Pelo direito de existir

Ao pedir direito à morte assistida, Neon Cunha entrou para história e mudou a vida de mulheres trans do Brasil

Gabryella Garcia Colaboração para Ecoa, de Blumenau (SC) Keiny Andrade/UOL

"Uma vez que as pessoas fazem questão de reafirmar quando é que você transicionou, colocam para a gente a pauta da transição, eu coloco sempre que é sobre percebimento. A transição é secundária quando você percebe que é a sua condição e quem é você no gênero. Então nas minhas palavras Neon Cunha é uma mulher negra, ameríndia e transgênera, na ordem de percebimento e de importância. Sou uma mulher de 51 anos tentando entender o que foi reservado para mim no mundo.

A minha mãe demorou para me dizer, mas ela sempre quis ter uma filha e hoje diz que fiz jus ao desejo dela, que foi atendida. É um processo muito importante para mim porque também tem a dor de uma outra mulher.

Fiz também o pedido de morte assistida com 44 anos porque eu não tinha mais nada a ganhar ou a perder. É muito pesado ter que ficar o tempo todo implorando e mendigando por respeitabilidade e eu falei 'não vou esperar mais para ser reconhecida como mulher'.

Foi um processo importante porque trouxe além do autorreconhecimento, o uso da constituição e uma sentença que passou a ser citada em outros processos pela nossa luta.

Eu estava pronta mesmo. Já tinha morrido tantas outras vezes [por ter os direitos negados] e eram tão próximas e violentas as mortes das minhas iguais. Eu me recusava a ser diagnosticada com uma patologia. Aí me tornei Neon Cunha."

Existência interseccional

A trajetória de Neon é marcada por diferentes tipos de preconceito desde a sua infância: racismo, LGBTfobia, preconceito social, marcado por uma percepção da pobreza, e a ausência de uma sensação de pertencimento. "Eu nasci em Belo Horizonte e com uns dois anos me mudei para São Bernardo do Campo. Eu não tenho pertencimento em nenhum dos dois lugares. Fico procurando esse lugar de pertencimento como qualquer pessoa trans", diz.

Também muito cedo se entendeu como mulher e o papel que arbitrariamente é imposto a elas por uma sociedade machista e patriarcal. "Eu passei a participar da manutenção da casa muito cedo. Limpar fralda, lavar a louça e cuidar de uma série de coisas que eu entendia tranquilamente como lugar perfeito de uma mulher. O papel feminino na casa, né?".

Na escola primária começam as primeiras violências pela LGBTfobia. Com quatro para cinco anos, Neon recorda que por assim se identificar, estava sempre com as meninas, e que era muito acolhida pela professora Lucia, a qual se recorda com carinho. Mas, também foi nesse período que começaram as primeiras repressões. Na sequência, veio o racismo e a percepção da pobreza.

Apaixonada por leitura e pelos livros escolares, Neon não tinha condições de adquirir os livros e, por isso, tinha que copiar a matéria e exercícios dos livros de colegas.

Quando nasci tudo mudou, o céu ficou rosa, meio alaranjado e minha mãe diz que sabia que vinha algo diferente. A gente é muito apaixonada uma pela outra, que também foi um direito a afetividade que nós elaboramos. Aquela mulher para mim sempre foi gigante, ela sempre foi maior que tudo

Neon Cunha

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

Olheira e contato com mulheres trans

O contato com as primeiras mulheres trans aconteceu em 1982, em um período em que já era obrigada a estudar no período noturno, desde os 12 anos, para poder trabalhar na prefeitura de São Bernardo do Campo, onde está até hoje.

Neon estava no centro da cidade e seu olhar encontrou Gracie, uma mulher que vivia na praça. Pouco tempo depois, aos 14 anos, com um amigo chamado Alexandre, que é definido como "precoce em tudo", passou a frequentar a noite paulistana e teve contato com outras mulheres trans.
Os contatos, conta ela, aconteciam na Praça da República, tradicional ponto de prostituição de São Paulo, e, ao mesmo tempo que houve acolhimento, também houve o que ela define como utilitarismo.

"Eu não me drogava então era uma vigia para elas, mas também era a mais nova. Era adolescente e também 'limpa' [não tinha HIV], então elas me negociavam, principalmente com policiais. Era a mais nova, a mais pura e sem doença. Mas também me aconselharam não abrir mão do emprego e agradecer por frequentar a escola, diziam que ali não seria ninguém além de uma prostituta", recorda.

Foi uma sensação de pertencimento no submundo, e também de fascínio. Todas tinham pênis e sabiam porque estavam ali. Também me ensinaram a fingir passar mal, porque os policiais não podiam ter alguém com um infarto ali

Neon Cunha

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Entrando para a história

Por sempre ter se visto e reconhecido como mulher, Neon conta que não houve um exato momento de "assumir a transição". Apenas percebeu que não era mais possível viver daquele jeito. "Vamos colocar o peito? Vamos. Foi o momento em que eu percebi que era impossível não ser mais eu".
Neon não imaginava que com essa virada de chave interna mudaria a realidade de todas as pessoas transgênero no Brasil - e para melhor. O impacto da luta de Neon está diretamente ligado ao direito de ser, existir, e ter nome e gênero legalmente reconhecidos sem a necessidade de um processo judicial.

