Luta ancestral

Regina Ferreira criou agência de modelos pretos para furar bolha racista na moda

Lola Ferreira Colaboração para o Ecoa, do Rio de Janeiro Camila Tuon

"Eu nunca pensei em ser modelo, nunca tive autoestima alta. Sempre era a 'exótica'. No Guarujá, trabalhei em praia, loja e cinema. Aos 15 anos, um amigo me falou para fazer um book de fotos, mas não rolou. Surgiu um teste para uma empresa de dança, passei e fui trabalhar na Itália. Pensei que teria mais contato com a moda, mas não foi assim, porque era tudo cronometrado. Quando voltei, pensei em ajudar minha mãe e comecei a pesquisar trabalhos, agências, fotógrafos?

Comecei a trabalhar com eventos, que é muito diferente de moda, é bem freela mesmo e não exige tanto as medidas. A galera nas agências pedia para eu emagrecer, sempre tinha uma desculpa: muito alta, quadril largo. Comecei a entender o comportamento. Me elogiavam, chamavam de bonita, mas eu nunca conseguia fechar um trampo. Falei, várias vezes, que não ia tentar mais a carreira de modelo, porque dava tudo certo com evento.

Para mim, as agências me mostravam e os clientes não me queriam nunca. Mas tem muito trabalho que eu consegui no meu Instagram. Entendi que trabalhando minha imagem, chegando diretamente às marcas, dava certo.

Lutei muito para ter meu espaço, para conseguir acessar os lugares. E fui conseguindo com muito sacrifício, muita luta. O que eu quero fazer é puxar mais um. A importância de ter a Hutu é que a mudança não vai partir das empresas, de dentro. Nem estou esperando por isso. Se não tiver dentro das empresas, dentro desses lugares, pessoas que vivam o racismo diariamente, não vai mudar.

Sempre vai ter o branco dizendo o que é diversidade se não tiver preto lá dentro."

Camila Tuon
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Para abalar as estruturas

Já são mais de dois meses desde o dia em que o Instagram sofreu um "apagão". Naquele dois de junho, personalidades inicialmente da música, mas também da moda, cultura, esportes e política publicaram uma foto completamente preta, numa hashtag que reuniu milhares de adeptos, a #BlackOutTuesday. O objetivo era chamar a atenção para o assassinato de George Floyd, homem negro morto por um policial branco em Minneapolis, nos Estados Unidos. Uma pauta racial, sem dúvida. Na esteira dos protestos pela morte de Floyd, essas mesmas indústrias se viram no meio de um furacão de cobranças: onde estavam as pessoas negras?

Na moda brasileira, um perfil específico abalou a pretensa calmaria. O perfil "Moda Racista" reuniu 40 mil seguidores desde março, e ganhou fôlego após o #BlackOutTuesday. A página anônima questionava, além da quantidade de pessoas negras na indústria da moda, o tratamento que era dado a trabalhadores, principalmente por parte de grandes nomes. O perfil foi excluído após o estilista Reinaldo Lourenço ser apontado em uma das postagens e entrar na Justiça.

As denúncias em redes sociais ganharam força nos últimos tempos, mas há aqueles que também se dedicam a tentar mudar realidades fora do celular. É o caso de Regina Ferreira, criadora, CEO e dona da Hutu Casting, uma agência especializada em modelos negros para publicidade, campanhas e eventos. "Achei muito importante o Moda Racista. Mas para ele voltar, pode ser complicado. Deve ser alguém do meio que cansou, que pensou que aquilo deveria mudar. Eu espero, de coração, que alguma coisa mude. De tudo que a gente vive, não dá para dizer que agora vai mudar tudo", avalia Regina.

Ela criou a Hutu depois de anos envolvida com o mundo da moda, principalmente com eventos, de salão de automóveis a ativação de novos produtos. Nos corres que fez, aprendeu não só a lidar com o trabalho que todo mundo vê ("não é só pagar de bonita"), mas observou como é a produção e também o desenvolvimento. Assim, começou a ser chamada para a função de produtora, momento em que se viu criando seu próprio "casting pessoal", chamando as jovens para estarem no lugar que ela costumava ocupar.

