Fomentando sonhos

Para tirar a luta por direitos "do papel", juiz Iberê de Castro Dias cria ações práticas para adoção tardia

Thaís Regina Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Rogério Fernandes/UOL

A gente precisa começar o quanto antes e precisa voltar os olhos para as crianças e adolescentes, todos os seus direitos, mas também enxergar as dificuldades que eles experienciam. Isso significa levar a sério o direito ao esporte, à cultura e à educação — somente assim a gente vai conseguir construir uma sociedade um pouquinho melhor.

A gente tem que saber que o trabalho é de longo prazo, não adianta ficar procurando um messias para resolver a situação brevemente porque não é o caso. A gente precisa fazer um trabalho longo e de base; vai levar um tempo para consertar os problemas que a gente vem cavando com uma pá cada vez maior há 5 anos. Na Vara da Infância, e isso acontece também na área de violência doméstica e execução criminal, o trabalho fora do fórum é bem relevante para que o serviço seja efetivo.

Só julgar os processos acaba tendo uma efetividade muito menor do que julgar os processos e tentar se antecipar aos problemas mais corriqueiros. O cruzamento entre o meu trabalho como juiz e o que se chama de trabalho social tem bastante relação com a possibilidade de nós nos anteciparmos a esses problemas que afetam crianças e adolescentes, tanto as questões da nossa região quanto os obstáculos estruturais. Então, a gente surge com soluções criativas para proteger a infância.

Iberê de Castro Dias, 44, é juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo, titular da vara de infância e juventude protetiva de Guarulhos (SP), já passou pela Corregedoria do Tribunal e hoje ocupa o posto de assessor da Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo. Em todos os pontos do currículo, Iberê sempre compartilhou com seus pares o desejo, e às vezes a preocupação, de tornar sua atuação efetiva, além da postura clássica de espera, aquela que aguarda os processos chegarem para tomar decisões — Iberê quer provocar mudanças.

"A Constituição expressamente prevê que é dever da sociedade zelar pelo direito de crianças e adolescentes", diz. "Tem um monte de regras constitucionais que servem para dar aula e fazer debate jurídico, mas que na prática não se verificam. A gente precisa parar de levar a Constituição como mero objeto de estudo e passar a dar concretude. Já faz 33 anos que ela está em vigor e a gente não consegue tirá-la do papel."

Partindo dos problemas mais comuns em sua região de atuação e dos problemas de escala nacional que afetam crianças e adolescentes, Iberê traçou estratégias, botou ações em prática e ajudou a transformar a realidade de jovens em situação de vulnerabilidade.

Rogério Fernandes/UOL Rogério Fernandes/UOL

Adoção tardia no centro

Adote um Boa Noite é um projeto que busca sensibilizar mais a sociedade sobre um gargalo da adoção. "Hoje a gente tem 35 mil pessoas na fila para serem adotantes e cerca de 5 mil adolescentes esperando para serem adotados no Brasil", provoca Iberê, evidenciando que a conta não fecha.

Segundo o juiz paulistano, o que provoca esse descompasso é o perfil desejados pelos pais: o principal fator de escolha costuma ser a idade. As pessoas querem adotar bebês, ao passo que a maioria das crianças aptas a serem adotadas tem mais de 10 anos. "O primeiro ponto foi explicar essa situação à sociedade", conta. "O segundo foi mostrar quem são essas crianças e adolescentes — porque a gente só consegue cuidar de quem a gente vê. Isso foi muito debatido, a gente teve muitos receios, tomou uma série de cuidados, mas a gente quis posicionar essas crianças como sujeitos de direitos como são."

