Sem rolimã

Após 20 anos, o ativista, empreendedor e escritor Ferréz publicará em uma grande editora. Mas nem precisava

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo Keiny Andrade/UOL

"Quando eu vou a um evento, eu tento falar com a empregada que está lá. É ela quem que quero alcançar. Eu vou falar com a mina que está fazendo o café. E eu consigo.

Quando começo a falar, vem o cara da vigilância, da segurança, da limpeza; o balconista. Eles param e sabem que eu estou falando com eles. Não é algo que eles escutam de escritores.

Eles me ouvem falando gíria, com linguajar da favela, e se surpreendem que veem de um escritor. Eu sempre falo pensando neles, eu conto a história sobre eles e sobre a mãe deles, não sobre o boy da USP que está na plateia."

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Ferréz estava triste quando o Capão Redondo preparava-se para comemorar a chegada dos anos 2000. A virada do ano costuma ser barulhenta nas periferias de São Paulo, quando os fogos explodem o dia todo, antes mesmo da contagem regressiva, e os moradores andam sem propósito pelas ruas do bairro, perfumados e vestidos com a roupa nova.

Mas naquele réveillon, Reginaldo da Silva "Ferréz" não estava entre eles. O ano não tinha sido dos melhores, e ele preferiu se trancar no quarto, deitado ao lado de livros comprados após se demitir de uma unidade da lanchonete Bob's. Havia nele o desejo de se dedicar a um livro novo, que no futuro seria considerado um marco na literatura brasileira. Tinha apostado todas as fichas no projeto e queria evitar o que aconteceu no anterior.

Cerca de três anos antes da virada de ano, Ferréz publicou "Fortaleza da Desilusão", livro de poesia patrocinado pela patroa de uma empresa onde trabalhou como arquivista. A senhora não era muito simpática com os funcionários, que suspeitaram de más notícias quando Ferréz foi chamado para o escritório dela. Para surpresa de todos, a chefe tinha visto os poemas que ele distribuía pela empresa e decidiu bancar a publicação do funcionário. O livro foi aguardado pelos colegas do Capão Redondo, mas a recepção não foi calorosa.

Próximo da virada do milênio, ele queria dar um passo adiante. Sentia que seu novo livro precisava se aproximar das pessoas e do cenário onde vivia e desenhou um mapa do bairro. Acrescentou a farmácia, a igreja, os barracos, as casas e se inspirou na própria vida e na dos amigos para criar os personagens. A história tinha nome: "Capão Pecado".

Duas décadas depois, "Capão Pecado" foi publicado pela Companhia das Letras, o maior grupo editorial do país, parte do conglomerado Penguin Random House, considerada a maior editora de livros do mundo.

Na ativa desde os anos 90, Ferréz, que também toca uma ONG e uma empresa, vendeu mais de 100 mil cópias dos seus livros de maneira independente e foi traduzido para quase uma dezena de idiomas. Não à toa, o autor é hoje considerado precursor do movimento conhecido como literatura marginal. Em 2020, vendeu os direitos de "Capão Pecado" para uma adaptação ao cinema.

Mas ninguém sabia disso naquela virada de ano. "Eu era basicamente ninguém", diz o escritor em entrevista a Ecoa. Seu pai o cobrava para arranjar um emprego, enquanto Ferréz apostava tudo para escrever "Capão Pecado" e viver da literatura, um ofício já difícil para os bem-nascidos e quase impossível para um jovem periférico. Era tudo ou nada. Ele olhava para o teto por horas, enquanto podia ouvir o som dos fogos de artifício no lado de fora. "Eu pensei: ou o livro dá certo, ou foda-se".

De repente, o nome de Ferréz pôde ser ouvido entre os ruídos das bombas. Ele se levantou, abriu a janela e se surpreendeu ao ver um grupo de moradores diante de sua casa. Alguns deles, como Ozanias e Anderson, haviam trabalhado com Ferréz em uma padaria e foram resgatá-lo da depressão, abraçá-lo e incentivá-lo a continuar a escrever. Foi o que ele fez. Meses depois, Ferréz lançaria o livro que revolucionou sua vida.