Quando decidiu retificar seus documentos em 2014, ela enfrentou uma longa batalha e também entrou para a história. Na época, pessoas trans precisavam obrigatoriamente receber laudo médico que atestasse que eram de fato transgênero. Após ver seu direito de ser e de existir serem negados pelo estado brasileiro, entrou com um pedido de morte assistida à OEA (Organização dos Estados Americanos) caso seu gênero e sua identidade não fossem reconhecidos. Neon também foi a primeira mulher trans a falar no local.

"Imagina limitar no limite do limite do limite a vida de uma pessoa. Eu acreditava na possibilidade de morte assistida e não tinha nada a ganhar ou perder. Já tinha até o método que eu queria, era injeção letal sem dor nenhuma".

Já tinham pessoas que haviam conseguido a retificação sem a necessidade da cirurgia de redesignação sexual, mas o que Neon queria era que não fosse necessário ter mais que confrontar o Estado para conseguir os direitos. "Após o apoio do advogado Eduardo Mazzilli esperei por um ano e decidi que não ia esperar mais porque era a decisão dos outros sobre mim".

A decisão final foi de vitória para Neon. A morte assistida não foi autorizada e, desde então, graças à jurisprudência, o processo de retificação de nome e gênero se tornou um pouco menos difícil no Brasil.

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

A Casa Neon Cunha

Como uma forma de reconhecimento a toda a sua luta, trajetória e importância para o movimento trans no Brasil, Neon ganhou uma homenagem ainda em vida. Em 2018, por iniciativa de Paulo Araújo, surgiu a Casa Neon Cunha. Localizada em São Bernardo do Campo, é um espaço que evidencia a contribuição social de Neon para além do direito à retificação de nome e gênero.

O espaço busca a promoção e inclusão da diversidade que vem se fortalecendo na luta pelos direitos dessa população, sobretudo de pessoas transgênero. Atualmente a casa atua principalmente no campo da segurança alimentar e na distribuição de materiais de higiene. Entre 150 e 200 pessoas são acompanhadas de acordo com a coordenadora da entidade, Symmy Larrat, que também é presidenta da ABLGBT (Associação Brasileira Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais).

Durante a pandemia, mais de 1 mil cestas básicas foram destinadas para a população LGBTQIA+. O próximo passo dessa luta é tentar viabilizar um espaço físico que possa acolher pessoas LGBTQIA+ que são expulsas de casa e acabam vivendo em situação de extrema vulnerabilidade.

Além disso, também há a pretensão de tomar o espaço um local de atividades culturais, cursos e formações de capacitação profissional, além de apoio psicológico e assistencial.

Como ajudar?

Quem quiser enviar doações para a Casa Neon pode fazer transferência bancária para a conta abaixo ou PIX.

Banco: Bradesco
Agência: 1844
Conta Corrente: 71301-5
CNPJ: 37.211.131/0001-28
PIX: 37.211.131/0001-28 (CNPJ)

Você precisa conhecer, por Neon Cunha

  • Fabiana Moraes

    Mulher pernambucana é jornalista e socióloga e autora do livro "O nascimento de Joicy: Transexualidade, jornalismo e os limites entre repórter e personagem", que conta a história de transição de gênero de uma mulher. Também é professora e pesquisadora do Núcleo de Design e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (NDC/UFPE) e vencedora dos prêmios Esso, Petrobras e Embratel. (@fabi2moraes)

    Imagem: Reprodução/Instagram
  • Dandara Rudsan

    Travesti preta e defensora dos direitos humanos no Estado do Pará. É Secretária Geral do Movimento Negro de Altamira e também Coordenadora Executiva do Coletivo Amazônico LesBiTrans, o primeiro grupo de luta social no ativismo LGBTQI+ formado na Cidade de Altamira (PA). (@lesbitrans_amazonia)

    Imagem: Arquivo pessoal
  • Symmy Larrat

    Ativista, primeira mulher trans presidenta da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) e diretora da Casa Neon Cunha. Também foi coordenadora nacional LGBT no governo Dilma e coordenadora na implementação do programa Transcidadania da prefeitura de São Paulo. (@larratsymmy)

    Imagem: Arquivo pessoal
  • Aretha Sadick

    Multiartista, trans e negra que ocupa lugares e discute pautas através de suas criações. Também é atriz formada pela Escola de Teatro Martins Pena e performa como drag queen. Busca sempre trabalhar as questões de gênero, raça e sexualidade. (@arethasadick)

    Imagem: Arquivo pessoal
  • Uma Luiza Pessoa

    Artista travesti que participou da intervenção "Virada Cena Trans" em 2019, junto com outros artistas trans. Se define como uma pessoa cantadeira e poeta, que trás em sua poesia/música uma forma de enfrentamento aos obstáculos cotidianos e faz deles o maior tema e matéria-prima para sua arte. (@umalupessoa)

    Imagem: Arquivo pessoal

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