Por uma moda mais inclusiva

Após acidente, Michele Simões criou a plataforma "Meu corpo é real" para quebrar estigmas e promover inclusão

Vanessa Fajardo Colaboração para Ecoa, de São Paulo Julio Kohl/UOL

A pessoa com deficiência é vista pela deficiência. Quando você se depara com um lugar que não tem acessibilidade, sente pena, não fica indignada como quando presencia um ato de racismo. Se você não tolera um ato de racismo e homofobia por que vai tolerar de capacitismo? Essas lutas têm de ser de todo mundo. Ela não é menor e nem menos importante. A inclusão não deve ser um tema só das pessoas com deficiência.

Já cheguei em reunião em que a pessoa perguntou se eu tinha estudado. Eu estava acompanhada por outra pessoa sem deficiência para apresentar um projeto. Por que essa outra pessoa também não foi questionada? E mais: é comum você perguntar em reuniões se quem está apresentando o projeto estudou? Acho que não. É como se pessoas com deficiência fossem dignas de pena ou de necessidade de ajuda. A gente só quer respeito e queremos que as pessoas olhem para as nossas qualidades.

Por isso, respeito, mas não endosso quem trabalha com pessoas com deficiência sob o viés de superação. A romantização da superação atrasa muito uma luta para a gente existir.

Claro que existem histórias de superação, mas essa fórmula de estabelecer que uma pessoa com deficiência é um coitado ou um herói faz com que a gente não saia dessa zona. Não saímos desse aprisionamento de estereótipo. A gente é muito mais do que isso.

Julio Kohl/UOL

"Depois do acidente, minhas referências foram por água abaixo"

Ao perder o movimento das pernas após um acidente de carro aos 24 anos, a consultora de estilo Michele Simões, hoje com 38, percebeu que a moda poderia ser utilizada como instrumento de inclusão de pessoas com deficiência.

Nascida em São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo, e formada em moda pela Universidade Estadual de Londrina, ela diz que se encaixava no padrão -excludente— da moda e que se sentia confortável com isso.

"Quando eu sofri o acidente, minhas referências foram por água abaixo porque até então tudo o que eu tinha aprendido era para um corpo em pé, alto, magro, e de preferência branco", diz Michele durante entrevista para Ecoa, antes do início da quarentena, na Vila Madalena, em São Paulo.

Sobre uma cadeira de rodas, no "extremo oposto" da situação anterior, Michele conta que lhe caiu uma ficha. "Entendi que tinha muito mais gente que quer consumir moda, com corpos variados. E a indústria trabalha como se a gente fosse um boneco."

Michele nunca havia, por exemplo, pensado que o caimento de uma calça feita para uma pessoa que vive sentada em uma cadeira de rodas precisa ser diferente daquela que se locomove com as pernas. Que as mangas dos casacos de um cadeirante têm de ser mais curtas para que não encostem nas rodas das cadeiras e se sujem facilmente. Calças com taxas e aplicações são contraindicadas por conta da falta de sensibilidade que acomete as pernas.

"Como não tenho sensibilidade, se eu uso calça com vários bolsos, costura grossa e que tenha algum tipo de pedrinha [como bordado ou aplicação] vai me machucar. Pode até fazer escara. Um sapato pode fazer minha perna inchar. Dentro da moda inclusiva tem uma cadeia muito extensa, as marcas não podem só se ater ao produto, têm de pensar em experiência de compra, representatividade", explica.

Julio Kohl/UOL Julio Kohl/UOL

Mostrar a diversidade de corpos reais

Pensando em dar visibilidade a uma multidão de 12 milhões de pessoas que possui algum tipo de deficiência e representa 6,7% da população do país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Michele criou em 2016 a plataforma "Meu corpo é real."

A empresa chegou com a intenção de "educar o mercado" sobre moda inclusiva e servir de ponte com as marcas para o universo da inclusão. Entre outras funções, a companhia presta consultorias e promove experiências com empresas para que vejam as pessoas com deficiência como consumidoras e combatam o capacitismo, reconhecido como preconceito e discriminação.

Um dos projetos foi o desenvolvimento de uma camiseta para a Hering, direcionada para deficientes visuais. Por meio de um QR Code nas costas, o consumidor poderia ter acesso a informações como cor, descrição de estampa e tamanho da peça. O projeto foi criado em caráter experimental e não está à venda.

A inspiração para criar o negócio surgiu após Michele se deparar com uma exposição de vestuário para pessoas com deficiência durante um intercâmbio no Canadá. "Aquilo me inquietou muito. Quando voltei para o Brasil, fui pesquisar e entrei na pós-graduação", detalha.

