Olá, meus queridos amigos!

Assim, Felipe Castanhari começa cada vídeo do canal Nostalgia que tem alcançado salas de aula por todo o país

Cléberson Santos Colaboração para Ecoa, de São Paulo Adriano Vizoni/Folhapress

"É muito injusto comparar o meu trabalho com o de um professor. Eles têm uma quantidade gigantesca de conteúdo para entregar com pouquíssimo tempo para preparar esse material. Eu tenho quatro meses pra fazer um vídeo sobre um conteúdo. Quando um professor vai ter esse tempo para preparar um material?

Eu sinto que o método clássico de ensino não está mais funcionando. Você teve essa coisa com a Revolução Industrial, de ficar todo mundo numa carteira, sentadinho, o professor na frente, um sistema de notas, cada um competindo por notas... Ele é um sistema muito antigo e que foi pouco atualizado em sua forma.

Estamos com uma geração nova de alunos que já nascem com dispositivos, tendo acesso a todo conteúdo do mundo na palma da mão. Séries, desenhos, jogos. Quando você coloca isso ao lado de um professor falando, escrevendo numa lousa, é obvio que ele vai ter séria dificuldade em manter a atenção dessa pessoa. Como é que você pega essa galera?

Esse professor não conseguiria, nem se ele quisesse, fazer algo parecido, ele não teria tempo. Ele tem que trabalhar, ele tem que colocar comida em casa. Como que ele fica quatro meses se dedicando a algo? Eu gasto uma grana ferrada com edição. Minha equipe custa 'mais de 30 pau' por mês. Um professor vai ter como fazer isso? Ele não tem como!

Eu gosto de frisar que o que eu faço é para ajudar os professores, mas não dá para você substituir o professor pelo o que eu faço. Eu sinto que hoje em dia o professor pode usar meu conteúdo como auxílio para fixar o que ele já passou para o aluno".

Felipe Mendes Castanhari, 30, tem mais de 13 milhões de inscritos em seu canal no YouTube, o Nostalgia. Há cerca de dez anos, ele publica vídeos sobre o que ele gostava de assistir durante sua infância e adolescência. O vídeo mais antigo do canal é sobre o programa Disney Cruj, exibido pelo SBT na segunda metade da década de 1990, e tem mais um milhão de visualizações.

Apesar de expressivo, é um número baixo se comparado ao seu vídeo sobre Adolf Hitler, publicado há mais de quatro anos e assistido mais de 10 milhões de vezes. O vídeo de 1h20 sobre o líder nazista marcou uma virada no conteúdo do Nostalgia. Castanhari passou a gravar menos sobre cultura pop e mais sobre história e ciências.

"Chegou uma hora que tinha acabado os temas nostálgicos para o canal, eu tinha que começar a criar projetos que não tinham necessariamente a ver com nostalgia. As séries que eu tinha assistido, os desenhos, os jogos, eu já tinha feito vídeo sobre tudo. E falei que se for para continuar fazendo vídeo, que seja de temas que eu ache interessante", afirma o youtuber.

Essa mudança também ampliou o público que o canal atingia. O conteúdo publicado pelo Nostalgia passou a ser visto não só por quem sentia saudade dos desenhos animados antigos, mas também por quem se interessava por curiosidades, quem estava estudando para o vestibular, até alcançar salas de aula por todo o país.

"Todos os dias eu recebia pelo menos quatro ou cinco vídeos de pessoas mostrando que um professor estava exibindo algum vídeo meu em sala de aula, de história, de ciências. Isso me deu um senso de responsabilidade muito grande. A gente entende que o professor é responsável, ele não vai mostrar algo em sala de aula só porque o aluno falou que é legal".

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"Eu só queria ser meu próprio chefe"

Castanhari começou a perceber o impacto que seus vídeos estavam alcançando quando um dos professores da escola em que estudou contou que estava usando o conteúdo dele em sala de aula: "Eu lembro como a direção era chata com o que podia passar para os alunos. Para um professor de lá estar exibindo um conteúdo meu, é porque realmente passou no crivo da direção, isso é muito importante. Ali, pra mim, foi um sinal de que meus conteúdos estavam mudando."

A escola em questão é a Fundação Bradesco, em Osasco, região metropolitana de São Paulo e onde Felipe cresceu. Levando em consideração sua paixão por desenhos japoneses e vídeo games, era possível chama-lo de "nerd", mas ele não se vê como "o aluno mais estudioso do mundo".

O que Felipe gostava mesmo na adolescência era desenhar. Tanto que optou pela faculdade de animação 3D, área em que chegou a atuar durante algum tempo.

