A potência da Caatinga

Tião Alves transformou o semiárido em um laboratório de tecnologia popular e rural

Juliana Vaz Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Ricardo Labastier/UOL

"Nunca quis sair da Caatinga. Essa terra é uma universidade invisível, é cheia de riquezas. A seca vai existir porque é um fenômeno natural, não é possível lutar contra, mas sim se adaptar. E temos inúmeras soluções para isso.

Quem diz o contrário, eu posso lhe garantir, é a indústria da seca: a educação é importada, não é adaptada às realidades locais. As crianças e jovens aprendem que só em grandes cidades vão obter sucesso. Isso resulta no êxodo rural, que consequentemente agrava a pobreza e o desprezo pelo meio ambiente.

Nasci em 1962, no Rio Grande do Norte, mas hoje sou considerado cidadão de Arcoverde (PE). Eu tive e ainda tenho a oportunidade de ir para outra cidade. Mas as raízes aqui são profundas demais. Ficar e transformar o ambiente para melhor é um compromisso comigo mesmo."

Cerca de 27 milhões de pessoas vivem no semiárido brasileiro, uma área que abrange um terço do território nacional e atravessa nove estados: Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais.

Filho de pequenos agricultores, Sebastião Alves cresceu sendo testemunha da devastação da seca. Ele cursou o ensino médio técnico em agroecologia em Pernambuco e sempre ouviu que, para prosperar, era preciso sair do Nordeste: o clima seco, a vegetação escassa e os habitantes do sertão - os sertanejos - eram o oposto do que o Brasil via (e ainda vê) como desenvolvimento.

O sertão, o deserto árido brasileiro, não é um deserto; tem características predominantemente rurais, clima seco, vegetação seca e solo raso. Pouco valorizado, teve investimentos escassos do governo e nunca abrigou o ideal de desenvolvimento das cidades urbanas, mesmo no imaginário popular.

A região sofreu de 1979 a 1983 um grande período de seca. Enquanto muitos planejavam emigrar em busca de outra vida, Tião queria ajudar a família a encontrar maneiras de melhorar a produção agrícola. "Na época, eu com meus 20 anos, me incomodava, mas não entendia o porquê, não sabia que aquele discurso era alinhado aos interesses do mercado. A época era da divisão de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, as fazendas de gado, as plantações de cana, algodão e soja. Queriam a mão de obra barata dos sertanejos, que, se conseguiram lidar com a dureza da Caatinga, seriam fortes para enfrentar qualquer outro clima", conta.

Ali, começou a tomar forma em sua mente o entendimento de que as escolas que não eram adaptadas ao contexto regional. "Por que estamos estudando isso que não se aplica ao semiárido? Comecei a questionar a escola. Eu não entendia. Quando percebi isso, queria inverter a lógica".

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A grande seca

Próximo de uma ala progressista das pastorais da igreja católica, conheceu Abdalaziz Moura. Tião se refere a Moura como seu mestre: ele encontrou na teologia da libertação sua formação, já nos escritos de Paulo Freire e nos princípios da sustentabilidade achou meios de ajudar a população do semiárido. Moura foi o primeiro a levar o conceito de alimentos orgânicos a agricultores nordestinos, em 1987.

E foi o professor Moura quem disse a Tião que o conhecimento e sua vontade de transformar a realidade deveriam ser compartilhados, não se restringir apenas a uma aplicação em sua própria família.

"Íamos nas comunidades, fazíamos do evangelho um ambiente progressista da igreja e de certa forma lutamos contra a ditadura militar. Compartilhamos conhecimento com lideranças locais, sindicalistas e pequenos agricultores, mas sentia que me faltava um lado produtivo. Aquelas pessoas e seus antepassados sobreviveram ali por décadas. Como fizeram isso?", questionava.

Fui aprendendo com os agricultores, fui convencendo que eles eram capazes, mesmo sem saber ler ou escrever. Os fazia repetir 'eu sou capaz'. Isso não se escutava da boca de ninguém. Eles entendiam que eram pobres por falta de sorte ou castigo de Deus

Tião Alves

O projeto ensinou a construção de poços para a coleta de água de chuva, a plantação de hortaliças mais adequadas para aquele solo e introduziu a criação de cabras nas comunidades - a cabra é muito resiliente em áreas inóspitas e seu leite é importante complemento alimentar para crianças em desnutrição.

"Existe como mudar. Visitando as pessoas de uma região, vimos que as mulheres, da faixa etária de 35 a 45 anos, todas tinham problemas na coluna. Na época não tinha energia elétrica nas casas para ligar uma bomba como hoje é possível. Então, era delas a tarefa de buscar água em poços, puxando por 10, 20 metros de profundidade um balde com 20 kg de água", lembra.

