Um lar para todos

Luciana Bispo é líder da ONG Maria & Sininha, e não faz caridade: promove direitos

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo Julio Kohl/UOL

Mudei minha opção de curso na universidade. Fui de Direito para Serviço Social. A ideia, no início, era só a de ajudar minha mãe, criadora de um abrigo para crianças abandonadas no extremo sul de São Paulo.

Ao longo dos anos fui entendendo: minha mãe não fazia caridade. Ela promovia direitos. E foi isso que me encantou para continuar a ajudar crianças e adolescentes: vê-los como cidadãos, vê-los exercendo uma cidadania que nunca lhes foi dada.

Minha espiritualidade é "tudo junto e separado" com meu trabalho. É a religiosidade que me fortalece. E é meu dever falar e apresentar meu orixá. É meu dever tentar reconstruir famílias desorganizadas e acolher quem me pede força.

Fico feliz de saber que sou uma pessoa que pode denunciar, que vai estar onde estou, falar o que eu falo para as autoridades. Com certeza, é Oya quem me conduz.

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Luciana Bispo lembra-se do banco do carro que a levou a um lugar "de paz e tranquilo". Ela deveria ter entre 6 e 7 anos e ainda guarda um retrato daquele dia. Vestia branco da cabeça aos pés. Ao seu lado, estavam a mãe e a avó. Naquela tarde, ela seria oficialmente iniciada no Candomblé. Sua orixá já havia sido percebida pelas mais velhas. Luciana era de Oyá, uma entidade feminina guerreira, determinada, que bate de frente para liderar pessoas, para promover leis. Como ela mesmo sente, a entidade é bem apropriada para sua missão cotidiana.

Formada em Serviço Social, Luciana lidera a Associação Lar Maria & Sininha. O espaço promove oficinas de capoeira, informática, dança, percussão, teatro e também faz doação de cestas básicas. As crianças, adolescentes e famílias encontram abertura para debater ideias, aprender e discutir saúde mental em rodas de conversa. A ideia é estimular que as famílias se organizem e se fortaleçam entre si. E a demanda é alta. Atualmente, mais de 200 famílias são atendidas pela associação localizada no jardim Mata Virgem, no bairro do Eldorado, região de divisa no extremo sul da capital, entre São Paulo e Diadema.

A promoção de direitos e acolhimento na instituição começou há mais 30 anos por iniciativa de Aparecida Bispo, mãe de Luciana. Dona Cida era empregada doméstica e pertencia a uma família numerosa, com 17 irmãos. Tornou-se cabeleireira. Com o tempo, pôde comprar uma casa na região do Jabaquara. O local seria o abrigo de Daiane, a primeira adolescente acolhida por Aparecida.

A menina, que tornaria-se filha adotiva, sofria com problemas de saúde mental graves e foi encontrada após ser abandonada pela mãe biológica. Vizinhos desconfiaram do cheiro de gás que vinha da casa de Daiane e decidiram acessar o imóvel para resgatá-la. Aparecida estava junto; decidiu acolhê-la após o quase acidente. Dali em diante, passou a receber outros abandonados. A notícia se espalhou. Crianças e adolescentes começaram a chegar da "zona leste, sul, norte, do extremo da zona leste" de São Paulo, como recorda-se Luciana.

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A maioria era deixada por mães muito pobres, sem condição financeira para sustentá-los. Alguns eram crianças já formadas; outros, apenas bebês. Muitas famílias prometiam buscá-los, mas várias desapareciam. Dona Cida entendeu que sua missão era fazer de sua casa um abrigo permanente para crianças abandonadas. "Minha mãe dizia que a ideia era que a casa fosse a casa delas, não somente um espaço para dormir", diz.

O espaço, porém, ficou pequeno para os cerca de 20 moradores. Aparecida pegou seus quatro filhos, os abrigados e decidiu se mudar para um sítio da família em Eldorado, na divisa entre Diadema e São Paulo. Lá, um lugar então onde fazia-se "samba, a música e as festas" e o descanso para os Bispo, foi transformado em um abrigo oficial e permanente para crianças e adolescentes abandonados.

