'A ficha caiu'

Quando viu crianças com dez canais para fazer, dentista de celebridades criou rede de atendimento gratuito

Bárbara Forte De Ecoa Pablo Saborido/UOL

Fábio Bibancos, 55, ganhou fama e dinheiro como dentista de celebridades, mas foi com um projeto social que leva atendimento odontológico gratuito a crianças em situação de vulnerabilidade social e a mulheres vítimas de violência que ele encontrou a verdadeira recompensa.

"Quando eu comecei a palestrar em escolas públicas sobre prevenção odontológica e vi crianças com dor e dez canais para fazer, a ficha caiu. Eu fiquei extremamente aflito. Eu comecei, então, a trazer algumas das crianças que encontrei pelo caminho ao consultório."

O projeto teve início de forma amadora em 1995, quando Fábio chamou 15 colegas para fazer atendimentos voluntários. Em 2002, nasceu oficialmente a Turma do Bem, organização que, em 17 anos, transformou-se em uma rede enorme de voluntariado.

Atualmente a iniciativa conta com 17 mil dentistas voluntários no Brasil e no exterior e atende 80 mil crianças com problemas bucais, além de já ter reconstruído o sorriso de 1.100 mulheres que sofreram agressões.

"Na faculdade, a gente é exposto ao melhor em tratamento odontológico. Mas é o melhor só para meia dúzia de ricos. E a gente segue sem uma odontologia pensada para proteger as pessoas."

Pablo Saborido/UOL

Mãe como inspiração

A atuação na Turma do Bem rendeu a Fábio Bibancos dezenas de prêmios, como "Melhor Iniciativa em Ação Social" pela Fundação Mapfre, na Espanha, e o "Prêmio Empreendedor Social", da fundação suíça Schwab em parceria com a Folha de S.Paulo, o que possibilitou que ele fosse o primeiro dentista do mundo a integrar o Fórum Econômico Mundial de Davos, em 2006, do qual participa até hoje.

A maior conquista, no entanto, veio de forma inesperada: Bibancos viu sua mãe, Shirlei, começar uma nova história aos 74 anos.

"Minha mãe viveu toda uma vida que era esperada para as mulheres de sua geração. Casou-se aos 18, criou os filhos, cuidou da casa, do marido. Até que, aos 74 anos, resolveu se libertar. Espantou a todos quando pediu o divórcio e foi morar na minha casa. Um dos fatores que motivaram sua atitude foi ver, em um dos programas da ONG, o empoderamento que um novo sorriso dava para mulheres que haviam sido oprimidas."

O programa a que Fábio se refere é o Apolônias do Bem, que oferece atendimento odontológico a mulheres vítimas de violência. "Sei que, quando minha mãe começou a ter acesso às histórias de cada mulher que passava pelo programa, ela foi aprendendo que poderia vivenciar uma série de experiências novas fora daquela relação. Ela vinha às reuniões e ficava como ouvinte, se apegava a cada uma. Era pura identificação."

Dona Shirlei hoje tem 79 anos e confecciona os bolos e tortas do café que funciona na clínica do filho, faz faculdade da terceira idade, tem um novo círculo de amigas, vai ao teatro e criou coragem até para fazer uma tatuagem. Ela é a grande inspiração de Bibancos: "Eu aprendi com ela que a vida não tem fim porque ela vive intensamente", conta o filho, orgulhoso.

Pablo Saborido/UOL Pablo Saborido/UOL

Caminho do bem

Na infância, Bibancos se lembra de atitudes simples da mãe e da avó Isaura que reverberam em sua conduta até hoje: "As duas tinham uma atuação social por meio de trabalhos voluntários. Ajudavam instituições e as próprias amigas que se separavam em uma época em que o desquite era pouco aceito. Elas acolhiam as pessoas em uma época que não existia o nome 'sororidade'."

Membro de uma família de classe média do Ipiranga, na zona oeste de São Paulo, ele estudou em um colégio jesuíta. Apesar de ter sido um jovem no período da ditadura militar, o dentista também se recorda de lições que levou para a vida adulta. "Na escola, os padres não falavam sobre a ditadura, mas nos colocavam diante das realidades sociais", conta.

"Eu me lembro de ter entre 12 e 13 anos quando fui exposto à realidade de jovens mães da Amparo Maternal [maternidade que acolhe gestantes e mães em situação de vulnerabilidade social], aonde íamos para entender as necessidades das famílias e ajudá-las, seja com coleta de alimentos ou outros produtos. Eu imputo a eles [os jesuítas] e à minha mãe a minha preocupação social e a de muitos amigos que estão em posições de ação social até hoje."