Foi durante as aulas da pós em comunicação e cultura de moda na Universidade Belas Artes, em São Paulo, em 2015, que Michele fez seu primeiro laboratório. Surpreendida com a falta de contato de parte de seus colegas com corpos com deficiência, ela reuniu uma turma e sugeriu que fizesse uma vivência andando com a cadeira de rodas. O grupo se dividiu para dar uma volta no quarteirão e fazer atividades rotineiras, como pedir um lanche na cantina.

A ideia acabou sendo o embrião de um dos projetos do "Meu corpo é real", um evento chamado Fashion Day Inclusivo. Neste dia, um time de voluntários, formado por profissionais e estudantes, se reúne para realizar oficinas de maquiagem, estilo e beleza em organizações que atendem mulheres com todos os tipos de deficiência. Com isso, Michele deseja trabalhar a autoestima desse público usando a moda para que elas percebam as potencialidades de seus corpos.

Sou uma pessoa que desenvolve um projeto, que vê a moda por um prisma diferente. Isso não quer dizer que eu consiga abarcar, que eu tenha o lugar de fala de todas as pessoas com algum tipo de deficiência. A intersescionalidade que existe dentro da deficiência é gigante, ela é transversal. Não dá para falar por todo mundo.

Michele Simões

Eventos fortalecem autoestima e promovem "inclusão reversa"

A estilista e consultora de imagem Maria Clara Cruz, 29, conheceu Michele na pós-graduação. Ela estava na turma que vivenciou a experiência na cadeira de rodas. "Não consegui concluir a volta no quarteirão, a cadeira é muito pesada, não tinha força para mexer na roda. Fui empurrando a cadeira, como acompanhante. Fizemos um trajeto na rua e foi horrível para andar", lembra.

O impacto da experiência foi tão relevante que Maria Clara passou a integrar a equipe que realiza o Fashion Day Inclusivo. Em uma das edições, realizada na Fundação Dorina Nowill, foram oferecidos workshops de maquiagem, montagem de acessórios e textura de estampas para mulheres com baixa ou nenhuma visão.

"Como uma pessoa que não enxerga vai se maquiar? É o que todo mundo questiona, mas é superpossível. As pessoas com deficiência visual têm muita sensibilidade tátil, é como se enxergassem com as mãos", explica Maria Clara.

As participantes do evento aprenderam ainda como identificar textura de estampas por meio do toque, e ao final das atividades fizeram um desfile de moda. "São pessoas carentes desse tipo de informação. Elas acabam perdendo a vaidade por conta da dificuldade de acessibilidade para consumir maquiagem, roupas etc. Elas saíram falando que estavam se sentindo bonitas, chiques e comentaram que aprenderam muito, com pouco. Essa frase ficou gravada na minha cabeça", lembra Maria Clara.

Julio Kohl/UOL Julio Kohl/UOL

Para o Fashion Day Inclusivo na Dorina Nowill, a equipe do "Meu corpo é real" teve um treinamento em que consistia em dar uma volta no quarteirão com os olhos vendados de braços dados com uma pessoa. A ideia era ter a vivência ínfima de uma pessoa com deficiência visual até para lidar com ela sem tabus. "Foi uma sensação de insegurança que eu nunca senti igual", descreve Maria Clara.

Michele afirma que estes encontros sempre trazem aprendizados. "A moda é uma grande ferramenta de pertencimento e quebra de estereótipo. Não tem coitadismo, não tem superação. Incluir faz um movimento gigante dentro das pessoas. O fato de não ter uma deficiência não te coloca como uma pessoa que só ensina."

No caso de Maria Clara, o contato direto com pessoas com deficiência fez com que a estilista mudasse sua visão e incluísse temas sobre atendimento de pessoas com deficiência no atendimento em lojas, em seu trabalho no universo da moda.

Ser uma pessoa com deficiência é fatalmente ouvir 'elogios' como: 'parabéns, você está na balada', ou 'olha, você abriu a porta do elevador sozinha'. E se eu não quiser ser uma heroína? Queremos ter direito de contar a nossas histórias.

Michele Simões

Sem movimento nas pernas, aprendeu a tocar bateria

Assim como a moda, Michele acredita que a música também tem poder de inclusão. Ela sempre teve vontade de aprender a tocar bateria, mas achou que seria impossível pelo fato de não mexer as pernas.

