Nascida da Tormenta

Neidinha Suruí viveu em um barco que pegou fogo no meio rio e, hoje, defende a floresta e os povos indígenas

Gabriel Ferreira Colaboração para Ecoa, em Manaus (AM) Acervo Pessoal

Cresci no seringal até a idade de 12 anos, lá minha mãe me ensinou a ler em revistas Grande Hotel, Sétimo Céu, Capricho e livros de bolso de bangue-bangue, onde as histórias mostravam sempre os indígenas sendo mortos e expulsos por invasores de suas terras. A partir dessas leituras decidi que, se um dia pudesse ir aonde morava o povo da cidade, lutaria para defender os direitos dos povos indígenas.

Hoje me definiria como uma ativista dos direitos humanos e do meio ambiente. O movimento indígena vem lutando há muitos anos para demarcar todas suas terras. Neste governo do Bolsonaro ficou muito pior, porque o governo e a maioria no Congresso Nacional são anti-indígenas e buscam passar projetos de lei que acabem com as demarcações. (Neidinha Suruí)

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Fogo na água

Há 50 anos, Ivaneide Bandeira Cardozo, 62, luta em defesa da floresta e dos povos indígenas na Amazônia. Mãe e avó, de cinco filhos e um neto, conhecida também como Neidinha Suruí, por ter sido casada com o cacique Almir Suruí, líder da etnia paiter suruí, a indigenista nasceu no município Plácido de Castro, no interior do Acre, mas vive hoje em Porto Velho (RO). É formada em história, mestre em geografia e doutoranda em geografia pela Universidade Federal de Rondônia (UFRO).

Filha do seringueiro Aldenor Bandeira Macedo e da protetora da família Noêmia Cardozo Bandeira, Neidinha, ainda na infância, fez de berço a floresta amazônica. Nas recordações do início da vida no Acre, ela conta que o pai desbravou os seringais de Santa Rosa del Abuná, na Bolívia, e de Nazaré, atualmente chamado de Reserva Extrativista Chico Mendes. Na época, a atividade extrativista de Aldenor Bandeira era o sustento da família.

Tempo depois, quis o destino levá-los para Rondônia, onde passaram a viver dentro de um batelão, um tipo de barco de madeira. Ali, a vida passou a ser sustentada pelo comércio atendendo ribeirinhos no rio Jaci Paraná, afluente do Rio Madeira. Da vida "fluvial comerciante", Neidinha recorda que, certa noite, o barco onde moravam pegou fogo. No mesmo instante, junto da irmã e da mãe Noêmia, partiram numa canoa enquanto viam os galões de gasolina explodindo e clareando o céu.

O fogo se alastrava sobre as águas e, para se afastar do perigo, foi preciso sua mãe arrancar uma tábua de um caixote abandonado para improvisar o remo e fugir das chamas que perturbavam o descanso do rio turvo. "Escapamos todos vivos, só o piloto queimou a perna com queimaduras de segundo grau", conta Neidinha.

Encharcados pela água e pelas lembranças da noite que se fazia dia graças ao incêndio, partiram sem nada, "pois tudo que tinham estava no barco, e o que lhes restava era a roupa do corpo".

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Chapeuzinho Vermelho vs caçadores

Em busca de um recomeço, o pai de Neidinha foi morar no seringal Ricardo Franco, que havia adquirido com seus irmãos na região do município de Campo Novo (Rondônia), onde ele vivia de extrair o látex das árvores.

Na fase pré-adolescente, quando lia os livros de caubói da mãe, Neidinha sonhava conhecer os povos indígenas norte-americanos navajo, sioux, apache, chayenne e dakota. Uma vontade que surgiu da leitura feita sobre "a invasão das terras indígenas no velho oeste americano". Quase meio século depois, ela pôde, enfim, conhecer os povos "descobertos" por ela nos livros. O encontrou ocorreu na "Frontline Oil & Gas Conference 2019", realizada em Ponca City, estado de Oklahoma, nos Estados Unidos.

Predestinada a lutar desde a noite do incêndio que tirou todos os bens de sua família, Neidinha Suruí conta que a defesa do meio ambiente e dos povos indígenas começou aos 12 anos, quando foi morar em Porto Velho (RO). Na capital rondoniense estudou no Colégio Getúlio Vargas, onde fez "um teatro engajado denunciando a morte de animais e indígenas sobre a ocupação da Amazônia". Em uma das suas peças teatrais desenvolveu "uma versão sobre Chapeuzinho Vermelho que denunciava os caçadores de animais".

