Mochilando pela educação

Ex-carteiro, Tiago Silva viaja o país distribuindo livros e incentivando jovens a sonhar

Ana Prado Colaboração para Ecoa, de São Paulo

"Sempre fui um aluno muito conversador, e por isso me colocaram para ser monitor da biblioteca da escola. Eu não gostava desse trabalho, mas um dia - lembro como se fosse hoje -, vi ali um livro chamado 'Os Miseráveis', que era uma versão resumida da obra de Victor Hugo.

Falei 'vou ler esse livro, já que não estou fazendo nada'. Desde então, não parei mais de ler. Com a literatura eu comecei a conhecer personagens, a viajar com eles, a alimentar meus sonhos. Os livros proporcionam um momento de quebra de paradigma, de olhar para o universo além da bolha social que nos é imposta.

E eu disse: 'vou me formar na faculdade e vou devolver tudo o que a educação fez pela minha vida'. Isso ficou no meu coração e eu tinha certeza de que ninguém mais poderia me parar. Estava obstinado a conseguir os recursos necessários para permitir que os jovens do interior do meu estado tivessem acesso a tudo que eu tive."

Felipe
Felipe Brasil/Divulgação Felipe Brasil/Divulgação

Há oito anos, o ex-carteiro alagoano Tiago Silva, conhecido como o Mochileiro pela Educação, viaja por cidades do Brasil distribuindo livros a escolas públicas, aldeias indígenas, quilombos, ONGs e grupos de jovens que encontra pelo caminho.

Hoje com 32 anos, ele já visitou 65 cidades, a maioria na região Nordeste, e distribuiu 8 mil livros, geralmente obtidos por meio de doações ou comprados por ele mesmo em sebos. Outros 5 mil estão garantidos para quando a pandemia permitir a volta das viagens. "Todo dia chegam doações pela minha caixa postal. Até separamos um quarto só para guardar e catalogar os livros na minha casa", comemora.

Cordelista e apaixonado por literatura, ele diz que os livros lhe deram a perspectiva de construir seu próprio futuro. Além da distribuição das obras literárias, Tiago também promove palestras e oficinas com o objetivo de mostrar aos jovens que a educação pode transformar a vida deles assim como transformou a sua.

Millena Ribeiro do Nascimento foi umas das mais de 20 mil pessoas impactadas pelas suas ações. Ela viu uma palestra do Mochileiro pela Educação pela primeira vez em 2016, quando ainda estava no ensino médio. Hoje com 22 anos, a jovem de Maceió é formada em Administração e trabalha numa ONG que promove educação empreendedora para jovens.

Segundo ela, a trajetória de Tiago a inspirou a decidir trabalhar com educação. "Ele mostra todos os dias que a educação é o futuro. Seja por meio de distribuição de livros, seja dando palestras e oficinas, ele incentiva a gente a se desenvolver", conta.

Com a pandemia, ele precisou se reinventar: tem promovido palestras online e lives com jovens inspiradores e começou a doar livros pelo correio - tanto para bibliotecas quanto para jovens seguidores de suas redes sociais.

Eu acredito que, quando você faz algo de impacto, vai conquistando pessoas pelo caminho que se interessam e acreditam no que você faz, e querem ajudar. Quero que mais mochileiros surjam.

Tiago Silva, o Mochileiro pela Educação

Construindo seu próprio rumo

Hoje, a mochila de Tiago é grande o bastante para acomodar muitos livros: ele costuma carregar entre 100 e 150 na mochila e em uma pequena mala que leva consigo nas viagens. Mas não foi sempre assim. Quando pequeno, usava bolsas de supermercado para carregar o material escolar e encapar os cadernos. "Passamos muita necessidade. Minhas roupas vinham sempre de doação ou empréstimo, e às vezes nos faltava alimento", lembra.

Tiago nasceu em Junqueiro, cidade a 118 km de Maceió. Sua infância teve como cenário uma paisagem rodeada por plantações de cana-de-açúcar, principal atividade econômica da cidade. Trabalhar na lavoura era um futuro comum para muitos jovens da região, mas o menino se perguntava se era possível seguir um caminho diferente. "Se você tiver muita sorte, você vai pra irrigação", dizia-lhe a mãe, Dona Quitéria.

"A ideia que se tinha na época era a de que jovens pobres e negros e, no meu caso, sem pai, iriam acabar no corte da cana-de-açúcar. Mesmo sendo um trabalho digno, queria explorar outras possibilidades", conta. Era como se o seu futuro estivesse selado por fatores que não estavam sob seu controle, e ele não achava isso justo.

Tiago vivia com a mãe, que na época trabalhava como gari, a avó e três irmãos. Nunca conheceu o pai e conta que isso o marcou profundamente. A educação e a literatura logo surgiram como uma forma de ocupar o vazio que dizia sentir. "Percebi que existia um mundo lá fora e eu queria explorá-lo. Então decidi que iria estudar para transformar minha vida e a da minha família."

