Na ponta do lápis

Elisabeth Cardoso criou caderneta para agricultoras anotarem produção e renda; acabou dando a elas liberdade

Maiara Marinho Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Divulgação

"A agricultura, enquanto era uma atividade de produção de alimentos, era feminina. Quando ela passa a ser uma atividade que gera dinheiro, aí passa para a mão dos homens. Porque, na verdade, tudo o que se relaciona com o dinheiro é visto como masculino. O trabalho doméstico, não. Porque não é remunerado.

Como tem essa coisa de que o homem é visto como agricultor, então quando se comercializa a nota fiscal geralmente está em nome do homem, não importa quem produziu. É ele quem se relaciona com o sindicato, com a associação, com a cooperativa, e faz isso com muito mais facilidade, porque a mulher geralmente está presa no trabalho doméstico, ao cuidado dos filhos, tem que fazer comida todo dia. O trabalho delas na agricultura se torna invisível porque é o homem quem vai vender e não se pergunta quem produziu aquilo.

Aí a gente começou a perceber essa movimentação econômica nos quintais. Aquele espaço ao redor da casa é um espaço de domínio das mulheres, onde elas produzem muito para a alimentação da família. Começamos a sistematizar essa produção para que a gente pudesse dar visibilidade e valorizar o trabalho e a produção delas."

Sem feminismo, não há agroecologia

A vida na roça começa cedo. As mulheres cuidam da casa, das crianças e do quintal, onde plantam o alimento para a sua mesa e também o que vai para o mercado. A agricultura familiar tem essas duas características: ela existe para garantir a subsistência da família, mas também é uma fonte de renda. No entanto, a produção desempenhada pelas mulheres não é reconhecida já que a plantação fica no quintal de casa.

Essa estrutura patriarcal de divisão de tarefas fez milhares de mulheres acreditarem que o seu trabalho como agricultora era apenas mais uma tarefa do cotidiano para "ajudar o marido" que trabalhava fora de casa. Quando elas começaram a anotar o que plantavam, o que trocavam com outras vizinhas, o que vendiam e o que consumiam, passaram a ver sua importância econômica com os próprios olhos e deixaram de se julgar apenas como um apoio do núcleo familiar. Entenderam que são fundamentais também para fora dos portões da casa.

Quando o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) surgiu, houve um boom de produção nos quintais das roças brasileiras. Isso porque 30% da merenda escolar deve vir da agricultura familiar. Foi quando a agrônoma Elisabeth Cardoso percebeu a importância de sistematizar a produção das mulheres e, para isso, idealizou a Caderneta Agroecológica.

Valter Campanato/Agência Brasil Valter Campanato/Agência Brasil

"Tem alguém em casa?" A Margarida existe!

Na peça teatral 'A vida de Margarida', encenada pelo Grupo de Teatro Amador do Polo da Borborema (rede de sindicatos de trabalhadoras e trabalhadores rurais na Paraíba), uma cena muito comum entre as mulheres denuncia a invisibilidade da existência delas no campo. Quando o agente de assistência técnica bate na porta, e a Margarida abre, ele pergunta: "não tem ninguém em casa?".

Essa realidade se transformou quando a produção das agricultoras teve uma demanda maior. "Como elas tinham que mandar verduras para as escolas, feijão, frutas, elas começaram a aumentar a produção que já era para a família", comenta Elisabeth. "Aí a gente começou a perceber essa movimentação econômica nos quintais".

A ideia da Caderneta Agroecológica surgiu nesse momento. Nela, as mulheres anotam todo o fluxo de suas hortas. Além disso, também participam de oficinas técnicas e formações pedagógicas, o que auxilia bastante nesse processo de autonomia e empoderamento.

Elisabeth conta de um caso de uma mulher da Amazônia: "cada vez que ela ia na oficina ela voltava com uma coisa na cabeça e questionava o marido". A agricultora descobriu em um dos encontros que a terra podia ter dupla titulação e disse para o marido "eu quero também o meu nome". Ela conseguiu.

Em outra situação, a agricultora escutava do marido que ela devia obediência, pois comia o feijão dele. "Quando ela fez o trabalho com a Caderneta, conseguiu provar que quem comia o feijão dela era o marido. Imagina a mudança que é para essa mulher."

A Caderneta permitiu que nós mulheres tivéssemos um autoconhecimento social e econômico, da importância que é o nosso trabalho

Maria de Fátima dos Santos, agriculturora de Barrento (CE)

Arquivo pessoal
Maria de Fátima dos Santos com sua Caderneta Agroecológica

Participando sem medo

Diversas mudanças começaram a acontecer na vida das mulheres. Algumas passaram a atuar no sindicato, outras a questionar as relações de poder na família, e todas têm uma relação de confiança com a potência que a Caderneta possui.

"Conheci o movimento das mulheres quando me tornei uma associada do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santana do Manhuaçu (MG), onde conheci agricultoras familiares que trocam saberes e anotam toda a sua produção. Foi aí que comecei a fazer as anotações e me surpreendi a cada mês", relata Alessandra Olivato de Lima, agricultora e atualmente diretora do sindicato. Ela também conta que as anotações a fizeram perceber a riqueza da produção no quintal, "econômica e também nutritiva, porque temos variedades e tudo sem nenhuma gota de agrotóxico".

Há alguns estados dali, Maria de Fátima dos Santos, cearense de Barrento, diz que "à noitinha, depois do trabalho, eu sento e anoto tudo". Dona Fafá relata que sempre produziu, mas não sabia qual era sua renda mensal.

Os frutos da Caderneta

O projeto idealizado por Elisabeth e desenvolvido pelo Centro de Tecnologias Alternativas (CTA), abriu portas para políticas públicas e financiamento de incentivo à produção das mulheres na agricultura familiar.

Atualmente a Caderneta está presente em todas as regiões do Brasil e motivou ações desenvolvidas em alguns estados. Na Bahia, há um programa de assistência para uso da Caderneta que atende 5,4 mil mulheres, em comunidades rurais de 60 municípios. A Prefeitura de Afogados da Ingazeira, em Pernambuco, também financia o projeto para as mulheres da região. De acordo com Elisabeth, "a gente está em diálogo com o Governo de Sergipe, do Acre e vários outros começando".

A expectativa de Beth é seguir avançando em outros municípios e ampliar a rede de apoio às agricultoras.

Arquivo pessoal

Reconhecimento internacional

Elisabeth Cardoso é agrônoma pela UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), mestre em agroecologia na Universidad Internacional de Andalucía e doutoranda em recursos naturais e gestão sustentável pela Universidad de Córdoba. Trabalha em Viçosa (MG), no Centro de Tecnologias Alternativas e atua no GT Mulheres da ANA (Articulação Nacional de Agroecologia).

Seu trabalho com mulheres e agroecologia começou em Mato Grosso, nas fronteiras com o agronegócio. Foi lá que percebeu como o latifúndio "considera a natureza e as mulheres como recursos inesgotáveis".

O seu trabalho com a Caderneta, além de demonstrar em números a contribuição das mulheres para a economia, também ajuda a romper com padrões machistas proporcionando emancipação. Devido a isso, Beth foi reconhecida recentemente como Empreendedora Social pela Ashoka, organização internacional que ajuda a promover o empreendedorismo social pelo mundo.

"A gente está fazendo esse trabalho há muito tempo e de repente vê ele reconhecido, você percebe que está no caminho certo", comenta. A oportunidade também a coloca em rede com outros empreendedores sociais. "A minha expectativa é, na verdade, aprender com os outros e conhecer outras coisas que a gente possa também trazer para nossa realidade".

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