"É o que eu mais gosto de fazer, trabalhar com audiovisual, é a minha área de especialidade, o que eu estudei, nisso que eu sou bom. A questão é que eu sempre tive um chefe, trabalhava na ideia de alguém, nunca era a minha ideia. Por mais que eu amasse animação, só tinha que obedecer ao briefing e interpretar da minha forma. Foi isso que me incentivou a entrar para o Youtube: ser dono do meu próprio conteúdo e escolher o que entra ou não. E não ter chefe, principalmente", lembra.

Castanhari chegou a publicar vídeos junto com um amigo reagindo a memes que estavam bombando pela internet. O insight que o levou a gravar sobre nostalgia surgiu quando ele próprio estava procurando vídeos para assistir sobre desenhos antigos e não encontrou.

"Estava numa madrugada vendo vídeo e falei 'caramba, já pensou que legal se tivesse um canal que falasse de coisas antigas, de uns temas que eu gosto'. Eu saí procurando no Brasil, não achei nada. Saí procurando na gringa, não achei nada. Era 2011, Youtube ainda era muito novo. E eu falei 'poxa, talvez seja uma área aí para se explorar'".

Foram aproximadamente quatro anos de pura nerdice até a publicação do primeiro vídeo histórico do canal, justamente esse sobre Adolf Hitler.

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Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades

Há três anos, Castanhari publicou o vídeo "Como eu aprendi a ser feliz", em que fala sobre o seu diagnóstico de princípio de depressão. Depois dele, os vídeos sobre curiosidades passaram a ser muito mais frequentes que os de cultura pop. Segundo o youtuber, essa mudança não foi nenhuma coincidência.

"Eu queria fazer mais coisas históricas, científicas, me preenchia mais, me fazia mais feliz, aí eu mudei. Acho que é por isso que esses vídeos ganharam tanto acesso, foram tão bem recebidos pela minha audiência, porque foi um movimento espontâneo. Eu nunca segui tendência, porque a partir do momento que eu começar a seguir tendência, eu vou ficar infeliz, vou começar a fazer algo em que não acredito, e não é o que eu quero".

Contudo, ele percebeu que era importante fazer uma leve alteração na forma como se comunicava com seu público e diminuir a quantidade de palavrões nos vídeos. Castanhari lembra que uma professora mandou e-mail dizendo que gostou muito do vídeo sobre Hitler, mas que não podia mostrar aos seus alunos por conta das palavras impróprias. Ele fez questão de enviar uma versão editada para que a professora pudesse usar o vídeo em sala de aula:

"Eu escuto muito a minha audiência, escuto muito feedback. Foi isso que fez com que eu mudasse, que fez com que eu olhasse de outra forma. Eu estava deixando de atingir uma galera por causa do palavrão. E eu sei que consigo manter a essência sem o palavrão. Você tem formas de substituir o palavrão sem necessariamente mudar para uma linguagem formal. Acho que há mais de três anos que eu não uso palavrão".

Mudar a forma como se expressa no vídeo não foi a única preocupação de Castanhari nessa nova fase do canal. Ele passou a ter também muito mais rigor na pesquisa que faz para produzir cada vídeo. Hoje, o Nostalgia conta com cerca de 15 pessoas envolvidas na produção, entre roteiristas, editores, ilustradores e um historiador ou cientista responsável por conferir a veracidade de tudo que será falado.

Eu não faço um vídeo sobre coronavírus tirando informação da Wikipedia. Eu contrato um infectologista, isso custa dinheiro. Aquele cara passou a vida inteira pesquisando aquilo, ele sabe o que ele está fazendo. A gente altera o roteiro de acordo com as orientações que ele deu. A gente grava, edita e manda para ele de novo. Eu sinto que tenho uma responsabilidade, muitas pessoas vão acabar caindo naquele vídeo e estarão assistindo algo minimamente responsável na era da desinformação, acho que isso é muito importante

Felipe Castanhari

Para além do Youtube

O sucesso que Castanhari alcançou por meio do seu canal o levou para produções em outras mídias, porém com repercussões e condutas bem diferentes entre elas. Em 2017, ele foi apresentador de uma série baseada no polêmico livro "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil", do jornalista Leandro Narloch.

Até hoje, muitos internautas pegam no pé do youtuber por causa de sua participação na série. Segundo o que conta, ele não teve acesso a nada da produção do programa, a não ser ao texto que falaria na tela: "o canal vendeu muito a série como se fosse uma produção minha. Eu levei meu historiador para interferir em tudo que estava incorreto no meu texto, e recusei uma participação na segunda temporada porque eu falei que só toparia fazer mais uma temporada se eu dirigisse, se tivesse controle sobre todo o conteúdo. Aí, é claro, eles falaram 'não'".