"Capão Pecado"' parou na capa dos jornais. Nos anos seguintes, foi utilizado em escolas, formou dezenas de leitores, foi estudado em universidades. O escritor viajou pelo mundo, conheceu escritores que admirava, e encabeçou um movimento literário, como desejava. Mas, entre todas as celebridades que conheceu e muita coisa que viveu, nunca esqueceu de quando os velhos amigos arrumados o convidaram para dar boas-vindas ao ano que nascia.

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Mais do que um escritor

A recepção dos amigos fortaleceu a primeira de várias ações de Ferréz para tentar mudar o lugar onde vive. Primeiro, compreendeu que pertencia àquele território. Segundo, iria trabalhar a favor e com as pessoas do Capão Redondo.

Assim nasceu a 1daSul, marca de roupas, adesivos e acessórios no Capão Redondo, distrito periférico formado por bairros favelizados na zona sul de São Paulo. Aberta até hoje, a loja vende álbuns musicais, quadrinhos e livros de autores periféricos.

Parte das vendas é revertida para projetos sociais e culturais da periferia. Grupos musicais, como Detentos do Rap, dançarinos de break, oficinas e quermesses já foram patrocinados pela marca. Hoje, as camisetas e bonés da 1daSul marcam a identidade de um morador do Capão e das dezenas de favelas em São Paulo.

No início da carreira, o rapper Kleber Cavalcante Gomes, 45, conhecido nacionalmente como Criolo, mudou de vida após a apresentação de Ferréz em uma ONG em Interlagos, zona sul paulistana. "Foi uma palestra transformadora", lembra o cantor para Ecoa. Uma das primeiras gravações de Criolo foi vendida na 1daSul.

Anos depois, Criolo fez uma homenagem a Ferréz na música "Esquiva da Esgrima", do álbum "Convoque seu Buda", e costuma usar as roupas da 1daSul para apresentações. Certa vez, o escritor se emocionou ao vê-lo vestido com uma camiseta da marca durante um show em um espaço com capacidade para mais de sete mil pessoas, em São Paulo. "Eu só chorei de ver aquilo na frente de uma multidão", lembra o escritor.

Com a popularidade da 1daSul, Ferréz criou a ONG Interferências, em 2009. A instituição recebe recursos da 1daSul e oferece reforço escolar, oficinais educativas e incentivo à leitura para cerca de 80 famílias.

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O leitor que virou professor

O professor Alef Diego Dias, 27, participou de saraus e encontros com escritores promovidos por Ferréz no Capão Redondo. Graças aos encontros, o então entregador de comida na favela dedicou-se à literatura e voltou a estudar. Formou-se em história em 2018. Quando estava prestes a concluir o curso, foi contratado para uma vaga na 1daSul. Só pediu as contas da loja criada por Ferréz , tempos depois, para começar a dar aulas em duas escolas estaduais do Capão.

A jornada de Alef começou aos 18 anos, quando foi até a loja de Ferréz comprar uma camiseta. Ele não tinha dinheiro suficiente, mas saiu de lá com um livro e um convite para participar de um encontro com escritores. A identificação com "Capão Pecado" foi imediata: Alef afirma que nunca tinha lido uma história com personagens como aqueles, que pareciam saídos do dia a dia.

Nas palestras, o professor conheceu Paulo Lins, autor de "Cidade de Deus", Cidinha da Silva, autora de "Um Exu em Nova York", Lourenço Mutarelli, autor de "O Cheiro do Ralo" e Marcelino Freire, de "Contos Negreiros". Na faculdade, fez uma pesquisa sobre o movimento de literatura marginal. "Ferréz me ensinou que eu não devo esperar só Estado, governo, prefeitura. Tem mudança que depende de mim, e eu levei para a vida", explica.

Com a pandemia, Alef foi demitido das duas escolas estaduais onde dava aula como professor substituto, mas ainda participa de um sarau tradicional do Capão. "Eu nunca paro de ler.", diz.

