A favela é potência

Enderson Araújo, o baiano que criou um veículo de mídia na periferia de Salvador

Rômulo Cabrera de Ecoa Pablo Saborido/UOL

"Que tal deixarmos para uma próxima oportunidade?", foi mais uma das negativas que Enderson Araújo recebeu ao longo dos seus 28 anos de vida. Na ocasião, ele era um dos candidatos a uma vaga de vendedor de uma operadora de celular. Ao saber que o rapaz era morador da comunidade de Sussuarana, em Salvador (BA), o recrutador fechava mais uma porta para um jovem negro de periferia. "Eu assisti nos noticiários que o pessoal de lá anda 'tocando o terror'", justificou o sujeito, referindo-se a episódios de violência frequentemente noticiados na televisão.

"Nas periferias, muito antes de sermos violentos, somos violentados, como fui aquela vez", diz Enderson, em entrevista a Ecoa, durante rápida passagem por São Paulo, em setembro último. "E os programas sensacionalistas ajudam a disseminar essa versão distorcida e irresponsável das favelas em todo o Brasil."

A vida também negou a Enderson a convivência com o pai, que deixou a mulher e os três filhos quando o garoto mal completara seis anos. A nova realidade piorou ainda mais a situação financeira da família. A urgência por ter o que comer ao final do dia fez com que ele se virasse desde muito cedo. Já trabalhou como ajudante de pedreiro, pintor, marceneiro, mecânico... Também vendeu picolés e botijões de gás nos becos e vielas, lavou carros e motos, varreu as ruas da comunidade e foi cabeleireiro.

Até que, depois perder a vaga na empresa de telefonia, criou algo que não apenas o sustenta, mas é o que chama de "minha ideologia". Daquele "não", nascia o Mídia Periférica, veículo de comunicação alternativo que busca revelar um lado de Sussuarana e favelas vizinhas "que a imprensa tradicional se nega a mostrar".

Fundado em 2010, o projeto ganhou visibilidade nacional. Enderson já recebeu prêmios como o Laureate Brasil, para jovens empreendedores sociais, e hoje viaja por todo o país realizando atividades em outras comunidades. Também integra a Rede Nacional de Jovens Comunicadores (Renajoc), além de participar de debates e seminários sobre comunicação e desigualdade.

Pablo Saborido
Pablo Saborido/UOL

'O dia seguinte era sempre uma incógnita'

A vida de Enderson se dividiu entre duas comunidades de Salvador: na região de Cajazeiras, onde vivia com a mãe, Edvalda Araújo, e os irmãos mais novos Érika e Henrique Santos; e em Sussuarana, periferia da capital, onde passou boa parte da adolescência com a avó materna, dona Erasma Araújo. Com a ausência do pai, a única renda da casa vinha do programa Bolsa Família. "Não era incomum faltar o que comer em casa", afirma.

Ele conta um episódio em que desmaiou de fome, dentro da sala de aula, nos primeiros anos do ensino básico: "Eu não quis falar a verdade para os professores. Alguns deles me levaram em casa, um barraco de um cômodo apenas. Perceberam, então, que não havia nada para comer na despensa." Sensibilizados, os professores decidiram fazer uma vaquinha com outros funcionários da escola e voltaram com uma cesta básica.

Às vezes, caminhava os quase dez quilômetros que separam Cajazeiras de Sussuarana para pedir ajuda à avó Erasma, seu porto seguro. "É um pouco de Exú, sacou, irmão? No candomblé, Exú é o guardião dos caminhos. Até hoje, é ele que sempre me coloca à frente dos problemas, independente de qual seja, a fim de que eu os solucione."

Adolescente, Enderson se colocou na dianteira do sustento da família, fazendo o que aparecesse para conseguir dinheiro. "Eu e alguns amigos dividíamos uma maquininha, dessas de barbeiro mesmo, para cortar o cabelo dos moradores da região que não queriam pagar pelo serviço de um profissional." Em um dia de sorte, a turma voltava com R$ 20 e R$ 30 para casa.

"Era o suficiente para que eu passasse numa vendinha, ali mesmo na comunidade, para comprar meio quilo de farinha, meio quilo de arroz e uma quantidade de 'bofe', uma carne barata. Era a nossa única refeição. O outro dia era sempre uma incógnita", relembra.

Pablo Saborido Pablo Saborido
Pablo Saborido

A urgência das periferias

O sentido de urgência comum a muitas famílias pobres das favelas do país, para quem o trabalho se torna uma necessidade imediata em detrimento da educação, foi responsável, em certo sentido, por provocar ruídos temporários nas relações dentro de casa. Por volta dos seus 16 anos, Enderson se mudou da casa da mãe, em Cajazeiras, para a da avó Erasma, em Sussuarana.

"Eu queria fazer outras coisas, como estudar, mas, muitas vezes, a realidade nos solapa e, sem perspectiva nenhuma, ferrado, as relações dentro de casa entram em curto-circuito", afirma.

Morando com a avó, Enderson conseguiu concluir os anos perdidos na escola, por meio dos cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Além disso, em 2010, conheceu o projeto Promovendo Direitos de Jovens, que se instalou naquela comunidade via Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). A ação abriu uma série de oficinas temáticas de comunicação, como rádio, produção escrita e audiovisual para os garotos e garotas da região.

