Cypherpunk contra a covid

O ativista Pablo Lobo criou uma plataforma que arrecadou R$ 31 milhões para combater doença

Lia Hama Colaboração para Ecoa, de São Paulo Fernando Moraes/UOL

"Há 10 anos, meu filho, Theo, teve uma doença grave chamada encefalite herpética - uma infecção no cérebro causada pelo vírus herpes simples. Ele tinha um ano e oito meses de idade e começou a perder o controle motor. Foi submetido a um tratamento no cérebro para controle da infecção, perdeu 86% do lobo temporal direito, sofreu sequelas e teve que reaprender a falar e a andar. Ficou sete meses internado em hospitais. Nesse período, conheci o Esper Kallás, médico infectologista que cuidou do Theo. Ficamos muito amigos, tanto que, quando meu filho teve alta, Esper devolveu todos os cheques de pagamento num envelope. Nunca os depositou porque viu as dificuldades que eu enfrentei para bancar o tratamento caríssimo.

No início de março do ano passado, quando os casos de covid-19 começaram a se espalhar pelo Brasil, Esper me ligou. Ele, que é um dos principais responsáveis pelo enfrentamento da doença no Hospital das Clínicas, me perguntou: 'Pablo, você tem como pedir doações para o HC? Somos a base da saúde pública do país e, sem ajuda, vamos colapsar'. Eu respondi: 'Cara, vamos criar uma plataforma de doação direta para o hospital'.

Foi quando surgiu a campanha #HCCOMVIDA, que, por meio da plataforma ViralCure, arrecadou mais de R$ 31 milhões para abertura de novos leitos, contratação de profissionais de saúde, compra de respiradores, ambulâncias e equipamentos de proteção individual, além de financiar pesquisas na luta contra a covid-19."

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Um cypherpunk no Hospital das Clínicas

Aos 43 anos, Pablo Lobo é um ativista digital e empreendedor social. Nascido em Brasília, passou a infância no interior de São Paulo e hoje mora na capital paulista. É fundador e CEO da Sthorm, empresa que desenvolve soluções digitais para resolver problemas da vida real, como é o caso da plataforma ViralCure, que arrecadou mais de 31 milhões de reais em doações para o combate à covid-19 no Hospital das Clínicas. Mais de 4 mil vidas foram salvas no maior hospital da América Latina com a ajuda dos recursos da campanha idealizada por Pablo.

Com barba e cabelo compridos, vestindo camiseta e calça jeans rasgada, Pablo tem a aparência de vocalista de banda de heavy metal. Além de CEO da Sthorm, é paraquedista e piloto de avião. No início dos anos 90, ingressou na faculdade de ciência da computação da Unimep (Universidade Metodista de Piracicaba), mas logo abandonou o curso. "Eu não via sentido em continuar na faculdade porque percebi que quem estava fora entendia mais do assunto do que quem estava dentro", explica Pablo, que se tornou autodidata e passou a integrar grupos de ativismo online. "Sou bom em arquitetura de soluções e em algoritmos."

Pablo se identifica como cypherpunk, termo que teve origem na Califórnia a partir dos anos 90, quando um grupo de ativistas passou a usar criptografia para proteger a privacidade dos cidadãos. A utopia cypherpunk prega a liberdade de expressão, os direitos civis e a colaboração entre indivíduos no ciberespaço. "Os cypherpunks foram os caras que vislumbraram um mundo sem nação, sem desequilíbrio e sem injustiça. Que mostraram como fazer um sistema de colaboração sem intermediários e como criar moedas sem Banco Central", afirma.

"A utopia da internet nos anos 90 foi esmagada pelas grandes corporações de tecnologia nos anos 2000. As redes sociais, em vez de nos aproximar, provocam a polarização, dividem opiniões porque é a forma de fazer com que as pessoas usem cada vez mais essas tecnologias e gerem mais lucros às empresas", explica o argentino Mariano Lopes Hermida, sócio e diretor-criativo sênior da Sthorm. "O que buscamos fazer é desenvolver uma tecnologia que não seja orientada apenas para produzir lucro e, sim, que torne nossas vidas melhores, que permita nos conectarmos como comunidade de maneira mais saudável", acrescenta.

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Da denúncia à construção de soluções

Por muito tempo, Pablo praticou o chamado "cliquetivismo" - ou ativismo de clique - para denunciar o que considerava errado em sistemas de vigilância global ou em esquemas fraudulentos da indústria farmacêutica. "Eu causei muito no mundo da internet", admite o ativista, que prefere não entrar em detalhes sobre o passado. Nos últimos anos, passou a concentrar esforços não para fazer denúncias, mas para construir soluções para problemas globais por meio de sistemas digitais colaborativos.