A história de Alef é similar à de Ferréz e a de milhares de periféricos. A leitura na periferia muitas vezes é uma atividade individual, solitária. Na escola, Ferréz lia o russo Anton Tchekhov, os americanos Jack Kerouac, Ernest Hemingway e o alemão Herman Hesse, colecionava quadrinhos de caubói e super-heróis. Ele sofria bullying por se aproximar de punks, homossexuais e professores (e nem todos os educadores gostavam de ler), os poucos que liam.

Como acontece em toda periferia, Ferréz reencontrou colegas de escola anos depois. "Teve um que falou: não acredito que o cara que eu dava porrada na quinta série é o Ferréz", disse. O escritor, por outro lado, lembrava bem. Quem apanha não esquece.

Minha vida é um eterno press release. Eu tenho que ficar explicando o tempo todo o que eu faço, o que eu escrevo. Ninguém colava no Jorge Amado para perguntar por que ele escrevia sobre praia

Ferréz, escritor, poeta e empreendedor

O Capão e o pecado

Em "Capão Pecado", o autor quis evitar um retrato melancólico, piedoso e até fatalista da vida na periferia e aproximá-la da realidade. Os personagens do romance tomam decisões erradas, manifestam preconceitos, conquistam vitórias aqui e ali, enquanto são influenciados por problemas estruturais como a desigualdade, a violência.

Ferréz alterou o texto de personagens mulheres para diminuir um tom machista que o incomodou durante anos na nova edição publicada pela Cia. das Letras. "As minas me cobravam, mas sempre no respeito. Eu escrevi com vinte e poucos anos, então não entendia nada do que falar com a voz de uma mulher. Não reescrevi tudo, mas se a gente puder evoluir em algumas coisas, [por que não] né?".

À época, o livro foi bem recebido pela comunidade, mas incompreendido e discriminado fora dali. Não raro, fotógrafos pediam para Ferréz simular uma arma com as mãos em retratos.

Em um evento, descobriu que era o único escritor sem cachê para uma palestra sobre literatura no interior de São Paulo. Em outro, ouviu que poderia levar parte da comida do bufê para casa, caso precisasse. Uma produtora o questionou se ele iria se arrumar antes de uma apresentação. Os episódios se repetem como roteirizados. "Quando os caras me oferecem um cachê baixo, eu até brinco que os caras estão iludidos. Lá no Capão os caras andam só de Mizuno, tudo chique".

"Uma das coisas mais cruéis que falaram do livro, e falaram sem querer, é que eu narrava a vida de excluídos e miseráveis transformados em guerreiros", diz. "O cara que levanta cedo, e espera de três a quatro horas para chegar e limpar a casa de alguém do Morumbi é um guerreiro, e só. Miserável é quem paga só um salário mínimo para essa pessoa". Em 2010, uma escola proibiu o estudo da obra devido aos palavrões ditos pelos personagens.

Em contrapartida, Ferréz era reconhecido nas periferias e viajou para eventos sobre literatura na Europa e na América Latina. Muitos achavam que o livro era um disco de rap, pois como as músicas dos Racionais MC's era comentado e cultuado na quebrada. Ouvia agradecimento de pais que viram os filhos pegarem gosto pela leitura após lê-lo. Certa vez, um policial do Capão o parou e disse que começou a ler por influência do escritor e que retomou os estudos devido à leitura. Anos depois, Ferréz afirma tê-lo reencontrado, mas diferente: ele agora era um advogado.

Antes da pandemia, Ferréz ajudou a promover oficinas de artes plásticas no Capão. Os quadros foram expostos em um vernissage onde um dos artistas teve um quadro vendido por R$ 500. "Ficou felizão", lembra.

