Divisor de águas

Há dez anos, Flávia Durante criou a feira de moda plus size que transformou a vida de mulheres gordas

Maiara Marinho Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Felipe Mariano/Divulgação

"Há uns 10, 15 anos, a gente tinha moda plus size com o intuito de esconder, disfarçar o corpo gordo. A minha ideia era valorizar o corpo da mulher, identificar as mulheres gordas fashionistas que estavam começando na internet naquele período de surgimento dos blogs de moda plus size.

Eu sabia que tinha uma coisa ali que poderia virar algo maior, embora na época não tivesse a consciência política que tenho hoje, muito menos a empreendedora. Mas eu tinha um feeling ali do que poderia virar.

O 'start' foi vender biquínis. Sou do litoral e sempre gostei de usar biquíni de todos os tipos. Juntei uma meia dúzia de marcas plus size praticamente informais para ver no que ia dar... Eu revendi os meus biquínis, chamei uma amiga pra fazer legging estampada, outra que fazia camiseta geek, outra que tinha brechó.

Utilizamos o espaço cultural de um amigo para fazer um bazar, no Bixiga. Começou bem assim, despretensiosamente. Mas a carência [de oferta] é tão grande que desde o primeiro evento já foi um super retorno. Só fui pensar no evento de moda plus size como uma carreira depois de uns dois ou três anos. Foi aí que eu vi que estava fazendo diferença na vida de muitas mulheres".

Reinventando-se com a moda

Por um tempo, a relação de Flávia Durante, 45, com a moda foi de certa estranheza. Como jornalista, nas redações, esse não era seu assunto favorito e ela fugia de pautas que a trouxessem para mais perto deste universo. Até que ela começou a perceber que, na verdade, era o universo da moda que a excluía.

"Sempre gostei de me vestir de uma forma diferente, personalizada, mas eu entrava nas lojas e tinha aquela coisa de ser olhada de canto ou, às vezes, com palavras agressivas, como 'aqui não tem nada para você', 'aqui não tem do seu tamanho', coisas que a gente está cansada de ouvir sendo uma mulher fora dos padrões", conta Flávia.

Entre a adolescência e o início da vida adulta, Flávia gostava de usar jeans e camisas com estampa de bandas. Música é uma de suas grandes paixões — da festa icônica que comandava no underground de Santos (SP), a Popscene!, ao trabalho de artistas contemporâneos —, Flávia absorve referências por onde passa e as incorpora em seu visual, o que abriu um leque ainda maior de combinações na vida adulta. "Um dia posso estar num estilo mais minimalista, no outro mais alternativo, no outro mais sexy", comenta Flávia, que diz gostar de brincar com a moda.

O sucesso do Pop Plus e a comunidade que a feira criou em torno da moda para corpos diversos têm muito a ver com essa transformação também na relação de Flávia com a moda. Ela também compartilhou suas experiências pessoais e dicas de estilo em uma coluna entre 2017 e 2019 aqui no UOL.

Robson Leandro/Divulgação Robson Leandro/Divulgação

Do bazar ao festival

O Pop Plus é uma feira que reúne, quatro vezes ao ano, dezenas de marcas autorais e independentes no Club Homs, na Avenida Paulista, em São Paulo. Com cerca de 50 mil visitantes ao ano, o evento criado por Flávia Durante é hoje o maior voltado para moda plus size da América Latina.

O que começou como um espaço de vendas de roupas plus size de diferentes estilos, com o tempo se transformou em um local de aprendizado e de quebra de tabus. Ao perceber a importância de fomentar debates, Flávia integrou na programação painéis sobre gordofobia, sexualidade, entre outros.

"A gente começou como uma forma de consumo de moda mesmo, para ter um fomento da moda autoral plus size e, ao longo do evento, eu senti a necessidade de agregar outras coisas, não só para atrair público, mas também para a gente educar", comenta.

Hoje, o evento reúne DJs, apresentações artísticas, dança, painéis de debate, yoga, gastronomia, e uma diversidade de saberes e expressões surpreendentes.

Em média, passam por cada edição cerca de 12 mil pessoas. Em 2019, esse número chegou a mais de 50 mil no ano, interessadas nas mais de 100 marcas selecionadas sob a curadoria de Flávia. O evento abre portas para marcas com pouco espaço para se apresentar a seu público e, na Pop Plus, chegam a faturar cerca de R$ 90 mil por evento.

