MÃE DE TODES

Luta da ativista Gilmara Cunha resulta no primeiro Centro de Promoção de Cidadania LGBTQIA+ de uma favela

Thaynara Santos, do data_labe Colaboração para Ecoa, do Rio de Janeiro Patrick Menezes/UOL

"Eu nunca me dei conta do que eu estou fazendo, mas estou indo, às vezes como um carro desgovernado (risos), mas as coisas vão acontecendo. Eu nunca parei porque não se trata só de mim, se trata de um coletivo que precisa dessa liderança. A minha vida é essa, eu gosto de trabalhar com isso.

Eu fico [emocionada] porque as pessoas não têm dimensão. Não sabem quantas noites eu tive que perder, quantos 'nãos' nós recebemos, porque a vida é difícil.

As pessoas têm uma imaginação muito fértil, não conseguem entender como chegamos em alguns patamares e acham que chegamos ali caindo.

Eu fico feliz em deixar esse legado, não só para a Maré, mas para outras favelas e mostrar que o Brasil é capaz de mudar através das mãos de uma mulher trans."

Patrick Menezes/UOL
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O corre

Gilmara Cunha não para. Conhecida por geral na Maré, respeitada pelos coletivos LGBTQIA+, foi candidata a vereadora nas eleições municipais de 2020, mas não levou. Começa, no entanto, 2021 com outra vitória.

Este mês, o primeiro Centro de Promoção de Cidadania LGBTQIA+ dentro de uma favela será inaugurado no Conjunto de Favelas da Maré como resultado de anos de dedicação da ONG Conexão G, da qual Gilmara é uma das fundadoras, e de outras organizações da Maré.

Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), o Brasil ocupa o 1° lugar no ranking dos assassinatos de pessoas trans e travestis no mundo. Segundo o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP RJ), a cada 24h uma pessoa é vítima de LGBTfobia em nosso país.

Esses números mostram que o passo foi grande, mas ainda há muito o que caminhar.

"Estou muito feliz e ansiosa pela abertura do Centro de Cidadania. Quantas morreram no caminho e não conseguiram ver isso acontecer? Eu vou morrer e vou ver a coisa acontecendo. O Estado está aqui, não com um olhar precarizado, porque nós estamos dispostos a transformar esse espaço. Temos uma responsabilidade muito grande como primeiro Centro - um equipamento do Estado - em território favelado, a gente precisa fazer com que isso funcione, para que seja possível ampliar para as outras favelas", diz Gilmara.

"Gilmara é uma líder nata"

Fundado em março de 2006, o Conexão G de Cidadania LGBT, do qual Gilmara é diretora, funciona no Conjunto de Favelas da Maré, zona norte do Rio. Há quinze anos pleiteia políticas públicas e avanços para a comunidade. Foi o primeiro grupo comprometido com a luta pelos direitos dos moradores LGBTQIA+ na favela.

"Gilmara é uma líder nata, acredito que a liderança seja a característica mais marcante dela", explica Matheus Affonso, que é morador da Maré, comunicador, fotógrafo e designer gráfico.

Ele reforça a necessidade de espaços voltados para a população LGBTQIA+ como uma forma de fortalecer o movimento. "Acredito que a inauguração do Centro de Cidadania será um grande passo para a luta e combate da LGBTFobia dentro do território pautar esses corpos em políticas públicas e ações sociais. O Centro vem com a responsabilidade de trazer para a Maré mais direitos", conclui.

O mareense trabalhou no Grupo Conexão G durante dois anos como designer gráfico e participou como voluntário de seminários nacionais. Essa experiência foi muito importante para sua identificação como ativista a partir de suas vivências como um homem bissexual e morador de favela. Após esse processo, criou o Projeto Eeer, de ativismo LGBTQIA+ de favela.

O Centro vai levar meu nome: Centro de Cidadania Gilmara Cunha. Eu quero homenagem enquanto viva, pra mim não adianta depois de morta. Se puder fazer amorosamente e afetivamente, vamos fazer em vida.