"Mas sempre rolava uma desculpa. Tinha uma parada, que eu acabei pegando ranço, que é 'diversidade'. Sempre havia devolutiva do casting porque diziam que buscavam algo diverso: uma loira, uma morena, uma ruiva, uma oriental e uma negra. Ou seja, maioria branca. Mas não iria adiantar eu falar", relembra.

Ela, que fez seu nome e carreira correndo sozinha, ganhando muitos elogios mas poucos trabalhos como modelo, se viu abrindo uma agência. Uniu o útil ao agradável: gostava de eventos, gostava de pessoas e de delegar funções. Nos trabalhos que fez como produtora, viu sua lista de contatos pessoais aumentar, com meninas "ponta-firme", que honravam os trabalhos e mantinham a confiança dos contratantes em Regina.

Com a consolidação da Hutu, Regina viu algumas pessoas torcerem o nariz para o seu trabalho: "Começaram a se incomodar com a Hutu ser prioridade. Mas não era uma questão de escolherem as modelos da Hutu, era uma questão de poder, de verem uma mina preta fazendo esse trabalho todo", avalia.

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Desde o Guarujá

Nascida no litoral paulista, Regina se viu em São Paulo pela primeira vez aos 18 anos, após voltar de um semestre na Itália. Antes disso, trabalhou na praia, em lojas de shopping e salas de cinema.

"Aos 15 anos, ouvi pela primeira vez que teria um concurso, que poderia fazer um book de fotos. Mas não rolou. Eu nunca pensei em ser modelo, nunca tive autoestima alta. Sempre era a 'exótica'", relembra. Mas depois do primeiro contato com uma possibilidade de construir carreira na área, decidiu que era isso que queria.

Na Europa, trabalhou com dança e pensou que estaria mais próxima do mundo da moda, mas não aconteceu. De lá, mesmo com o tempo cronometrado, começou a enviar fotos para agências de São Paulo.

Ao voltar, decidiu que era hora de se arriscar de vez na indústria da moda. Trabalhou em loja e como caixa de supermercado, conciliando os testes de agência com a carga horária necessária para se sustentar. Até chegar o momento em que ficou inviável dar conta de tudo: conheceu uma menina que a apresentou ao mundo dos eventos, e foi ali que ela fez seu nome.

"Evento é muito diferente de moda, é bem freela mesmo e não exige tanto as medidas. A galera nas agências pedia para eu emagrecer, sempre tinha uma desculpa: muito alta, quadril largo", conta Regina. E completa: "Comecei a entender o comportamento. Me elogiavam, chamavam de bonita, mas nunca conseguia fechar um trampo."

Mas, no fundo, diz ela, ainda tinha aquele desejo de trabalhar com moda. Não por status, mas por saber que era bonita e poderia, sim, estar nesse meio. Ela não era exótica.

"Mas tem coisa que não entendemos quando mais novas. Sempre gostei de trabalhar com eventos, conhecer gente. Mas tanto na moda quanto nos eventos é sempre um ou dois pretos. E ninguém se incomoda, é muito natural para os clientes esse cenário. Ninguém tinha um estalo e chamava mais meninas pretas. Exceto quando a temática era, sei lá, Salvador", explica, citando um exemplo de como a moda enxerga as pessoas negras somente em espaços pré-determinados e estereotipados.

Ninguém tinha um estalo e chamava mais meninas pretas. Exceto quando a temática era, sei lá, Salvador

Regina Ferreira, criadora da Hutu

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Racismo à espreita

Ela conseguiu muitos trabalhos por conta própria, abusando das hashtags do Instagram e de boas fotos de trabalhos anteriores. Regina entendeu que pelo caminho tradicional, do book em agência e esperar que a escolhessem não iria funcionar, já que as agências faziam o filtro do que iriam enviar aos clientes.

"Pra mim eles me mostravam e os clientes não me queriam nunca. Mas tem muito trabalho que consegui no meu Instagram. Eu entendi que trabalhando minha imagem, chegando diretamente às marcas, dava certo."

O mesmo processo era muito difícil para outras meninas, bem como foi para ela. Assim nasceu a Hutu, com a proposta de democratizar o acesso de jovens negras aos trabalhos que envolvem beleza (e não exotismo). Mas até o processo de criação foi marcado pelo racismo. "A gente fica com tanto medo de ser inferior, que eu demorei anos para decidir nome, logo. Mas eu precisava da Hutu, porque indicar meninas para trabalhar também é um trampo. É casting", diz.