Na outra ponta da história, Fabio Fernandes Araújo, professor da School of Rock, conhecido como Pisca, teve receio de não conseguir atender uma aluna cadeirante, já que nunca tinha recebido uma demanda do gênero. Sua única referência de pessoa com deficiência na história do rock n´ roll era do baterista Rick Allen, da banda Dep Leppard, que teve de amputar o braço depois de um acidente de carro, mas voltou a tocar.

"Quando eu olhei para a Michele não esqueço o brilho nos seus olhos com vontade de aprender algo que para muita gente seria improvável. Fiquei pensando em como poderia ser o formato de bateria. Se ela usasse as mãos, faltaria o pé direito, que é o bumbo. Se eu simulasse essa peça com uma das mãos, faltaria a outra peça das mãos", relembra Pisca.

"Disse para ela: não sei como vou fazer isso, mas vamos descobrir juntos. Comecei a desenvolver um método que em a mão esquerda faz o trabalho do pé direito e da própria mão. Dependendo da música, tem de mudar a configuração. Ela usa um kit tradicional de bateria. Readaptei o posicionamento somente."

Julio Kohl/UOL Julio Kohl/UOL

Pisca diz que quando vai passar uma música para Michele precisa primeiro "descontruir" a forma como toca. "Para nós bateristas, o bumbo marca a cabeça do tempo, a marca 1. Ela tem de ter isso intuitivamente, o 1 para ela é a mão esquerda", explica. Ele se orgulha em contar que em pouco tempo, a aluna "já fazia levadas de rocks mais básicos, com músicas de bandas como ACDC e Kiss. Ela tem essa coisa do ritmo forte, junto com a força de vontade, aflorou rapidamente."

Michele formou a banda Elas não Falam Top composta por jornalistas e influenciadoras, e depois de dois meses de aulas já fazia apresentações em bares de São Paulo.

"Foi muito legal o movimento de me sentir dentro de uma banda. E também de poder impactar outros territórios. Não existia acesso aos palcos onde a gente fazia os shows. Por que não tem rampa? Porque não se protagoniza uma pessoa com deficiência no palco", afirma Michele.

Para garantir a acessibilidade dos locais, a School of Rock providenciava a construção de rampas. "Hoje em dia a maioria das casas tem acessibilidade nos banheiros, mas nunca tinha para subir no palco. A gente contratava um serralheiro e preparava uma rampa para a Michele ter acesso ao palco e entrar e sair de forma digna. Fizemos isso em pelo menos quatro casas em São Paulo", diz Pisca.

Depois de começar a dar aulas para Michele, Pisca começou a prestar atenção na infraestrutura que a cidade oferece e nas dificuldades que as pessoas com deficiências enfrentam diariamente.

Mudou minha visão, comecei a prestar atenção nas calçadas nas ruas. A gente percebe o quão complicado é, mesmo em bairros nobres. A Michele foi um presente que a vida me trouxe.

Fabio Fernandes Araújo

"Quando eu comecei a dar aula para ela e vi que dava certo, não via a hora de chegar a aula dela. Foi muito bacana ter todo esse contato com esse universo que eu não fazia ideia de como funcionava. Minha vida como professor foi antes e depois da Michele."

Pisca diz que as pessoas poderiam pensar que a bateria seria o "instrumento menos indicado para uma pessoa que se locomove por cadeira de rodas". "Mas aí a gente vê que só uma questão de ponto de vista. Quando dou aula pra Michele, esqueço que ela é cadeirante. Só lembro quando tenho de sentar na bateria e mostrar para ela. Foi emocionante vê-la conseguir pegar uma música." A School of Rock atende alunos de todas as idades e com ou sem experiência com instrumentos.

Para Michele, no palco nunca houve um momento em que foi tratada de forma especial. "Era tratada igual, isso diz muito, educa o olhar das pessoas. Imagina colocar outras pessoas com deficiência para viver isso? Infelizmente temos uma sociedade que acha que a gente não sai de casa. A gente precisa se colocar nesses lugares. Se como mulher é preciso provar que é boa, como mulher cadeirante é necessário provar muito mais."

+ Causadores

Zô Guimarães/UOL

Sônia

Ela criou projeto para regularizar favelas do Rio e ajudou a garantir R$ 600

Ler mais
Iwi Onodera/UOL

Carioca

Ele abandonou as drogas e virou líder de cooperativa graças ao seu lixo

Ler mais
Fernando Moraes/UOL

Luana

Ela luta para que negros na liderança sejam regra no trabalho, e não exceção

Ler mais
Topo