Sua segunda série, a Mundo Mistério, foi lançada este ano pela Netflix. Essa sim teve participação ativa de Felipe em toda a produção. O youtuber assumiu a função de "showrunner" da série e teve controle de todo o processo de produção dos oito episódios. Mundo Mistério chegou a ser uma das séries mais assistidas no serviço de streaming na época do lançamento.

"Foi um projeto 100% meu, onde escrevi um roteiro, escolhi absolutamente tudo, os temas, a equipe. Foi uma série que eu curtir demais fazer. Foi muito trabalhoso, foram dois anos produzindo essa série, mas fico muito feliz com o resultado. Se tiver qualquer coisa pra falar, pode falar, é minha produção!", afirma Felipe.

Adriano Vizoni/Folhapress Adriano Vizoni/Folhapress

Assistir, anotar e confirmar se é isso mesmo

Laisa Karolina Rodrigues, 19, assiste aos vídeos do Felipe há cerca de cinco anos, ainda na época que o Nostalgia era mais focado em cultura pop. Ela acompanhou essa transição de conteúdo, dos desenhos animados para as curiosidades científicas, ao mesmo tempo em que estava entrando no ensino médio e começando a se preparar para o vestibular.

Ela lembra que, durante o cursinho pré-vestibular, seus professores chegaram a usar vídeos do Castanhari em sala de aula. Laisa conta que um dos vídeos que a ajudou nesse momento foi o episódio "500 anos em uma hora", sobre a história do Brasil.

"Me ajudou muito no Enem e na Fuvest, principalmente. História do Brasil é muito conteudista e ele explicou super bem. Tudo que eu assistia nos vídeos dele me deixava com mais curiosidade e me fazia pesquisar mais, querer saber mais sobre o assunto. Eu gostava de anotar tudo e procurar em questões de vestibulares antigos se realmente batia com o que ele falava", disse Laisa, que iniciou o curso de enfermagem no começo de 2020.

A professora Sendy Domingues, 27, deu aulas de história para Laisa durante o ensino médio, numa escola estadual em Itapecerica da Serra, região metropolitana de São Paulo. Apesar de não acompanhar os vídeos, ela conta que é comum que seus alunos, principalmente os de ensino fundamental, com idade até 15 anos, conversem em sala de aula a respeito de conteúdos apresentados pelo youtuber.

"Ano passado estava um hype sobre Chernobyl e meus alunos comentaram bastante sobre o vídeo dele. Eu particularmente acho legal porque mostra que eles estão se interessando, ainda que indiretamente, em algum conteúdo que é pertinente para a matéria ou para os estudos deles de maneira geral. Eu acho que é interessante para eles terem uma visão mais ampla do conteúdo, ainda mais porque não é sempre que a gente pode estar usando uma sala de vídeo, com datashow, imagens, filmes. Esses vídeos acabam trazendo esses recursos pra eles", afirma a professora.

Sendy conta também que incentiva seus alunos a continuarem assistindo esse tipo de conteúdo, mas sempre procurando outras fontes, confirmando informações nos livros didáticos ou com os professores, a fim de construir o senso crítico neles: "é uma forma de conquistar os alunos para estudarem, pesquisarem ou minimamente saberem que um assunto x existe, mas é preciso ter um cuidado de fato, citar fontes, para eles saberem que nada ali está sendo inventado. Tem que ter muito claro o que é fato e o que é opinião da pessoa para quem está assistindo saber de onde vem a informação".

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Qualidade > Monetização

Em um dos seus vídeos recentes, Castanhari afirmou que seus vídeos de história não conseguem monetização por, segundo o Youtube, o conteúdo "não estar de acordo com as diretrizes da comunidade". No caso dos vídeos do Nostalgia Ciência, que envolvem também animação e demandavam mais tempo de produção, o valor monetizado não cobria o custo da produção.

Independente de tudo isso, Felipe afirma que não liga para essas questões financeiras e que está mais preocupado com a qualidade do conteúdo que será entregue ao público:

"Eu nunca fiz por dinheiro. Eu já poderia ter mudado o estilo de conteúdo do meu canal, pra fórmulas que eu ia ganhar muito mais dinheiro, ter mais visualização, mais inscrito do que já tenho, e eu não fiz e escolhi não fazer. Todo o dinheiro que fui ganhando, eu fui reinvestindo no canal. Faço porque eu gosto do que faço e porque entendo que, principalmente os vídeos de história, ajudam muitas pessoas. Eu sei que é importante, que muita gente precisa desses vídeos", afirma o youtuber.

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