Gilmara Cunha , ativista LGBTQIA+ e fundadora do Grupo G

Patrick Mendes/UOL Patrick Mendes/UOL

De todes

No Centro de Cidadania Gilmara Cunha serão oferecidos serviços gratuitos de psicólogos, advogados e assistentes sociais, além de cursos de informática e corte e costura. Também pretendem abrir uma biblioteca no espaço. O nome do espaço foi pensando de forma a homenagear ainda em vida quem lutou durante toda a sua existência por direitos. "Vamos fazer funcionar. Será um órgão vivo, não mais um espaço ocioso. Criamos um conselho consultivo de organizações não governamentais aqui da Maré para pensar esse espaço, quero que ele seja pensado pela comunidade", diz Gilmara.

Os Centros de Cidadania LGBTQIA+ são uma iniciativa estadual do Programa Rio Sem LGBTfobia, da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro. Já existem outros aparelhos em Niterói, Queimados, Volta Redonda, Central do Brasil, Nova Friburgo, Arraial do Cabo, Miguel Pereira e Caxias.

Gilmara explica que os serviços oferecidos não serão só para a população LGBTQIA+ e que seu objetivo é fazer com que a população entenda o Centro como um espaço de todos. "Uma das coisas que eu aponto é que por mais que seja um Centro de Cidadania LGBTQIA+, ainda assim, as demandas que chegarem a gente vai atender. Se uma mãe vítima do Estado procurar ajuda eu não vou atender? É um equipamento governamental. A gente precisa fazer com que o Estado entenda que a gente precisa de políticas afirmativas, mas não de segregação".

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Mãe

Com uma presença vigorosa, o olhar atento e um sorriso fácil dado a quem tem carinho, Gilmara Cunha está sempre na atividade, cumprimenta quem passa pelo seu escritório para saber como está. Dá atenção a quem precisa ter a voz ouvida. Cumpre demandas no computador e segue o dia, que nunca é maçante.

"Eu sou só uma, mas eu gosto. É 'aniquilar' a vida, mas me traz muita alegria sentir que faço alguma coisa. É gratificante ver que uma pessoa está bem, mesmo com todas as dificuldades. E não são só as pessoas LGBTQIA+s que me procuram, não. As pessoas me procuram pra tudo (risos), é questão de matrimônio, questão espiritual e por aí vai", diz ela que começou na militância no final dos anos 90.

No fim de 2015, recebeu a maior honraria concedida pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) — a Medalha Tiradentes. Apesar de ter ganhado distinção na casa, ela queria mais. Concorreu ao cargo de vereadora do Rio de Janeiro pelo Partido dos Trabalhadores (PT) nas eleições de 2020, mas não foi eleita.

Aos 36 anos, Gilmara é uma sobrevivente num país em que a expectativa média de vida da população trans é de apenas 35. Ela tece uma trajetória como líder comunitária desde os 15 anos, quando ingressou no movimento LGBTQIA+ em busca de políticas públicas mais inclusivas. "Quem vê close não vê corre. Eu tive que aniquilar a minha vida em diversos momentos, ouvir muito não e ser rechaçada. Mesmo não vendo os frutos, as minhas outras que estarão aí depois de mim, verão. Eu fico feliz em deixar esse legado, não só para a Maré, mas para outras favelas e mostrar que o Brasil é capaz de mudar através das mãos de uma mulher trans."

Gilmara é chamada por quem a conhece intimamente de Miranda, em referência à chefe brava do filme "O Diabo Veste Prata", inspirada em Anna Wintour, da revista "Vogue". O apelido surgiu por sua visão sobre o que significa cuidar. Zela pela família, pelos amigos, filhos espirituais e pelos companheiros e companheiras de luta.

"Mesmo que eu seja dura, é porque às vezes a gente precisa ser. Para mim isso faz parte do processo educativo. Não tem como dizer 'sim', 'sim', 'sim', o tempo todo. Eu gosto de ver as pessoas bem. Isso tem muito a ver com a minha infância que não foi muito fácil. Não fui querida, não fui cuidada. Quando cheguei à minha 'adultez' decidi fazer o que não fizeram por mim. Esse cuidado que tenho com o outro sempre existiu na minha vida e sempre vai existir. Sou mãe."

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