Direito e militância

Advogada Luana Pereira mostra como é possível ser militante nas horas vagas e encontrar formas de ajudar

Beatriz Sanz De Ecoa, em São Paulo Tiago Coelho/UOL

"A verdade é que, se voltássemos ao primeiro dia de aula, viveríamos tudo de novo. Ao olharmos para trás, pensamos com amor naqueles bixos amedrontados pelos seus veteranos no primeiro dia de aula. Vemos que cada experiência - boa ou ruim -; cada luta que travamos; cada desafio individual; cada dificuldade que se apresentou, bem como todo o amadurecimento intenso e acelerado dos últimos anos; todas as perguntas e respostas tão rapidamente mutáveis; todas as certezas desconstruídas e toda a confusão final, tudo, absolutamente tudo, nos foi essencial.

Do caos nascemos, cada pessoa de uma forma. Algumas mais audaciosas, outras mais comedidas. Mais corajosas ou mais prudentes, nos holofotes ou nos bastidores, todas, em sua própria forma de caminhar, trilharam e seguirão trilhando seus caminhos. O certo é cada um aqui, pelo motivo que for, vive a alegria desse aprendizado e o entusiasmo do fechamento dessa luta individual, eufóricos para que o 'day after' traga tudo aquilo que ainda temos para viver.

Aliás, se na véspera do 'day after' estamos aqui, bacharéis em direito, é porque recebemos carinho e apoio de nossos amigos e familiares, que tão generosamente dispensaram parte de seu tempo para nos doar força. Vocês foram essenciais em todos os sentidos e nos deram a parcela de subjetividade necessária para manter nosso caráter humano e emocional ante tanta racionalidade e objetividade jurídica. Seja aqueles presentes fisicamente aqui ou apenas em nossas mentes, por qualquer motivo, é importante que saibam que as contribuições de vocês serão eternas. O que vocês nos ensinaram não há faculdade no mundo que lecione e essas doações únicas são o que temos de mais precioso."

O baque de uma mulher negra na universidade

Foi com essas palavras que a advogada Luana Pereira agradeceu o diploma universitário na noite de sua graduação. Como havia entrado na universidade antes da Lei de Cotas, ela teve apenas mais duas colegas negras com quem frequentar os corredores da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

Durante a faculdade, Luana não teve professores negros, tampouco assistiu a palestras que oferecessem alguma referência de advogados que se parecessem com ela, filha de mãe negra e pai branco — uma realidade comum no Brasil. As referências familiares eram todas maternas, já que quase não teve contato com o pai.

Em 2019, a mulher negra ganhou em média, R$ 1.658,04 menos do que um homem branco, segundo os dados da Rais (Relação Anual de Informações Sociais) do Ministério da Economia divulgados em outubro último.

Os números revelam mais uma faceta do racismo estrutural brasileiro e como ele se entrelaça também ao machismo, colocando mulheres negras em posição de maior vulnerabilidade.

"Na Universidade Federal, a gente é sempre cotista, mesmo que não seja. Várias vezes as pessoas achavam que eu era cotista e eu não fui cotista nem na graduação, nem na pós [...] Apesar de [a política de cotas] ser importante, a gente fica reduzido a esse lugar".

Apesar de vir de uma família pobre e de ser uma mulher negra, na universidade Luana percebeu que teve algumas vantagens sociais. Ela estudou em um colégio militar, teve o curso de inglês custeado pela família e sempre viveu no Bonfim, um bairro bem localizado em Porto Alegre, onde apenas 5% da população é negra, contra 20% em toda a capital gaúcha. Mas isso não suficientes para evitar o choque de realidade e a disparidade de experiências em relação aos colegas.

"Eu estava superfeliz que sabia falar inglês, meu irmão pagou anos de cursinho para mim, e a galera sabia falar alemão, francês? E os professores tinham umas exigências de um tipo de leitura que eu não estava acostumada a ter, que é o baque que a gente toma na universidade. Então mesmo para mim, com todas as vantagens que tive, foi um baque".

Tiago Coelho/UOL Tiago Coelho/UOL

Uma divisão clara entre trabalho e militância

Em suas experiências nos corredores do Castelinho, o prédio onde fez parte do curso de direito da UFRGS, no grupo de estudos Dandaras, que reunia alunos negros, no movimento estudantil e no estágio no Saju (Serviço de Assistência Jurídica Universitária), Luana percebeu de que maneira o direito poderia ser uma ferramenta para ajudar as pessoas e promover mudanças na sociedade.

A compreensão da importância do social da profissão mudou os planos da jovem. "Eu entrei no direito muito focada em fazer concurso público. Meus irmãos são todos concursados. Quando tu vem de família pobre, tu tem que ter uma estabilidade financeira", diz.

Ao se formar, em 2015, Luana foi trabalhar como assessora jurídica na ONG Themis, que atua há 25 anos na defesa e promoção dos direitos das mulheres. Seu trabalho na ONG reunia o trabalho como advogada com as questões sociais que lhe são caras.