"O choque de realidade era corrosivo para mim. Mas estar próximo daquilo fez de mim, obviamente, um indivíduo social. Você começa a se preocupar com os outros. Não é só você, o seu umbiguinho."

Bibancos formou-se em Odontologia na Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Araçatuba, no interior de São Paulo, em 1986. Na ocasião, o Brasil vivia o fim da ditadura militar e, assim como o país, o recém-formado dentista queria liberdade.

No discurso como orador da turma, ele já sinalizava qual seria o seu caminho profissional: "Ficamos unidos, ajudamos uns aos outros e nos aceitamos mutuamente. É inegável que hoje formam-se novos profissionais de odontologia. Mas, sem dúvida, esses são especiais, porque são mais humanos".

Pablo Saborido/UOL Pablo Saborido/UOL

Dentista de artistas

Formado, o dentista se empenhou na carreira para alcançar os objetivos mais comuns: boa remuneração, um carro, uma casa e poder ir a um restaurante de vez em quando. "Eu queria seguir aquela vida classe média, e consegui. Até que vieram os pacientes famosos", conta.

"Eu comecei a fazer sucesso entre os artistas e mantive uma agenda cheia. Eu acho que o interesse das pessoas célebres em meu trabalho tem a ver com empatia, com olhar para o outro e não para si mesmo. Acho que artista reconhece quem tem essa visão humanista."

O trânsito entre atores e cantores como Ana Paula Arósio, Adriana Esteves, Bete Coelho, Gal Costa, Lázaro Ramos, Claudia Raia, Lea T e Preta Gil rendeu, ao profissional, um empurrão para levar a cultura do tratamento humanizado não apenas para quem tem condições de pagar, mas também para quem não recebe informação sobre dentição saudável.

Pablo Saborido/UOL Pablo Saborido/UOL

Turma do Bem

Foi em 1995 que Bibancos escreveu o primeiro dos seus quatro livros, "Um sorriso Feliz para seu Filho", com o intuito de prevenir problemas odontológicos nas crianças do país. Ao divulgar a obra em colégios particulares e, depois, em escolas públicas de São Paulo, a ficha caiu.

"Aquele livro era ótimo! Mas para uma mãe rica. Eu só entendi isso quando comecei a palestrar em escolas onde vi crianças sofrendo com sérios problemas bucais. Então comecei a atender voluntariamente sem nenhum planejamento."

Os primeiros passos que resultariam na criação da ONG Turma do Bem coincidiram com o período em que Fábio Bibancos foi pai. Bernardo, seu único filho, está com 21 anos. "Sabe rico se preocupando em comprar aqueles protetores de tomada? Era eu até me deparar com a situação bucal das crianças em situação de vulnerabilidade social", comenta ao recordar os primeiros pacientes do projeto.

Bibancos então recrutou 15 colegas de profissão para começar um trabalho voluntário. Eles atendiam - e atendem até hoje - nos próprios consultórios. Os beneficiários eram indicados por organizações sociais e as escolas públicas onde Bibancos palestrava.

Aos poucos, o atendimento foi sendo ampliado e sistematizado e, em 2002, foi fundada a ONG Turma do Bem. O trabalho funciona da seguinte maneira: dentistas de todo o país podem se cadastrar por meio do site para fazer parte do time de voluntários. A organização, então, checa as informações do profissional e faz a conexão entre ele e as crianças que precisam de tratamento, priorizando pelo grau de necessidade determinado por uma triagem realizada em escolas da rede pública ou instituições sociais parceiras. O dentista atende no próprio consultório.

Atualmente, 13 mil profissionais voluntários atuam no Brasil e outros 4 mil em 226 cidades de 12 países da América Latina (Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela).

Pablo Saborido/UOL Pablo Saborido/UOL

Novos sorrisos

É com brilho nos olhos que Fábio Bibancos chama dois jovens que participaram do projeto como pacientes à sala onde recebeu a equipe de reportagem de Ecoa. Gustavo Aquino e Manoel Araújo aparecem com os sorrisos largos que foram cuidados, na adolescência, por dentistas voluntários. Os dois trabalham no consultório que abriu as portas para outras oportunidades. Gustavo, como dentista, e Manoel, como administrador.

"Eu me envolvo com os pacientes de tal maneira que, em dado momento, resolvi abrir um processo seletivo para contratar alguns deles. Os dois, que participaram da ação na adolescência, voltaram para fazer parte como membros."

Com 33 anos de experiência, Fábio Bibancos atualmente é responsável por coordenar a ONG ao mesmo tempo em que mantém sua clínica particular, onde ainda faz atendimentos gratuitos em caso de complemento de tratamentos. Na Turma do Bem, ele conta com 20 funcionários para estabelecer a conexão com os voluntários e acompanhar os resultados. A estrutura é mantida com o apoio de dez empresas.