Assim, foi montado um site aberto ao público com fotos das crianças e adolescentes acompanhadas de frases de cada um — sobre seus sonhos, desejos e ambições. "Por que uma criança que mora em uma Casa de Acolhimento não pode querer ser médica? Por que ser engenheiro é só pra filho de rico?", questiona. Iberê aproveita para salientar que entre os direitos previstos no ECA está a convivência familiar. Um critério para participar do site é ter um perfil que nenhuma pessoa tenha destacado ainda. "Em tese, são crianças e adolescentes em que não há nenhum interessado", afirma. O projeto foi criado em parceria com os juízes Gabriel Sormani e Renato Lousano,

Os números mostram o potencial da iniciativa: "No entanto, a gente conseguiu 56 adoções, 31 realizadas com papel passado e mais 25 processos em andamento." Atualmente, no site do projeto, há mais de 140 crianças e adolescentes compartilhando seus sonhos à espera de uma família.

Rogério Fernandes/UOL Rogério Fernandes/UOL

Lado a lado com Dexter

O projeto mais desafiador do juiz chama-se Trampo Justo. Quando não ocorre a adoção, ao completar 18 anos, os adolescentes são obrigados a deixar a Casa de Acolhimento e têm que se bancar sozinhos. "Imagina quão aflitivo é isso para um adolescente sem estrutura familiar: aos 18 anos, você precisa se bancar sem dinheiro nenhum e sem casa. Só no estado de São Paulo 50 adolescentes completam 18 anos todo mês, logo são 600 adolescentes por ano que encararam essa condição. Como a gente faz para que esses adolescentes comecem a trabalhar de modo que aos 18 anos eles tenham chances mínimas de se cuidar e se virarem sozinhos?", reflete. O projeto do Tribunal de Justiça demanda três frentes.

A primeira é desenvolver o grau de ensino. Depois, chamar a atenção do empresariado para que saibam da questão e entendam a importância de ceder vagas para esse perfil específico de adolescente. "A gente tem que conseguir a vaga de emprego, sensibilizar o empregador não só dos grandes conglomerados, mas também o pequeno comerciante da cidadezinha, porque nestas cidades também tem adolescentes que precisam de emprego, a gente está falando do dono da Bauducco e o dono da padaria", pondera. Por fim, é preciso convencer os adolescentes de que é importante trabalhar.

"Pode parecer contraintuitivo, mas quando você tem 14 anos, os 18 anos parecem dali 50 anos; a escala de tempo quando você é adolescente é muito única", explica. "Mas, quanto mais tarde começar o processo, mais difícil vai ser. A gente precisa sensibilizar o adolescente cedo para ingressar no trabalho de forma protegida, com respaldo das pessoas do sistema de proteção de crianças e adolescentes." Além disso, Trampo Justo enfrenta dois reveses estruturais: a taxa de desemprego do país e a criminalidade. "A gente tem um concorrente desleal que é o tráfico de drogas. Para um adolescente de 13 anos, ingressar no tráfico de drogas é bastante sedutor. Ele vai ganhar em um final de semana o que os pais juntos ganham em um mês de trabalho, vai ser olhado com respeito e consideração, vai ganhar senso de pertencimento — se isso faz toda a diferença quando a gente é adulto, imagina adolescente", diz.

Com isso em mente, o juiz convidou um olhar e uma voz que hoje é fundamental para o sucesso do Trampo Justo: Dexter, uma referência de peso no rap nacional.

O Dexter é preto, vem do Jardim Calux, quebrada de São Bernardo do Campo, tinha severas dificuldades de estruturação familiar também e ficou 13 anos preso. A linguagem do rap é próxima dos adolescentes, e o Dexter se coloca como uma exceção do sistema. Uma palestra bem feita com Dexter vale mais do que vinte conversas comigo.

Iberê de Castro Dias

Parcerias fazem a diferença

A Bauducco foi uma das primeiras empresas parceiras do Trampo Justo, seguida por Magazine Luiza, Corinthians e São Paulo Futebol Clube. Estas e outras empresas cedem vagas de Jovem Aprendiz para adolescentes em casas de acolhimento, que continuam sendo acompanhados por cada equipe da casa. Por não haver um sistema centralizado de contratação no Tribunal de Justiça — a coordenação é feita pelo CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola) — é difícil ter dados sobre o impacto da ação. Ecoa conversou com Thalita de Oliveira, 20, uma das primeiras pessoas a serem selecionadas pela ação do Tribunal de Justiça, coordenada por Iberê com a empresa alimentícia, quando o Trampo Justo não tinha ainda nem o nome fechado.