Após o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1989, Aparecida precisou oficializá-lo como abrigo temporário para filhos retirados dos pais por conselheiros tutelares em situação de vulnerabilidade extrema. Era o começo oficial da associação.

Na década de 90, passou a inserir quem já morava no local em programas de adoção. "Gente de todo lugar adotou. Da Europa, do Brasil?", recorda-se Luciana. No início dos anos 2000, uma Vara da Infância e da Juventude na região também passou a buscar por pais biológicos de alguns moradores. Ao todo, 140 pessoas chegaram a morar de forma permanente no sítio da associação, que foi ganhando uma nova cara a cada adoção.

Eu entendi que minha mãe não estava fazendo caridade, mas uma promoção de direito

Luciana Bispo

Aos poucos, a iniciativa foi sendo transformada em centro cultural. A partir de 2010, o local deixou de ser abrigo e começou a promover direitos da criança, adolescente e auxílio às famílias pobres a partir de oficinas de arte e cursos profissionalizantes. O aluno sai da escola convencional e vai para a Maria & Sininha no contraturno. Mesmo com a experiência de anos com crianças e adolescentes, não é fácil manter o serviço em funcionamento.

A ONG não conta com recursos públicos e, no momento, foram desfeitas até parcerias com instituições privadas. As doações vêm de pessoas físicas e são particularmente essenciais durante a pandemia do novo coronavírus.

Desde março, cerca de 100 famílias do Morro do Macaco e da Mata Virgem recebem a doação de cestas básicas e kits de higiene da associação. Apesar disso, nem sempre os moradores da comunidade podem se isolar.

O morro lembra uma espécie de escada, com casas que espalham-se por uma geografia que mais remete a grandes degraus por conta de uma terraplanagem feita no passado. A vista lá de cima é panorâmica. Vista de baixo, tira o fôlego pela grandiosidade. Apesar disso, os moradores vivem em pequenos barracos de madeira, casas de alvenaria e trabalham em ocupações que exigem o deslocamento pela cidade. Não é incomum que residências não tenham ligação de esgoto, água ou sejam abastecidas com encanamentos precários para manter a higiene contra o vírus.

Na fronteira entre dois municípios, a responsabilidade sobre o Morro dos Macacos fica em um jogo de empurra entre prefeituras. Até hoje, não houve regulamentação da área, que é privada. Por isso, o acesso à Unidade Básica de Saúde (UBS), à energia elétrica, à água e ao recebimento de correspondências costuma ser impedido ou dificultado. A permanência no local é marcada por reintegrações de posse, protestos, desapropriações e dezenas de promessas. "As autoridades veem a ausência de direitos como um direito nosso em si", diz.

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"Em uma semana, comecei a receber cesta básica"

Para Luciana, a pandemia agravou a desigualdade na região. "Muitos chegam aqui e dizem que não há o que comer", explica.

Foi o caso de Andressa da Boa Morte, 27, que trabalha com maquiagem e tranças para eventos. O dinheiro sumiu com o cancelamento das festas e a comida foi diminuindo em casa. O marido trabalha com limpeza e manutenção, mas também ficou sem trabalhar. Os dois compartilham um imóvel de madeira com um filho de 1 ano e outro de 7. O casal já havia encarado dificuldades: quando chegaram ao Morro dos Macacos há cinco anos, sem água em casa, Andressa ferveu o que veio da chuva para poder cozinhar.

Com o tempo, as coisas foram se ajeitando. E aí veio a pandemia. "Bati na porta de várias igrejas católicas, mas todas estavam lotadas. Foi quando me falaram do Maria & Sininha. Fiz o cadastro e em menos de uma semana comecei a receber uma cesta básica e também fralda. Já são cinco meses de ajuda", diz a trabalhadora autônoma.

Luciana sabe o efeito de tantas provações e privações. "Imagina um menino que não tem água na torneira e nem um chuveiro. Imagina um menino de 12 anos que não tenha isso em casa. Ele já se sente inferiorizado por não ter água e ainda tem que subir o morro para trazer água na cabeça. Por ali mesmo ele já é alvo de chacota. Por ali mesmo ele já se sente pior, e essa mulher que não tem tanque para lavar roupa para três filhos e ainda trabalha fora, com medo que o filho caia na criminalidade. Como é que é esse meu fim de semana sem descanso?", questiona. "É uma questão que afeta fisicamente e emocionalmente".

