diz despretensioso: por que não? "Desde o primeiro dia da graduação, comecei a me identificar muito com o que me ensinavam e as contribuições que eu levava para a sala de aula eram muito valorizadas. Eu acredito que nasci para isso, mas, entrando na educação, percebi que tinha um buraco no queijo", conta.

Em 2001, ensinando crianças do ensino primário, Billy considerava injusto que os pais chegassem às reuniões esperando que o professor fosse criticar as crianças. "Tem coisas muito mais importantes para falar, tipo como auxiliar seu filho na lição de casa, como se organizar e tentar organizar os estudos dos seus filhos, então eu acabava usando a reunião para a formação dos pais. Dava muito certo, as atividades com as crianças também eram diferentes, todo mundo queria ser meu aluno, mas eu só ouvia críticas dos outros professores", conta.

Dessas atividades diferentes, uma delas envolvia colar passagens curtas de livros, letras e números em discos de vinil, que são bem mais tentadores de manusear para uma criança do que o próprio livro. Essa forma inusitada, que o educador nomeou de "discoteca literária", criava a oportunidade de ensinar ordem alfabética, ordem numérica e leitura coletiva. Billy era o professor-CIEJA, exatamente quem Eda buscava e para quem ela mantinha seus olhos atentos.

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A parceria remonta uma série de acasos: primeiro, um curso do qual ele se lembra das muitas participações de Eda com "Minha escola faz isso!", orgulhosa, enquanto ele supunha que a escola, de tão perfeita, seria imaginária; segundo, encontraram-se em outro curso de alfabetização. Certa vez, Eda ofereceu uma carona e Billy a convidou para um mutirão sobre meio ambiente que promovia com uma ONG em um sábado na escola na qual era vice-diretor. Eda foi. Logo após, veio o convite para ser professor do CIEJA — gentilmente, Billy recusou.

Algumas voltas do mundo depois, o professor estava caminhando na rua quando Eda passou de carro. Terceiro acaso. Ela parou, conversaram; Eda fez novamente o convite. Dessa vez, Billy topou. O professor se lembra de assinar os papeis em cima do capô do carro de Eda. Depois disso, tudo mudou. "Quando eu me vejo em 2007 no CIEJA me deparo com uma gestora com quem tudo pode. A dona Eda acabou reafirmando em mim que o que eu queria fazer poderia e deveria ser feito", conta.

Além do estranhamento do espaço, que não remete a um prédio escolar, não tem seguranças no portão, não tem banheiros exclusivos para professores, houve uma frustração muito particular com a qual Billy se deparou. Dedicado especialmente à turma de adultos com deficiência cognitiva, o professor pensou que não conseguiria ensinar. "Isso porque, para mim, escola era leitura, escrita e matemática. Como eu não fazia nenhuma dessas três coisas da forma tradicional, eu não acreditava em mim. Mas, as mães vinham e diziam que as crianças estavam desenvolvendo. Eu pensava: desenvolvendo o que?", relembra.

A resposta veio com o tempo e muitas investidas em conjunto, Eda e Billy. Das lições mais valiosas que ele aprendeu com a gestora foi que quando se leva um problema, leva-se também uma solução; e que na vida nem tudo pode, mas, dependendo de quem faz, pode e dá certo. Uma vez o professor apostou em apresentar músicas para contar histórias nas salas de aulas, mas os alunos começavam a dançar. Diante disso, a ideia foi fazer uma balada na escola, deixar a turma gastar a energia, conhecer o lado lúdico de uma boate, que muitas vezes é inacessível para pessoas com deficiência, e depois então se debruçar em grupo sobre as letras. "Nesses 13 anos, descobri coisas que jamais foram ensinadas para meus estudantes, porque eram pessoas com deficiência, como sexualidade, por exemplo", diz.

Uma das ações que começou na comunidade e traduz seu espírito de educador foi o Café Terapêutico, reunião para conversar com mães e pais de pessoas com deficiência sobre inclusão na prática. "O que pode ser feito? Como? Traz um problema que eu vou atrás da solução; eu não resolvo, mas eu vou atrás — com a dona Eda sempre me apoiando em todas as minhas loucuras", diz.

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"A missão é cumprida, mas a luta continua"

Na visão de Eda Luiz, o problema mais crítico da educação no Brasil é sempre estar atrelada a um projeto político. "Primeiro, ainda não temos um projeto educacional brasileiro imutável que perpassa a política", declara, "A educação é a prima rica em recursos, então há uma disputa e toda mudança política altera o projeto, envolve pessoas que não são do ramo em cargos de poder, com falas deploráveis. Acho que nosso grande problema é estar atrelado a um estado político e não ter autonomia."

Além disso, a formação dos professores, segundo ela, é muito baseada em leituras e seminários, o que limita a inventividade que a educação requer. "Segundo, as nossas universidades dão muita teoria, mas você se faz professor dentro de sala de aula", aponta, "Poderíamos ter estágios com maior tempo em sala de aula antes de se assumir de fato uma sala. Nós ficamos tanto tempo em uma escola que quando a gente tem uma dúvida, um medo, uma insegurança, a gente vai se reportar aos alunos que somos e aos professores que tivemos; é difícil se reportar a essas questões enquanto professor e não aluno."

Os caminhos para contornar esse cenário estão na própria educação. Eda aponta que a conscientização sobre a educação na lei é o primeiro passo. Como, nas palavras dela, a educação ainda não foi desmantelada, agora é o momento de se respaldar na LDB, a qual fundamenta a autonomia das escolas públicas, sem esperar ordens de cima para baixo. "Quando se aceita ou se escolhe ser professor, tem que se ter uma ética profissional. Onde entra minha responsabilidade de carregar todo mundo junto?", questiona.

Aposentada depois de 50 anos como educadora, ela reconhece o gratificante resultado da sua atuação na vida das pessoas e nos territórios pelos quais passou. Para Eda, a missão é cumprida, mas a luta continua.

Vamos sair dessa escola fragmentada, disciplinadora, que mais exclui do que inclui; vamos produzir conhecimento. Acho que o momento certo é agora e é urgentíssimo.

Eda Luiz

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