'Onde está essa marginalidade?'

Estas atividades foram responsáveis, em boa medida, para o nascimento do Mídia Periférica, em julho daquele ano. Enderson já se articulava com os amigos a fim de tornar possível (e prático) os conhecimentos adquiridos durante as oficinas. O episódio com o recrutador da operadora de celular só reforçou a necessidade de um veículo de comunicação alternativo que "pudesse contar as histórias dos nossos", e oferecer outra ótica sobre a comunidade de Sussuarana.

"Onde está essa marginalidade toda que os grandes veículos vendem das periferias?", questiona. Para Enderson, ela é fruto de pensamentos como o do homem que lhe negou oportunidade de emprego só porque ele era morador de uma favela.

Nos primórdios do veículo que fundou, Enderson começou a produzir vídeos simples - com imagens captadas pelos próprios moradores - e compartilhá-los via redes sociais. "Meu objetivo era mostrar, por meio dos olhares que vinham de dentro da comunidade, que Sussuarana e as quebradas próximas não se resumiam à bandidagem e ao tráfico", conta.

O Mídia Periférica estava tomando tanto tempo de Enderson, que, às vezes, o jovem se via num dilema: ou gastava os únicos R$ 5 da semana para se divertir com "a guria" que namorava, ou usava as economias em uma lan house para atualizar os conteúdos pendentes. A escolha foi óbvia: "Eu parava na lan house, irmão. O sorvete ficava pra depois".

O relacionamento, é claro, não durou. "Culpa dos posts", brinca.

Pablo Saborino/UOL

Cartões postais das periferias

Além do conteúdo gerado no blog e nas redes sociais do Mídia Periférica, Enderson, com a ajuda de alguns amigos e moradores locais, decidiu produzir um jornal impresso, em 2014, cujos exemplares circulavam pelos becos da comunidade.

Além de levar a informação até os moradores, "que nem sempre podem ou acessam o conteúdo gerado na internet", diz ele, o objetivo foi o de elevar a autoestima dos jovens ao mostrar os aspectos positivos das comunidades, em especial, de Sussuarana.

"Era importante que o jornal fosse produzido sob as lentes dos moradores, pois só assim deixaríamos de reforçar as más notícias que a grande mídia compartilha", explica.

Neste mesmo caminho, outra ação promovida pelo Mídia Periférica, responsável talvez pelo "boom do veículo", segundo Enderson, foi a campanha "Postais das periferias". A ação ecoou em veículos de imprensa de todo o Brasil.

Quando o Facebook lançou a opção para que o usuário publicasse capas, no cabeçalho da página-perfil, Enderson teve a ideia de utilizar as fotos tiradas pelos próprios moradores de Sussuarana e comunidades periféricas da região como cartões postais.

Ele recebia as imagens, vindas de Sussuarana e bairros próximos, como Castelo Branco, Gamboa, Boca do Rio, Alto de Coutos e Lobato, formatava para o padrão de capa da rede social e depois as publicava

O intuito foi o de valorizar as comunidades ao mostrar o que de melhor têm a oferecer. "A ação tinha a ver com autoestima do morador, com representatividade", explica. "O objetivo era transformar o olhar do periférico em algo sensível; mostrar o brilho daquelas casas sem reboco, ao retratá-los com afeto."

Pablo Saborido/UOL Pablo Saborido/UOL
Pablo Saborido/UOL

Aqui existe potência

Datas comemorativas não fazem o tipo de Enderson. "Por muitos anos passei a Páscoa, Natal e Ano Novo, na porta de casa, olhando as pessoas que passavam pela rua durante as festividades. Eu e meus irmãos nem ao menos tínhamos nos alimentado", conta.

Hoje, Enderson busca devolver à favela tudo aquilo que lhe negaram quando criança. Este ano, por exemplo, distribuiu chocolates para a "gurizada da comunidade". Para isso, decidiu rifar uma camiseta assinada pelo atacante do Flamengo, Gabriel Barbosa, o Gabigol.

O uniforme assinado só foi possível graças à amiga e jornalista esportiva Ana Paula Garcez. As articulações que Enderson fez por meio do Mídia Periférica possibilitaram o contato não só com jornalistas de todas as regiões do país, mas com diferentes personalidades, como Gabigol, ou mesmo Mano Brown, rapper e compositor da grupo Racionais MC´s.

"A ideia era rifar a camiseta. Só que, em vez de pedirmos dinheiro aos moradores, pedimos caixas de chocolate por cada número do jogo. Ao final, conseguimos 450 caixas e distribuímos para as crianças de Sussuarana."

O Mídia Periférica e as outras ações de Enderson são uma tentativa de diminuir os "nãos" dados a outros jovens moradores das comunidades periféricas da Bahia. Afinal, como ele diz: "Não existe comunidade carente; existe comunidade potente. Só precisamos de oportunidade, como tive em muitos momentos até aqui, para mostrar toda essa potência."

Pablo Saborido/UOL Pablo Saborido/UOL

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