Temos um lema: cuidar de quem cuida. Queremos criar um espaço de escuta em que a pessoa diga: 'eu não estou aguentando mais'. Especialmente as mulheres, já que a responsabilidade cai toda no colo delas. É preciso mostrar que não estão sozinhas.

Dona Anna Gomes, moradora do Morro dos Macacos há cerca de 5 anos

A parte emocional é o outro lado do trabalho de Luciana. Ela deseja que as famílias falem sobre seus problemas. Especialmente, as dezenas de mães que desempenham funções domésticas para educar filhos enquanto trabalham fora — com o marido ou de maneira solo.

A associação mantém rodas de conversa sobre assuntos como violência policial, educação dos filhos, racismo, direito das mulheres e qualquer outro incômodo que apareça. Em parceria com a PUC-SP, psicólogos são escalados para ouvi-las desabafar, instruem a lidar com frustrações, medos e anseios. Mas não só: a ideia é que se permitam namorar, se arrumar, sentirem-se bonitas e desejadas. Enfim, buscar uma felicidade negada pelos maridos ou consumida pela dupla jornada puxada. "É preciso oferecer uma retaguarda emocional que as pessoas empobrecidas não costumam ter", diz.

Dona Anna Gomes, 44, também é moradora do Morro dos Macacos há cerca de 5 anos. Cadastrada há dois na Maria & Sininha, recebe kits de material escolar, cesta básica e de higiene da associação. Uma das experiências marcantes foi a participação em uma roda de conversa sobre violência contra a mulher. Ela nunca havia discutido o assunto. "Eles não se importam se a gente é de comunidade ou de onde viemos. São sempre muito educados com a gente", diz.

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A ialorixá

Luciana é ialorixá. A função espiritual, na prática, é separada da associação. Uma ialorixá deve apresentar o candomblé a quem não conhece, guiar a jornada espiritual de outros candomblecistas, jogar búzios e, assim como fez sua avó no dia de sua iniciação espiritual, iniciar e identificar o orixá sobre cada pessoa.

A função é separada, mas Luciana acredita que Oyá impera em seu íntimo. "A instituição religiosa é o que me fortalece para que eu esteja no lugar onde estou", diz.

Historicamente, o terreiro é um local de acolhimento contra o racismo, LGBTfobia e outras opressões. A religiosidade, a mesma apresentada pela avó e continuada pela mãe, é de onde Luciana extrai a perseverança para olhar para os mais vulneráveis. "O Candomblé tem uma humanidade singular", que ela sente ser cada vez mais respeitada.

"Nós, pretos, éramos vistos como pessoas sem alma. Como, então, os brancos entenderiam nossos deuses, as nossas divindades?", questiona. "Nossos antepassados nos trouxeram a liberdade e, agora, conseguimos trazer conosco também a nossa religião, o nosso cuidado, o nosso zelo em contar quem é Oyá".

Seu olhar — costumeiramente sério — se abre em um sorriso ao falar o nome de sua orixá. Emociona-se. Ao falar sobre as crianças e adolescentes ajudadas pela Associação, retoma a firmeza. "Me fascina muito quando vejo que uma criança é estimulada a exercer sua cidadania, se considerar um cidadão", diz. "Me reconheço como uma pessoa com muita perseverança, que luta pela justiça, por ser questionadora. É uma característica de Oyá", conclui.

Amanda Miranda/UOL

Re_construção

Ecoa propõe durante o mês de outubro um ciclo temático de reportagens e entrevistas sobre Re_construção. A proposta é falar sobre pessoas e ideias que oferecem diferentes maneiras de ver e lidar com nosso mundo e sociedade durante e após a pandemia.

Ao longo de três semanas nos aprofundaremos em debates que vão da necessidade de se falar (e agir) sobre as populações mais vulnerabilizadas, a luta antirracista, os saberes ancestrais e seus ensinamentos e, é claro, o mundo dos negócios e o futuro do trabalho.

Não perca nenhum conteúdo do ciclo temático!

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