Na sede da Sthorm no bairro de Alto de Pinheiros, zona oeste paulistana, circulam especialistas em tecnologia vindos de países como Argentina, Ucrânia, Rússia, Estados Unidos, Costa Rica, México, África do Sul, Itália, Bulgária e Papua-Nova Guiné. São 68 funcionários que, juntos, buscam saídas para questões que vão do financiamento de pesquisas contra doenças infecciosas ao combate às mudanças climáticas e a redução do desperdício de alimentos no planeta.

Entre os principais projetos em desenvolvimento estão o Global Pandemic Shield, um sistema para a criação de uma identidade digital para cada indivíduo, que una dados como vacinação, testagem e exposição a situações de risco e ajude a prevenir epidemias como as de dengue e febre amarela. A proposta deve ser apresentada no Fórum Econômico Mundial em Singapura, em agosto. Outra aposta da Sthorm é o lançamento da Bitcoin.com Exchange, bolsa de valores que negocia criptomoedas, como o bitcoin, e o Planetary Exchange, espécie de Nasdaq para comercializar ativos como créditos de carbono.

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"Queremos assaltar o marketing das empresas"

No caso da campanha para arrecadar fundos para o Hospital das Clínicas, Pablo apresentou sua proposta à direção da instituição. "Queremos criar uma plataforma de arrecadação para vocês. Vai ter uma parte de crowdfunding tradicional, mas a ideia é focar no cobranding do hospital com as empresas. O objetivo é 'assaltar' as marcas, pegar o dinheiro de marketing delas que hoje vai para influenciadores como a cantora Anitta", explicou.

Com o sinal verde da diretoria, foi montada uma equipe de publicitários, engenheiros de computação e médicos que desenvolveram a campanha #HCCOMVIDA, lançada em 1º de abril do ano passado. Por meio da plataforma ViralCure, desenvolvida pela Sthorm, pessoas físicas e empresas de todo o Brasil puderam fazer suas doações para o combate à covid-19 no Hospital das Clínicas.

"A gente chegava nas empresas e falava: vamos ser parceiro de cobranding do Hospital das Clínicas? Nós deixamos vocês postarem no Instagram o nome do HC e a gente posta que vocês ajudaram. Então tinha todo um pacote de mídia junto para a doação fazer sentido para eles." A ideia era apostar na tendência das empresas de investirem no chamado "marketing de propósito", com objetivo de ter impacto social positivo.

Matt Sorum contra a covid-19 no Brasil

Ex-baterista do Guns N' Roses tocou "Come Together" para arrecadar fundos a instituições que lutam contra a covid-19

"Come together"

Mais de cem celebridades do Brasil - incluindo Xuxa, Michel Teló e Soares - e do exterior se engajaram na campanha #HCCOMVIDA. Matt Sorum, ex-baterista da banda Guns N'Roses e sócio de Pablo na Sthorm, fez uma live com a participação de músicos como o guitarrista Slash, onde cantaram a música "Come Together", dos Beatles, para arrecadar fundos.

A experiência foi tão bem-sucedida que Pablo participou, ao lado de lideranças do Hospital das Clínicas, de um painel de um evento da Assembleia Geral da ONU em setembro do ano passado para falar sobre o uso de novas tecnologias no enfrentamento da pandemia.

Pablo Lobo é um cara brilhante e tem uma criatividade formidável. O entusiasmo dele contagia quem está à sua volta.

Esper Kallás, médico infectologista e professor-titular da Faculdade de Medicina da USP

Fernando Moraes Fernando Moraes

"Pablo quebrou paradigmas"

"Pablo Lobo contagia quem está à sua volta. Ele quebrou paradigmas no Hospital das Clínicas ao gestar a ideia da plataforma de doações", diz Esper Kallás, médico infectologista e professor-titular da Faculdade de Medicina da USP. Segundo Kallás, a mobilização liderada pelo ativista digital culminou numa das ações mais efetivas de ajuda a uma instituição pública no Brasil.

"Ele fez com que o Hospital das Clínicas e a Faculdade de Medicina da USP refletissem sobre como utilizar essas novas tecnologias para atrair a sociedade civil e incentivá-la a contribuir na luta contra a covid-19", acrescenta o infectologista. O médico lembra do protagonismo do HC no combate a outras epidemias no passado - como a de meningite nos anos 70, a de febre amarela em anos recentes e a de HIV/Aids - e defende que o engajamento da população seja permanente e não apenas algo pontual numa situação de emergência como a atual.

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