Pablo Saborido/UOL Pablo Saborido/UOL

Apolônias

Em 2012, a ONG passou a cuidar também de mulheres que tiveram o rosto deformado após agressões. O projeto Apolônias do Bem, que inspirou Dona Shirlei a começar uma nova vida, oferece tratamento odontológico integral e gratuito a vítimas de violência que tiveram a dentição afetada.

"A gente seleciona nossas beneficiárias por meio de triagens feitas com o auxílio de instituições sociais e abrigos públicos. Nós medimos o impacto bucal na qualidade de vida de uma pessoa. São priorizadas as mulheres com problemas odontológicos mais graves, que sustentam a família e retomaram os estudos ou estão fazendo cursos de capacitação profissional", explica o profissional.

Os mesmos dentistas que se oferecem para atender crianças e estão cadastrados na Turma do Bem podem ajudar as mulheres. Em sete anos, 1.100 foram atendidas.

O nome do programa tem uma simbologia forte: "Personagem histórica, Apolônia viveu em Alexandria e morreu em 249, após ser presa, espancada e ter seus dentes quebrados e arrancados", conta Bibancos.

"Mais que bem-estar bucal, elas saem do programa com a autoestima revigorada, empoderadas, sentindo-se capazes de controlar novamente suas vidas. Encontram empregos, ampliam a rede de contatos e começam a gostar mais de si mesmas."

Foi o caso da estudante Daniella de Castro, que teve o rosto desfigurado ao ser atacada por um desconhecido em Manaus (AM) e foi atendida pelo projeto. Dani contou sua história em uma reportagem especial de Ecoa sobre a importância do voluntariado e é lembrada com carinho por Bibancos.

"A Dani apanhou na rua. Ficou desfigurada. Hoje, ela está linda, trabalha em um posto de saúde, está estudando para ser radiologista. Seria um grande motivo para comemorar. Vê-la bem é ótimo. Mas não diminui toda a minha aflição. Foram mais de mil mulheres beneficiadas, mas há muitas outras precisando de ajuda. E nós não conseguimos atender a todas. Isso ainda é frustrante para mim. E eu não consigo me celebrar. Para mim, comemorar é exercitar o ego e eu não quero ocupar esse lugar. Esse lugar pode me transformar num monstrinho."

Pablo Saborido/UOL Pablo Saborido/UOL

O correto não pode ser flexibilizado

Apesar do impacto gerado ao longo de anos de organização, Fábio Bibancos não se sente satisfeito: "Quando passa a aflição? Nunca! Eu continuo frustrado por ter tanta gente sem atendimento. E por saber que nossa organização, por mais dentistas que se voluntariem, não é suficiente para mudar esse cenário".

Segundo dados de 2014 do Conselho Federal de Odontologia, 20 milhões de brasileiros nunca tiveram acesso a um dentista. Vinte por cento não vão ao dentista por falta de dinheiro e 46% da população considera difícil o acesso ao profissional.

"O que me consola, de certa forma, é o impacto pessoal que tenho por meio do programa. Primeiro por meio da minha mãe - e não pelo que mudou na vida dela, mas porque, a partir da convivência com ela, eu reconheço coisas em sua essência que eu não tinha percepção. Ela é extremamente correta, não flexibiliza o que é certo. Ela não abre mão do justo", reforça o filho.

"Foi dessa fonte que eu bebi, embora não tivesse percebido o aprendizado no momento em que ele ocorreu. Cinco, seis anos atrás eu nem falaria da minha mãe ao retratar minha história", complementa.

"E, se eu tivesse que mensurar ainda mais a relevância de tudo o que a gente faz, eu diria que eu tenho o maior prazer em contar tudo isso para o meu filho. Tenho a sensação de que, quando eu for, ele vai falar: 'Meu pai fazia tudo direito'. E eu espero que ele [Bernardo] também siga pelo mesmo caminho."

Pablo Saborido/UOL Pablo Saborido/UOL

Veja também

Pablo Saborido/UOL

Enderson Araújo

"Não existe comunidade carente; existe comunidade potente", diz criador de mídia periférica

Ler mais
Pablo Saborido/UOL

Nem herói nem coitado

Ele criou rede de educação inclusiva e critica a ideia de superação individual

Ler mais
Clara Gouvêa/UOL

Chamada de imbecil

Após ser explorada e agredida por patrões, Luiza Batista hoje lidera trabalhadoras domésticas

Ler mais
Topo