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Reavivar a confiança

Uma das meninas que teve o primeiro contato com a moda por meio de Regina foi Moara Sacchi, hoje modelo. Ela cresceu em um povoado chamado Santo André, no extremo-sul da Bahia, e decidiu tentar a carreira em São Paulo. Mandou fotos para todas as agências da cidade e, "obviamente", nas palavras dela, foi negada em todas. Algumas sequer respondiam.

"Percebi que o universo da moda era ainda mais exclusivo do que eu pensava, cheguei a pensar em desistir várias vezes. Eu me questionava se estava realmente fazendo a escolha certa", conta.

Moara trabalhou em cinco locais diferentes durante um verão para conseguir juntar o dinheiro necessário e ir até a "cidade dos sonhos" da moda. Mas o que encontrou foi até cruel: "eles te fazem pensar que você não tem espaço mesmo". E tudo mudou quando conheceu Regina.

"Eu já estava pensando em desistir, procurando trabalho como garçonete em restaurantes, para me manter em São Paulo e poder dançar e estudar. Conheci a Hutu através de uma amiga e só de ver a página no Instagram já fiquei feliz, porque se mostrava uma agência muito mais humana. Mandei meu material, e a Regina, sempre atenta, me respondeu rapidinho. Até hoje guardo a resposta dela que começava com "você é maravilhosa demaissssssssss". Assim, com muitos 's' mesmo. Eu fiquei feliz da vida, e a confiança voltou na hora", relembra a modelo.

Moara conta que demorou apenas uma semana para fazer o primeiro trabalho, por intermédio de Regina, num festival relacionado também à sua trajetória pessoal como militante do movimento negro. Ali ela se percebeu dando orgulho para sua mãe. Pouco tempo depois, fez um teste para uma grande empresa de cosméticos e conta que, a todo momento, Regina a tranquilizava.

"Entendo a Hutu como essencial para o processo de reparação histórica que nós do movimento negro estamos construindo aos poucos. Precisamos de mais pessoas como a Regina, [os estilistas] Isaac Silva e Carol Barreto, pessoas que entendam o verdadeiro papel da moda como agente transformador e cocriador de subjetividade", avalia Moara. Para ela, isso é o que faz tão necessário que "pessoas capazes de construir uma nova realidade ocupem esses espaços de poder dentro da sociedade".

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Há moda sem racismo?

Regina vê com bons olhos o movimento de 2020, de mais atenção a práticas e profissões dominadas pelo racismo, mas a sua trajetória não permite comemorar antes da hora.

"Lutei muito para ter meu espaço, para conseguir acessar os lugares. E fui conseguindo com muito sacrifício, muita luta. O que eu quero fazer é puxar mais um. A importância de ter a Hutu é que a mudança não vai partir das empresas, de dentro. Nem estou esperando por isso. Se não tiver dentro das empresas, dentro desses lugares, pessoas que vivam o racismo diariamente, não vai mudar. Sempre vai ter o branco dizendo o que é diversidade se não tiver preto lá dentro", avalia a empresária.

Ela aponta que viu muitas pessoas comemorando o perfil "Moda Racista", mas acha incoerente com o tanto de negativas que ela e outras meninas negras receberam ao longo da carreira. Por isso, construir a Hutu é um trabalho de formiguinha. "Da mesma forma que me construí a cada tijolinho, estou construindo essa agência aos poucos."

Ela destaca que não quer, de forma alguma, se aproveitar do sonho alheio. Problema, apontado inclusive por Moara, que é comum a outras agências do mainstream. "Eu não sou essa pessoa que fica procurando modelos, mas fico de olho. A abordagem faz ter sonhos, mas não é de uma hora para outra".

Esse pé no chão, acredita Regina, incomoda quem sempre comandou o jogo da moda. Mas não é suficiente para fazê-la parar: "Eu acho que a galera branca acha uma afronta, a partir do momento que o negro se impõe e diz que vai escrever sua história. Eles pensam que ter um ou dois pretos é suficiente. Mas a gente nunca vai desistir. A gente nunca vai deixar de lutar, porque é ancestral".

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