Thalita conheceu Iberê na casa de acolhimento, em uma investida do juiz para estimular a prática esportiva, a qual previa a distribuição de tênis para corrida para que os adolescentes participassem de uma maratona no Bosque Maia, em Guarulhos. Segundo Thalita, a Casa de Acolhimento oferecia várias oportunidades, tanto de cursos quanto de trabalho; ainda assim, a transição para o mercado de trabalho não foi fácil. "Foi muito desafiador. Eu vivia dentro da casa, então tive bastante dificuldade para pegar ônibus e me comunicar com as pessoas", conta. "O que me ajudou foi justamente ter contato com novos ambientes e pessoas cujas experiências de vida eram diferentes da minha própria e das pessoas com quem eu tinha convivido por anos." Hoje, Thalita retomou os estudos e está terminando o último ano do Ensino Médio em um supletivo. Conseguiu alugar uma casa e mobiliá-la com o emprego no setor de embalagens da Bauducco. O processo de superar medos e alçar novas possibilidades não é linear. Apesar dos altos e baixos, Thalita busca hoje um crescimento dentro da empresa.

"A ideia é que a visão se espalhe e pessoas do Brasil todo passem a olhar para os adolescentes de casas de acolhimento para adoção ou para empregar", projeta Iberê. "O Trampo Justo é um projeto do Tribunal de São Paulo, mas a concepção vale para qualquer pessoa que leia isso. Um comerciante do Rio de Janeiro ou Rio Grande do Sul ou ainda Alagoas pode ler uma matéria, comover-se e procurar uma casa de acolhimento da sua cidade, perguntar se tem adolescentes aptos e interessados em trabalhar, ver o que é necessário para que isso aconteça e ceder as vagas de emprego. A nossa sociedade é uma máquina poderosa de exclusão, segregação, preconceito e isso tudo faz parte de um projeto de sufocamento de sonhos. A gente precisa fomentar os sonhos."

Rogério Fernandes/UOL Rogério Fernandes/UOL

A gente vem experimentando um retrocesso profundo, marcha à ré acelerada em termos de direitos e inclusão social, e certamente vai levar mais algumas boas décadas para conseguir desfazer o estrago. Uma sociedade não muda de uma hora pra outra, não tem solução milagrosa e, justamente por isso, a gente precisa começar a levar a situação de crianças e adolescentes brasileiros a sério, para que nossos netos tenham uma sociedade um pouco menos criminosamente desigual como ela é hoje.

Iberê de Castro Dias

Você precisa conhecer, por Iberê de Castro Dias

  • 1

    Instituto Fazendo História

    Capitaneado pela Claudia Vidigal, faz um trabalho muito sério e muito bem feito com crianças e adolescentes em casas de acolhimento desde 2005.

  • 2

    Mundo Aflora

    Instituto voltado para a situação específica de meninas adolescentes da Fundação Casa. Um trabalho muito legal tocado por duas irmãs, Renata e Andrea Mendes.

  • 3

    Dexter

    Todo mundo deveria ouvir o que o Dexter canta; um grande parceiro que viveu muito e faz questão de disseminar.

  • 4

    Manu Santos

    Ela faz um trabalho muito interessante na frente de conscientização de direitos de jovens e de organização financeira de pessoas periféricas através do Manu Fatura.

  • 5

    Carolina Maria de Jesus

    Espero que as pessoas já conheçam, mas quem não conhece está perdendo tempo. É bom falar de alguém que está em exposição no Instituto Moreira Salles e tem uma história tão forte.

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