Mas ali teve um estalo: a necessidade pessoal de separar militância e trabalho. "A partir da minha experiência com a Themis, trabalhando em ONG, no momento em que a minha militância era o meu ganha-pão, percebi que para algumas pessoas pode funcionar, mas para mim não", diz Luana, que decidiu que iria trabalhar em um escritório de advocacia.

A advogada prefere encarar o trabalho — numa atuação alinhada aos seus valores, é claro - como exatamente isso: um trabalho, que vai pagar suas contas e proporcionar uma vida melhor para ela, com acessos aos quais não teve antes. A militância, agora, encaixa-se como uma atuação voluntária, sem a pressão de precisar captar recursos para manter o sonho de pé, por exemplo.

"Uma coisa que me ajudou muito foi entender que a gente tem tanto trabalho para fazer, sabe? Não tem como uma pessoa só fazer tudo, todo mundo vai ter de fazer um pouquinho. E cada um pode ajudar num ponto", diz ela.

Em vez de sair da Themis, ela passou a atuar como conselheira diretora da ONG. Paralelamente, tem investido em outros caminhos para usar o direito a favor de suas causas. Um deles é participar de grupos de advogados voluntários que formam plantões para prestar assessoria jurídica durante manifestações. O time se reveza com um celular, cujo número é divulgado para que a população acione caso necessite de auxílio jurídico, normalmente acompanhamento à delegacia.

Luana gosta de ideia de mostrar que todo mundo tem a capacidade de fazer algo por quem precisa.

Tem de encontrar formas. Agora na pandemia, fiquei muito angustiada com a perspectiva de as pessoas passarem fome. Pensei: 'o que eu posso fazer?'. Porque eu não posso sair de casa, e a forma que eu encontrei é doar dinheiro. Reservar qualquer quantia para doar todo mês. A gente tem muitas formas de se doar, seja apoiando causas que a gente acredita, quando a gente não tem dinheiro que a gente possa doar tempo.

Luana Pereira

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Onde estão as mulheres negras no direito?

Em 2017, dois anos após sua formatura e com a experiência de trabalhar na ONG Themis, Luana foi participar de um evento organizado pelo Women in Law Mentoring (WLM), um programa internacional que proporciona mentoria para advogadas em início de carreira. O evento reunia mais de 200 mulheres.

Quando a plateia pôde se manifestar, Luana pediu a palavra. Foi enfática nos questionamentos: "Onde estão as mulheres negras aqui neste evento? O que o WLM está fazendo para trazer advogadas negras? Ou a associação é para mulheres brancas apenas?".

Ela chamou a atenção de Alessandra Lucchese, advogada e fundadora do WLM no Brasil. "Foi uma paulada, nunca esquecemos aquelas perguntas. Portanto, Luana foi fundamental para abreviar o tempo de maturação do tema racial dentro do WLM", afirma.

Com perguntas incômodas e ocupando espaços embranquecidos e elitizados, Luana mostrou um caminho possível para grandes mudanças. "A Luana foi nossa primeira mentorada negra e desde que ela entrou no WLM as questões raciais nunca mais saíram de pauta. Não é uma coincidência", diz Alessandra.

O grupo montou seu primeiro comitê de ação afirmativa, do qual Luana faz parte e ocupa papel de importância. O projeto é voltado para o acesso de mulheres negras no WLM com bolsa para isenção da anuidade. "A gente não queria que nenhum centavo fosse um obstáculo financeiro para a gente ter mais advogadas negras, mais mulheres negras se associando. Essa foi a conquista prática mais evidente da estada da Luana como associada da WLM".

"Ela nos traz muito aprendizado, muitas discussões e informações que são importantes para eu, uma branca, entender do que a gente está falando. Ela acaba sendo uma referência muito confiável para a gente acertar na linguagem", comenta a líder. No horizonte, estão ainda parcerias com bancos de talentos voltados para estagiários negros.

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Cada coisa no seu tempo

Paralelamente à atuação no escritório, sua atuação como advogada voluntária e os grupos de trabalho do Women in Law Mentoring, a advogada também é membro da Comissão Especial da Igualdade Racial da OAB/RS e moderadora do Grupo de Estudos Direito e Relações Raciais da Escola Superior da Advocacia/RS. Também integrou nos últimos meses do ano passado a curadoria de Ecoa, um grupo de profissionais muito especial, todos com atuação de impacto no campo social, que participam de troca diária com nossa equipe de reportagem.

Como Luana dá conta disso tudo? Não dando. "Quando eu entrei no colégio militar, tinha um comandante que dizia isso: 'tudo todo tempo'. E então tu percebe que não é tudo todo tempo", contra.

Principalmente em tempos de pandemia, o aprendizado de Luana é valioso. Organiza suas prioridades é crucial para entender seus limites, o autoconhecimento e uma atuação de impacto.

"Eventualmente, eu não dou conta de tudo. Tem fases que eu dou mais conta e tem fases que não dá. Eu não faço tudo isso da melhor maneira que outra pessoa poderia fazer, eu faço tudo isso da melhor maneira dentro do meu tempo. E se isso é válido para quem está comigo, eu me mantenho".

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