Com as restrições impostas pela pandemia, a edição de 2022 receberá um número reduzido de marcas e exigirá comprovante de vacinação, além do uso de máscaras para a entrada. E, com novidade: este ano terá a 1ª Feira do Brechó Plus Size dentro do Pop Plus. O evento é gratuito e já está com a agenda aberta.

O conjunto de símbolos presente em cada atividade fomenta descobertas no público. Foi no Pop Plus, por exemplo, que muitas mulheres entre 30 e 40 anos vestiram, pela primeira vez na vida, saia, biquíni e roupas mais coloridas.

Para Flávia, o episódio mais marcante que vivenciou no Pop Plus foi ver a emoção de uma menina de 14 anos ao encontrar um vestido que serviu bem nela. "A menina chegou no evento, procurou umas coisas, aí quando ela encontrou um vestido que ficou perfeito nela, ela começou a chorar. Todo mundo se emocionou".

Foram essas histórias que me fizeram perceber que o Pop Plus era muito mais do que só um espaço de moda, de beleza e estética, mas também da importância social dele. Que preenche uma lacuna de milhares de mulheres excluídas da moda diariamente

Flávia Durante, criadora do Pop Plus, feira de moda plus size

Um sonho coletivo

A empresária Juliana Torrette, dona da marca de moda praia Cor de Jambo, participa da feira desde 2015. Ela é pioneira no fio dental plus size com modelos que vestem do 46 ao 56. A sugestão do modelo veio da Flávia, e por esse motivo ela é conhecida como a madrinha do fio dental plus.

Juliana conta que o Pop Plus, além de impactar no volume de vendas, auxiliou no amadurecimento da marca. "Antes produzíamos peças plus, porém mais simples e básicas. A feira abriu um mundo diferente, onde tivemos muito mais liberdade para criar e ousar", diz.

Como consumidora, a jornalista e criadora de conteúdo Bárbara Forte, 33, considera o Pop Plus um divisor de águas em sua vida desde que descobriu a feira nas redes sociais, em 2017. Bárbara, na época, estava bastante insatisfeita com as opções oferecidas pelo mercado. "Muitas vezes saía chorando das lojas por não encontrar nada que me servisse", conta.

No evento, ela se sentiu confortável e passou a ver o próprio corpo com mais generosidade. "A primeira loja com que me deparei tinha inclusive uma camiseta escrito 'gorda', e até então eu achava que não era pra gente se orgulhar de ser quem era. Meu olhar mudou a partir desse dia". Esse encontro rendeu um novo início a ela, que criou um blog sobre autoestima e corpo livre. "Hoje sou uma pessoa mais segura do meu espaço no mundo. Tento replicar que todas nós somos merecedoras de sermos quem nós somos", afirma Bárbara.

Felipe Mariano/Divulgação Felipe Mariano/Divulgação

É questão de dignidade

Em sua caixa de e-mails, Flávia recebe diversos relatos de pessoas de outras regiões do Brasil descrevendo situações em que, por falta de roupas do seu tamanho em sua cidade, a pessoa tem uma única peça de roupa. "Aí, enquanto essa roupa, está lavando ela tem que usar uma canga, ou uma toalha, ou um lençol porque ela não encontra roupas na região dela", relata.

A empresária ainda lembra da época em que só encontrava peças para seu corpo na seção masculina de lojas de departamento ou entre as roupas para grávidas. Ela defende o acesso a roupas para corpos de todos os tamanhos como uma questão de dignidade. "Não só de beleza, de identidade, de expressão, de cultura, de história, mas também como dignidade, principalmente para quem veste acima dos 54", diz.

A ideia agora é levar o festival a cada vez mais pessoas, começando pelo interior e litoral de São Paulo. "A ideia é descentralizar", conta. A primeira edição em Campinas já tem data marcada, acontece em 9 e 10 de abril.

Outro plano, dentro das comemorações da primeira década do projeto, é aprimorar o conteúdo produzido para o festival. "Eu estou transformando o site em uma revista especializada em corpo gordo, moda plus size, comportamento, tudo relativo ao nosso público", diz Flávia.

Robson Leandro/Divulgação Robson Leandro/Divulgação

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