Depois de trocar de cursos, estudou Gestão de RH como bolsista do ProUNI e fez especialização em psicopedagogia. "Queria uma formação mais rápida para poder agir logo e ajudar outros jovens", explica.

Foto: Felipe Brasil Foto: Felipe Brasil

O nascimento do Mochileiro

Quando ainda estava na faculdade, Tiago criou seu primeiro projeto, o "Conversando sobre carreira", um evento que levava profissionais de diversas áreas para falar sobre carreira a estudantes de escolas públicas do interior de Alagoas.

As coisas funcionaram bem no começo, mas, à medida que as ações se espalhavam e atingiam cidades mais distantes, ficava mais difícil conseguir palestrantes dispostos a viajar tanto. "Foi aí que resolvi acrescentar o elemento literário para trazer histórias que pudessem inspirar os jovens, e passei a distribuir livros ao final da palestra", conta.

Nascia, assim, o Mochileiro pela Educação. Os livros doados são sempre paradidáticos, já que a ideia de Tiago é usar o universo literário como ferramenta para gerar protagonistas. Para adequar as histórias à audiência, ele conta com a ajuda de uma pedagoga que faz a classificação por faixa etária.

O governo de algumas cidades que ele visita paga sua viagem, mas nem todos conseguem. "Eu visito aldeias indígenas, quilombos e outras cidades que não têm como fazer isso", explica. Para ajudar nos custos que extrapolavam o seu salário de carteiro, passou a vender camisetas e firmar parcerias com empresas.

O professor Josenildo Gomes de França, do município de Igaci (AL), é um dos entusiastas do projeto. Ele o conheceu em 2017, por meio das redes sociais, e levou Tiago algumas vezes para as duas escolas que dirigia em sua cidade. "Fiquei muito feliz em conhecer o projeto. Nós que temos paixão pela educação ficamos maravilhados quando nos deparamos com pessoas que também são abnegadas", conta.

Hoje eu tenho ainda mais certeza de que a educação salva vidas. Eu sou fruto dessa educação. E ver como nossa mensagem está ecoando tão longe me faz ter combustível para desbravar esse país levando livros.

Tiago Silva, o Mochileiro pela Educação

Encontrando talentos nas escolas públicas

Em 2018, Tiago decidiu potencializar as ações do projeto e desenvolveu oficinas como a de criação de e-books, que é realizada até hoje em parceria com uma empresa. Oferecida para alunos do nono ano até o fim do ensino médio, ela permite aos jovens se tornar escritores por um dia e montar um e-book com sua produção.

Há ainda uma oficina para desenvolver o pensamento computacional voltado para o empreendedorismo. Tiago pretende oferecer essas atividades para escolas privadas para poder continuar oferecendo-as gratuitamente para as escolas públicas e expandi-las para todo o país. "A metodologia pode ser replicada, então quero formar líderes que possam levá-la a outros lugares", afirma.

As viagens do Mochileiro também servem para buscar nas escolas projetos que possam concorrer no evento "Boas ideias não têm idade" com soluções para problemas da comunidade. Ele ajuda os estudantes a desenvolver a ideia e a apresentação. Duas edições já foram feitas em parceria com uma empresa - a terceira ainda não tem data, mas deve ser realizada ainda este ano.

"Fazer isso para um jovem do interior é democratizar o acesso ao conhecimento e a recursos. Riqueza para mim é isso: acesso. Quanto mais acesso, mais você alimenta sonhos e até salva vidas", reflete.

Foto: Felipe Brasil Foto: Felipe Brasil

Expandindo bibliotecas

Tiago também mantém programas de doação de livros a bibliotecas e escolas públicas. Seu mais novo projeto recebeu o nome de Box Mochileiro. A ideia é montar um espaço móvel de leitura nas áreas de convivência das escolas, já contando com 200 obras escolhidas de acordo com a faixa etária dos alunos.

"Esses espaços têm jogo de xadrez, dominó e até sinuca. Tendo uma estante por ali, e não apenas na biblioteca, o aluno fica mais propenso a pegar um livro. Sem isso, fica difícil concorrer com outras distrações", defende.

A estante será entregue com um tablet para o gerenciamento dos empréstimos. Para tirar o plano do papel, ele criou uma página de financiamento coletivo. O objetivo é conseguir R$ 60 mil para entregar 50 boxes em um ano, o que significa 10 mil livros.

Com tantas atividades, ele conta que seu grande desafio, hoje, é a falta de tempo. Para poder se dedicar exclusivamente aos projetos educacionais, decidiu pedir demissão dos Correios. "É um emprego muito bom, mas acaba limitando o que posso fazer pela educação."

O empreendedorismo ajuda os jovens a entenderem que eles podem resolver problemas. A gente acha que o sonho de todos eles é ir embora daquela cidade pequena do interior, mas às vezes a pessoa não tem esse desejo. Talvez ela queira sair, estudar e voltar para resolver os problemas locais

Tiago Silva, o Mochileiro pela Educação

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