Educar para transformar

Flavio Bassi trabalha pelo empreendedorismo social, inspirado na educação popular e nos povos indígenas

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo Pryscilla K./UOL

"O ritmo de mudança está mais acelerado e a nossa capacidade de dar uma resposta quando há um retrocesso ou quando o mundo precisa de uma transformação fundamental não só aumentou como se democratizou.

Essa capacidade de engajar as pessoas rapidamente num movimento coletivo era impensável. Estamos vivendo esse momento intensivo, uma concentração de tempo e de espaço e uma densidade muito grande de vontade de transformação. Nosso desafio é conseguir orientar essa intensividade, essa democratização da capacidade de transformar, essa aceleração do ritmo de mudança e canalizar para o bem comum.

A gente está tendo uma oportunidade de virada histórica, em que uma sociedade que sempre foi definida pela repetição agora está cada vez mais sendo definida pela mudança. Por isso a Ashoka aposta em criar condições para que todos sejam transformadores, para não perdermos essa oportunidade enorme.

Se a gente não aproveitar essa virada histórica, há duas possibilidades: a primeira é essa capacidade de transformação voltar para as elites, para quem tem poder econômico e político, e aí vai continuar sendo um mundo cada vez mais desigual. A segunda é a gente se preparar pra esse mundo que está chegando, aproveitar essa virada, e, aí, o fato de ser ou não ser um transformador não será mais um fator de desigualdade entre as pessoas.

Para isso acontecer, precisamos trabalhar com o sistema inteiro. A gente precisa falar com todo mundo, precisa estar nos meios de comunicação, precisa mostrar pras pessoas que essa virada está acontecendo. Precisamos apoiar aqueles pais que querem colocar os filhos em uma escola mais transformadora a serem corajosos para fazer essa mudança.

A gente precisa aproveitar esse momento de virada e olhar justamente para a capacidade que as pessoas têm de criar um novo mundo a partir da sua própria capacidade de transformação. É um momento único, essas viradas não acontecem com frequência no mundo. Acho que essa urgência histórica não está tão clara para as pessoas".

Pryscilla K.

A invenção do empreendedorismo social

Encontrar e reconhecer empreendedores sociais no Brasil foi o trabalho que o biólogo e antropólogo Flavio Bassi passou a fazer na Ashoka a partir de 2007. Inicialmente sediada na Índia, a organização internacional, fundada em 1980 pelo americano Bill Drayton, chegou ao Brasil na mesma década, apenas alguns anos após a redemocratização. Seu objetivo era potencializar transformações sociais através do apoio a indivíduos que haviam criado iniciativas inovadoras, voltadas à resolução de problemas sociais estruturais de sua comunidade ou país.

Bassi, que é vice-presidente da Ashoka para a América Latina e membro da equipe de liderança global da ONG, tinha como um de seus objetivos pessoais reconhecer mais empreendedores sociais indígenas, meta que concretizou ao trazer figuras como Tashka Yawanawá para a organização. O cacique vinha desempenhando um papel decisivo no resgate da cultura e das tradições de seu povo a partir dos anos 2000.

Hoje, o Brasil conta com cerca de 400 empreendedores sociais reconhecidos pela Ashoka em todas as regiões do país e áreas de atuação — que incluem, por exemplo, direitos humanos, participação cidadã, desenvolvimento econômico, saúde e educação. No mundo, são mais de 4 mil em 91 países.

"A Ashoka ajudou a criar esse conceito de empreendedorismo social para mostrar que a sociedade civil pode ser tão forte, organizada, produtiva, estruturada e profissional quanto qualquer outro setor. Quando a Ashoka surgiu, existia uma ideia de que trabalhar para resolver um problema social era só através da caridade. Era um trabalho visto de uma maneira muito amadora", explica Bassi.

Além de mirar na profissionalização da sociedade civil, o reconhecimento dos empreendedores sociais buscava dar mais visibilidade ao trabalho e fomentar a colaboração entre agentes de transformação de diferentes áreas, tornando sua jornada menos solitária.

"No Brasil e também em outros países, há essa ideia de associar o trabalho [social] a algo religioso — e no caso do Brasil muito cristão, católico — de doação, de entrega. Mas ele não precisa ser um sacrifício, um sacerdócio", defende Bassi. "Na minha vida inteira, nunca trabalhei em outra área que não na área social. É perfeitamente possível ter uma carreira e uma profissão só nessa área, em organizações de interesse público, coletivo, e não de interesse privado".

Depois de cinco anos na função, Bassi se mudou para Joanesburgo para dirigir o escritório da organização na África do Sul, ficando responsável pela coordenação da Ashoka em todo o cone sul da África. Lá, além de localizar empreendedores sociais, ele também passou a trabalhar com universidades para que a formação oferecida ajudasse os estudantes a desenvolverem sua capacidade de transformação.