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Da ponte pra cá

Ferréz vive, assim, entre dois mundos. Pelo telefone, recebia a ligação de líderes políticos, ex-presidentes, empresários, artistas e jornalistas enquanto ao redor moradores continuam a viver na corda bamba, como ele viveu. "O boy pode errar. Se ele erra, arranja um trabalho na empresa do pai. O pobre quando erra se fode. Toma um enquadro, puxa uma passagem por maconha no bolso e dificilmente consegue reconstruir a vida", diz.

Desde Capão Pecado, a arte produzida por periféricos começou a ser exibida na televisão, esteve na abertura das Olimpíadas, nos programas dominicais. "Eu tenho a teoria de que o sistema alimenta o pobre e dá dinheiro para o pobre que reforça um determinado estereótipo", diz. "O que o sistema prefere? Um monte de cara preto num sarau discutindo ideologia, ou um monte de cara da favela dançando, resolvendo quebra-cabeça para ganhar prêmio?"

A criminalidade também mudou de estilo, mas continua atraente. "O crime na quebrada é uma cultura. Você liga a televisão, o Datena te alimenta com cultura criminal. Assiste um jornal, você come cultura criminal. O seu primo tá preso, você sabe como é a cadeia, você sabe como são os corres. Quando você for fazer uma pesquisa, um trabalho, vai falar sobre o quê? Sobre o desenvolvimento econômico em Harvard? Sobre música clássica?", diz. "Para entrar no fluxo do bairro é fácil. Basta aceitar uma carona e ir parar numa troca de tiro, ou ser parado pela polícia", diz. "É uma máquina de fazer vilão".

Ferréz percebeu que os artistas periféricos não precisavam da compreensão das grandes editoras, da televisão. Por isso, tornou-se o maior divulgador da literatura marginal. Para a pesquisadora da USP Érica Peçanha, que estuda o movimento há 15 anos, o termo projetou e unificou escritores periféricos, como Ferréz e Paulo Lins, autor de "Cidade de Deus", que na época não eram beneficiados por políticas públicas e tinham desinteresse das grandes editoras.

Hoje é diferente. Em 2020, a Companhia das Letras criou um grupo para organizar e relançar a obra de escritores considerados "diversos", como LGBTQIA+, negros, indígenas, mulheres, periféricos e autores de outras regiões do país. "Embora alguns escritores negros e periféricos tenham alcançado visibilidade e sejam consumidos por leitores de diferentes perfis", diz a pesquisadora, os "esforços [dos próprios aristas] de produção e circulação se acumulam há décadas".

Foi o caso de Ferréz. Por vinte anos, ele vendeu o "Capão Pecado" no boca a boca. No início da divulgação nos anos 2000, preferiu editoras com tiragens menores, mas com mais liberdade e experiência para aquele tipo de escrita e do projeto gráfico. "Eu não me arrependo. O livro saiu com a cara que eu queria", diz. Uma década depois, ele relançou a obra pela editora Objetiva. Àquela altura, afirma ter vendido cerca de 100 mil cópias.

Em 2019, a alta cúpula da Companhia das Letras o procurou. Ferréz já era conhecido da editora, que queria aproveitar o aniversário de 20 anos de publicação para relançar "Capão Pecado." De início, ele resistiu ao convite, mas o escritor Marcelino Freire o incentivou. "Seus leitores merecem, você merece, e você pode renovar o público", disse Marcelino. Ferréz concordou. "O independente é o que mais depende de todo mundo", diz, "Tô cansado. Carreguei livro pra caralho, já deu minha cota".

Seria fácil atribuir a Ferréz uma jornada de herói, do pobre que venceu na vida. Mas ele não quer isso. "Tudo que construí na vida é porque eu sou doente, mano. Eu trabalho num ritmo doente, 24 horas para fazer as coisas", diz. "Só quem é rico desce na vida de carrinho de rolimã".

Ainda hoje se considera indignado, irritado com o contraste das melhores lembranças da própria vida mescladas à miséria causada pela desigualdade social. "Ganhar prêmio, viajar, ser publicado pela Companhia. Nada disso tira minha indignação. Por que onde como, vejo que os caras do lado não tão comendo. E eu não fico satisfeito com a vida só por mim, tá ligado?"

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