Ferréz vive, assim, entre dois mundos. Pelo telefone, recebia a ligação de líderes políticos, ex-presidentes, empresários, artistas e jornalistas enquanto ao redor moradores continuam a viver na corda bamba, como ele viveu. "O boy pode errar. Se ele erra, arranja um trabalho na empresa do pai. O pobre quando erra se fode. Toma um enquadro, puxa uma passagem por maconha no bolso e dificilmente consegue reconstruir a vida", diz.
Desde Capão Pecado, a arte produzida por periféricos começou a ser exibida na televisão, esteve na abertura das Olimpíadas, nos programas dominicais. "Eu tenho a teoria de que o sistema alimenta o pobre e dá dinheiro para o pobre que reforça um determinado estereótipo", diz. "O que o sistema prefere? Um monte de cara preto num sarau discutindo ideologia, ou um monte de cara da favela dançando, resolvendo quebra-cabeça para ganhar prêmio?"
A criminalidade também mudou de estilo, mas continua atraente. "O crime na quebrada é uma cultura. Você liga a televisão, o Datena te alimenta com cultura criminal. Assiste um jornal, você come cultura criminal. O seu primo tá preso, você sabe como é a cadeia, você sabe como são os corres. Quando você for fazer uma pesquisa, um trabalho, vai falar sobre o quê? Sobre o desenvolvimento econômico em Harvard? Sobre música clássica?", diz. "Para entrar no fluxo do bairro é fácil. Basta aceitar uma carona e ir parar numa troca de tiro, ou ser parado pela polícia", diz. "É uma máquina de fazer vilão".
Ferréz percebeu que os artistas periféricos não precisavam da compreensão das grandes editoras, da televisão. Por isso, tornou-se o maior divulgador da literatura marginal. Para a pesquisadora da USP Érica Peçanha, que estuda o movimento há 15 anos, o termo projetou e unificou escritores periféricos, como Ferréz e Paulo Lins, autor de "Cidade de Deus", que na época não eram beneficiados por políticas públicas e tinham desinteresse das grandes editoras.
Hoje é diferente. Em 2020, a Companhia das Letras criou um grupo para organizar e relançar a obra de escritores considerados "diversos", como LGBTQIA+, negros, indígenas, mulheres, periféricos e autores de outras regiões do país. "Embora alguns escritores negros e periféricos tenham alcançado visibilidade e sejam consumidos por leitores de diferentes perfis", diz a pesquisadora, os "esforços [dos próprios aristas] de produção e circulação se acumulam há décadas".
Foi o caso de Ferréz. Por vinte anos, ele vendeu o "Capão Pecado" no boca a boca. No início da divulgação nos anos 2000, preferiu editoras com tiragens menores, mas com mais liberdade e experiência para aquele tipo de escrita e do projeto gráfico. "Eu não me arrependo. O livro saiu com a cara que eu queria", diz. Uma década depois, ele relançou a obra pela editora Objetiva. Àquela altura, afirma ter vendido cerca de 100 mil cópias.
Em 2019, a alta cúpula da Companhia das Letras o procurou. Ferréz já era conhecido da editora, que queria aproveitar o aniversário de 20 anos de publicação para relançar "Capão Pecado." De início, ele resistiu ao convite, mas o escritor Marcelino Freire o incentivou. "Seus leitores merecem, você merece, e você pode renovar o público", disse Marcelino. Ferréz concordou. "O independente é o que mais depende de todo mundo", diz, "Tô cansado. Carreguei livro pra caralho, já deu minha cota".
Seria fácil atribuir a Ferréz uma jornada de herói, do pobre que venceu na vida. Mas ele não quer isso. "Tudo que construí na vida é porque eu sou doente, mano. Eu trabalho num ritmo doente, 24 horas para fazer as coisas", diz. "Só quem é rico desce na vida de carrinho de rolimã".
Ainda hoje se considera indignado, irritado com o contraste das melhores lembranças da própria vida mescladas à miséria causada pela desigualdade social. "Ganhar prêmio, viajar, ser publicado pela Companhia. Nada disso tira minha indignação. Por que onde como, vejo que os caras do lado não tão comendo. E eu não fico satisfeito com a vida só por mim, tá ligado?"