A ideia se expandiu para as escolas, e Bassi passou a atuar também no reconhecimento das chamadas Escolas Transformadoras, ainda na África do Sul. A proposta do programa, hoje presente em diversos países, é reconhecer e formar uma rede de instituições de educação básica com projetos pedagógicos e metodologias que estimulam o desenvolvimento de habilidades transformadoras nos alunos, como empatia, colaboração e protagonismo.

Bassi integrou nos últimos meses do ano passado a curadoria de Ecoa, grupo formado por profissionais com atuação de impacto no campo social que participa de uma troca diária com nossa equipe de reportagem.

Pryscilla K/UOL Pryscilla K/UOL

"Flavio tem uma coerência entre o que pensa e faz que é fundamental"

No Brasil, o Escolas Transformadoras foi lançado em 2015, em parceria com o Instituto Alana. Bassi retornou então ao país para coordenar o processo em toda a América Latina.

Nessa época, trabalhou ao lado da educadora Raquel Franzim, atual coordenadora da área de educação do Instituto Alana.

"Eu costumo dizer que minha trajetória profissional se divide em antes e depois de ter sido co-coordenadora do programa Escolas Transformadoras e ter trabalhado diretamente com o Flavio", diz Franzim a Ecoa.

"O impacto da nossa relação profissional na minha vida foi o de passar a ter uma visão de sociedade capaz de empenhar transformações positivas e necessárias. O Flavio tem uma coerência entre o que pensa e faz que é fundamental no ambiente de trabalho. E acho que é essa coerência que traz tantas pessoas para essa visão de transformação social, porque você não acredita só pelo que escuta, mas pelo que você vê acontecer", complementou.

"A quantidade de alunos e de pais que queriam conhecer o que a gente estava fazendo aumentou"

No caso da Escola Vila Verde, localizada em Alto Paraíso de Goiás, na Chapada dos Veadeiros, a certificação pelo programa colocou-a no radar nacional de boas práticas de educação. Isso aumentou a visibilidade da escola, abriu portas para que fosse contemplada em outros projetos e reconhecimentos e, principalmente, garantiu sua sobrevivência ao aumentar a confiança da comunidade local em relação às metodologias adotadas.

"Com isso, a quantidade de alunos e de pais que se aproximaram e quiseram conhecer o que a gente estava fazendo aumentou, melhorou muito", disse o diretor pedagógico da escola, Fernando Leão, a Ecoa. Leão conheceu Bassi no início de 2016, em uma visita feita pela coordenação do programa à escola, e afirma que o entusiasmo de Bassi com a educação e seu poder de transformação são a melhor propaganda da iniciativa.

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No nosso mundo ideal, a gente gostaria que as universidades, as escolas e os pais acolhessem o poder de transformação das crianças. Que esse poder de agência, de criar, de transformar não fosse barrado e limitado ao longo da vida

Flavio Bassi , Vice-Presidente da Ashoka na América Latina

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Da Mooca à Argélia

Nascido em uma típica família de ascendência italiana do bairro da Mooca, em São Paulo, o biólogo e antropólogo teve uma infância bem diferente do que se poderia esperar para aquele contexto. Antes de completar um ano de idade, seu pai, que havia estudado Tecnologia na faculdade e fora estagiário na empresa de telefonia Ericsson, recebeu — e aceitou — uma proposta para trabalhar como técnico de eletrônica da empresa na Argélia.

A família se mudou para o país do norte da África no começo da década de 1980, e Bassi cresceu tendo contato com uma realidade totalmente distinta da que teria no lugar onde nasceu: em escolas internacionais, conviveu com colegas de vários países, falantes de uma miríade de línguas.

Essa experiência com a diversidade impactou definitivamente sua vida e sua visão de mundo. Ao retornar ao Brasil com a família, já na adolescência, sentiu o baque da falta de liberdade e diversidade de um colégio convencional privado de um bairro de classe média em São Paulo.

"Tinha uma salinha que chamava parlatório, basicamente era a sala de uma coordenadora pedagógica para onde mandavam o aluno quando ele fazia uma coisa que era entendida como errada. Eu ia toda semana. E eu não era exatamente falastrão, era bem tímido até. Mas quando eu via uma coisa que eu achava injusta ou quando achava que eu estava sendo reprimido, por ter tido uma educação diferente antes, eu falava", conta.

Nessa época, na adolescência, buscando se reconectar com a diversidade cultural e humana que havia perdido de vista ao retornar para São Paulo, Bassi passou a se interessar pelos povos indígenas do Brasil e a estudá-los por conta própria. Ligado à natureza desde a infância e estimulado pelo conhecimento sobre os indígenas, também passou a se interessar pelo meio ambiente, decidindo cursar Biologia na universidade.