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Suruís

Fora do mundo das fábulas, Neidinha criou, junto a um grupo de amigos, o Projeto Urucum, em Porto Velho. O objetivo do Projeto Urucum era defender os direitos indígenas e o meio ambiente através das artes — como música, teatro, pintura, artesanato e poesia — e das denúncias sobre a situação ambiental e indígena. Ao lado da artista plástica Rita Queiroz "ensinavam crianças a pintar e a conhecer as histórias e mitos representados nas pinturas".

No início da década de 80, a ativista passou a ter contato com os povos indígenas paiter suruís e os uru-eu-wau-waus. Foi ainda criança, morando no seringal Ricardo Franco, atualmente Terra Indígena Uru-eu-wau-wau, que ela teve contato com essa nação indígena pela primeira vez. "Os indígenas embora não falassem com a família sempre apareciam às margens dos rios Jamari, Jaci Paraná e Pacaás Novos, pois a administração da Fundação Nacional do Índio (Funai) funcionava em frente de casa, e quando houve o contato desses indígenas estes iam em casa para tomar água e conversar, mas a gente não entendia uma palavra", lembra Neidinha.

Das conversas sem compreensão da língua falada pelos uru-eu-wau-waus, Neidinha deixou de ser vizinha da Funai e passou a trabalhar na fundação com indígenas isolados. Foi nessa circunstância que passou a enfrentar madeireiros ilegais, mineradores e demais invasores das unidades de conservação.

Um grupo de indigenistas que eram servidores da Funai e de uma ONG do qual eu fazia parte e atuava na terra indígena Uru-eu-wau-wau denunciaram a Funai por corrupção. O resultado foi a exoneração de todos da Funai e a demissão da ONG. Nos juntamos e criamos a Kanindé para atuar na defesa dos direitos indígenas e do meio ambiente.

Neidinha Surui, ambientalista e ativista pelos direitos humanos

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Batalhas e ameaças de morte

Lutando pela defesa do povo uru-eu-wau-wau, em Porto Velho, a ativista passou a sofrer ameaças de mortes. Por isso, teve de seguir protocolo de proteção policial para evitar ataques contra sua vida. A ativista diz que as ameaças, que sofre desde que iniciou sua luta, se agravaram durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Em 1992, Neidinha tornou-se sócia fundadora da ONG Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, que nasceu de uma denúncia de corrupção dentro da Fundação Nacional do Índio (Funai). A organização atua com mais de 50 povos indígenas. Junto deles, a ativista luta contra o Projeto de Lei 490/2007, que tramita na Câmara dos Deputados. O PL estabelece um marco temporal atribuindo aos estados e municípios a demarcação de terras indígenas. Dessa forma, os povos originários só podem ficar com as terras ocupadas por eles até o dia 5 de outubro de 1988.

Mesmo com a pandemia do novo coronavírus, as ações da Kanindé não pararam. "Continuamos executando os projetos de fortalecimento das associações indígenas, proteção territorial, desenvolvimento de cadeias produtivas sustentáveis, reflorestamento e distribuição de cestas básicas, kits de higiene, equipamentos e veículos para a melhoria dos roçados voltados à segurança alimentar. Também apoiamos a perfuração de poços artesianos para levar água potável às aldeias".

A ativista também conta que na pandemia foi desenvolvida a campanha no site www.povosdaamazonia.com ,que leva cestas básicas, kit de higiene, medicamentos e equipamentos para as terras indígenas.

A Curadoria Ecoa

  • Elaíze Farias

    As histórias e pessoas apresentadas todos os dias a você por Ecoa surgem em um processo que não se limita à pratica jornalística tradicional. Além de encontros com especialistas de áreas fundamentais para a compreensão do nosso tempo, repórteres e editores têm uma troca diária de inspiração com um grupo de profissionais muito especial, todos com atuação de impacto no campo social, e que formam a nossa Curadoria. Esta reportagem, por exemplo, nasceu de uma conexão proposta por Elaíze Farias, curadora de Ecoa.

    Imagem: Juliana Pesqueira/UOL
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