Os sabores locais ajudaram a pensar soluções criativas para os desafios da comunidade. "Criamos um sistema de bomba com rodas de bicicleta, facilitando mecanicamente esse processo. As crianças aprendiam pedalando, como brincadeira, uma forma de transformar a realidade, além de ajudar a saúde daquelas pessoas com um dispositivo simples", diz.

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Poder ao povo

Trabalhou por um período como secretário da agricultura do Recife (PE), mas tinha consigo o compromisso de deixar um legado aos sertanejos.

Com o fim do período de seca, parceiros que trabalharam com ele como agente pastoral anos atrás, entre eles Abdalaziz Moura, fundaram o SERTA - Serviço de Tecnologia Alternativa. Criado em 1989, a proposta era levar formação para comunidades e transformar o povo em protagonista de sua história.

Ali, as primeiras perguntas que fazem aos alunos são: "O que você sabe sobre agricultura? E quem te ensinou?". "O que fazemos é lapidar e expandir esse conhecimento", diz Tião. Ele coleta, adapta e cria tecnologias e técnicas que podem melhorar a vida das pessoas que vivem no meio rural.

O trabalho de campo, com contato direto com o povo no sertão, foi essencial e Tião faz questão de repassar essa importância aos seus alunos. Uma de suas invenções foi um aquecedor para a água do chuveiro, feito com isopor e garrafa PET. A água passa por canos pintados de preto, atravessa as garrafas e fica armazenada na caixa de isopor sobre o telhado. Isso ajuda a economizar energia elétrica. Outra criação é um aquecedor de garrafas PET.

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Peixes e hortaliças em equilíbrio

Das tecnologias que ele conseguiu implementar em diversas propriedades, a que mais tem se espalhado é a aquaponia. Trata-se de um sistema de produção de alimentos que combina a aquicultura convencional com a hidroponia em um ambiente simbiótico, utilizando a recirculação hídrica. A água que entra no tanque de organismos aquáticos é encaminhada para as unidades de cultivo dos vegetais e depois retorna novamente para o tanque, reiniciando todo o processo.

A experiência é transformadora para os alunos de Tião. "Quando vimos as tecnologias que preservam o meio ambiente e as técnicas diferentes do que a gente fazia até então, foi um choque de realidade. Além de aquaponia, em que podemos criar peixes e ao mesmo tempo que as hortaliças, outra invenção do professor que usamos aqui na minha propriedade é o biodigestor. O esterco dos animais gera gás de cozinha. Parece mentira, mas você vê como funciona bem na sua frente", diz Thiago José, que foi aluno de Tião em 2018 no curso de agroecologia.

A tecnologia tem sido reproduzida Brasil afora. "Nunca pensei que isso poderia chegar longe. Dá para fazer esse sistema na laje ou no terreno do quintal. Já dá para produzir hortaliças, frutas, folhas quase todas e até alimentar uma família."

Para validar esses saberes cientificamente, Sebastião estabelece parcerias com universidades. Esse é um dos reconhecimentos de seu trabalho, segundo Abdalaziz Moura.

"O que antes falávamos em uma pequena sala, passou a ter reconhecimento do governo de Pernambuco e se transformou em política pública, como o curso técnico de agroecologia. Outras instituições, como professores e pesquisadores de universidades e institutos federais nos procuram para buscar as ferramentas e metodologias que ele criou justamente para serem replicadas", diz o professor.

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Educação é o seu legado

Com a pandemia, Tião ficou um ano afastado de seus alunos, mas manteve constantes as pesquisas por inovação. Junto com o mestre, fundaram o Instituto Abdalaziz Moura para divulgação do método pedagógico que criaram para ainda mais pessoas. "Minhas pernas já não são como antes e não posso viajar tanto, mas pela internet chego até mais longe", fala Tião, que também cria conteúdo em um canal no YouTube. O objetivo é registrar seus conhecimentos para que qualquer pessoa ter acesso e reproduzi-los.

Para ele, a resposta para as mudanças climáticas está em todo o trabalho que fez até hoje: sistemas para coexistir com a seca. "Precisamos 'recaatingar' essa região - e não reflorestar -, porque a Caatinga é a nossa floresta. Ela é rica em fauna, flora e microorganismos que só existem aqui. E nossos antepassados sabiam como lidar com a Caatinga."

"Já formei mais de 2 mil técnicos. Desses, 95% continuam aqui. Estão agarrados à terra. Os sertanejos carregam dentro de si o conhecimento, os mais simples e às vezes analfabetos, sabem o que nenhuma universidade ensina. A escola deveria conciliar o conhecimento ancestral, porque essa é a raiz do sentimento nordestino. Como disse Euclides da Cunha, 'O sertanejo é antes de tudo um forte'", encerra Tião.

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