"Reconhecer essa diversidade e essa diferença [dos povos tradicionais] passou a ser minha missão. A ideia daquele lema zapatista 'por um mundo onde caibam muitos mundos', de ampliar os horizontes, para mim era o grande barato. Por muitos anos da minha juventude, nos anos de universidade, meu grande barato era esse: eu queria que todo mundo conhecesse o que é um geraizeiro, uma comunidade de fundo de pasto e soubesse que a gente é muito mais diverso do que parece". Para ajudar o Flavio, Ecoa te conta quem é um geraizeiro: geraizeiros se tratam de populações tradicionais que vivem no norte de Minas Gerais, os cerrados conhecidos como Gerais.

Durante a graduação na USP seu universo se expandiu novamente. Bassi atribui a esse período e à liberdade vivenciada na universidade o desenvolvimento de sua capacidade de criar e transformar. Foi nos primeiros anos de curso que ele fundou a Ocareté, associação que trabalha com povos tradicionais, amparando-os em suas lutas por direitos, na qual trabalharia durante quase uma década.

Também foi na organização que iniciou seu trabalho com a educação, mais especificamente como educador popular entre povos indígenas da Amazônia e quilombolas do Vale do Ribeira, função que exerceu até entrar para a Ashoka em 2007. Pouco depois, cursou uma segunda graduação em Ciências Sociais, tornando-se bacharel em Antropologia também pela USP e mestre em Antropologia Social pela mesma instituição.

Pryscilla K.

O aprendizado com os povos tradicionais

A convivência com populações tradicionais deixou uma marca permanente no modo como Bassi enxerga a sociedade, a educação e as transformações que precisam atuar sobre ambas.

"Não tem nenhuma ideia que eu tenha que não esteja conectada com o que eu aprendi com eles, nada que eu faça que não seja inspirado por isso", diz. "Me vejo muito mais como antropólogo do que como qualquer outra coisa. O que mais me ajuda na minha ação é pensar a partir dessa alteridade com os povos tradicionais".

Ele tem muitas histórias relacionadas à maneira de se transmitir e adquirir conhecimento nas aldeias, que considera diametralmente oposta da que se encontra no sistema escolar.

Uma delas é da época de sua pesquisa de mestrado junto aos indígenas Paiter. Depois de muito perguntar às pessoas da aldeia quem havia ensinado a elas como confeccionar um anel ou um desenho ornamental em uma flecha — e ouvir como resposta "ninguém" —, percebeu que a ética de aprendizado dos Paiter envolvia ser sujeito do processo, observando em silêncio quando alguém realiza uma atividade para tentar executá-la sozinho depois. Segundo Bassi, uma das palavras usadas pelos Paiter para falar de conhecimento pode ser traduzida como "coração lento", em referência à tranquilidade e disposição necessárias para poder aprender.

"Completamente diferente do nosso modelo convencional de escola, pautado na aceleração, com o tempo todo cravadinho, restrição de liberdade, de fala e de escuta. Eles sacaram há muito tempo que não dá pra dividir cultura e natureza, espaço e tempo. A gente tem que desconstruir e reconstruir coisas que pra eles já estão desconstruídas", diz.

Bassi destaca que mesmo a pedagogia de Paulo Freire tem relação com essa cosmovisão dos povos tradicionais.

"Toda a lógica da educação popular no fundo vem da ideia de que a ação que o homem faz sobre a natureza que cria a cultura é a essência do processo de educação. Quando você pega o barro e faz um vaso, o trabalho exercido sobre a natureza é a educação. A cultura é educação. Nesse sentido, toda a cultura dos Paiter é uma grande educação. Não tem separação. Mas a gente separou, criou um espaço escolarizado, domesticado para ensinar a nossa cultura. Não é a cultura que está ensinando, é a escola que está ensinando a cultura. É uma inversão. O Paulo Freire também aprendeu dos lugares onde não existe essa separação, onde todo lugar é lugar de aprender e todo mundo ensina".

Uma "membrana semipermeável" entre educação popular e escolar

A filosofia de Paulo Freire e a experiência com a educação popular forneceram ao antropólogo e biólogo a base para reconhecer experiências transformadoras na educação.

Visitando escolas de diferentes países em função de seu trabalho no programa Escolas Transformadoras, Bassi se deu conta de que muito do que se aplicava buscando atingir uma educação inovadora era semelhante aos princípios e práticas da educação popular.

A metodologia de sala de aula invertida, por exemplo, presente em escolas privadas de alto padrão que são tidas como inovadoras, para ele nada mais é do que a proposta de Paulo Freire de que a educação se faz debaixo de um pé de manga, com educador e educando compartilhando os papéis.

"Acredito numa educação em que a membrana entre o popular e o escolar seja semi-permeável, com cada vez mais passagem entre os dois. Tem coisas do [modelo] escolar que também são importantes, é uma via de dois caminhos. A educação popular consiste em aprender e compartilhar o conhecimento através da experiência vivida. É a vida acontecendo que vai te dar os indícios do que aprender, de como fazer o gancho para aquele assunto, de como aplicar aquele conhecimento. Não é um material morto que está no livro, ou um exercício que o professor bolou do nada. É uma escola viva, cuja matéria é a própria vida daquele lugar", diz.

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