O contador de histórias

Toni Edson roda comunidades para compartilhar saberes orais e momentos de troca entre pessoas pelas ruas

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo Amanda Bambu/UOL

"Eu fico pensando... Antes, para firmar algum acordo, nós dávamos a nossa palavra de honra. Hoje, assina-se um papel. As pessoas não confiam mais no que você fala, só no que escreve. A escrita é muito importante, claro, mas sinto que ela vem ganhando um peso muito maior do que a oralidade.

As pessoas dizem que, se não tem registro escrito, se perde. Aí eu penso que, poxa, algumas das histórias que eu conto têm mais de 700 anos. Eu não li nenhuma delas, todas foram passadas para mim pela contação falada. Com elas eu construí meu caminho na literatura, fiz canções e poemas... Mergulhado na oralidade entendi que muita coisa fica registrada em nós de forma muito latente e não vai embora.

Mas eu fico pensando também se essa descrença toda não acontece porque muitas vezes não estamos vivendo aquilo que falamos. Não sei... Por isso, tentar aproximar discurso e prática são questões muito interessantes para mim."

Vasculhando as próprias memórias, Toni Edson encontra uma daquelas histórias que parecem coisa de filme: o ano era 2001, e o sergipano passeava pelo Rio de Janeiro quando encontrou a atriz Camila Pitanga na orla da praia. Na cara de pau, correu para se apresentar e contar que gostaria de poder mostrar algumas das peças escritas por ele ao ator Antônio Pitanga, pai de Camila.

Prontamente, ela anotou três números em um papel, mas a verdade é que Toni nunca teve a chance de ligar. Momentos depois do encontro com a atriz, Toni teve a mochila furtada enquanto salvava uma conhecida que estava se afogando no mar. Todos os pertences foram embora.

Os escritos que queria mostrar a Antônio Pitanga eram partes de uma vida dedicada à arte, a contar histórias, atuar, dirigir, compor e estudar até se tornar mestre em literatura brasileira e doutor em artes cênicas, além de ser professor universitário, andar de perna de pau e mais, recentemente, ser curador de conteúdo de Ecoa. Aliás, logo no primeiro encontro com a reportagem quando apresentou uma música de sua autoria inspirada em Ecoa, ele afirmou que "a canção é a forma mais vasta de utilização da palavra", algo que aprendeu quando visitou Burkina Faso, em 2014.

Mesmo antes de saber disso, a musicalidade já tinha um espaço especial garantido em sua vida. "Minha mãe cantava o dia inteiro em casa. Lembro que, inclusive, ela não acertava a letra de muitas músicas, mas cantava cada palavra com tanta certeza que eu só fui descobrir que a letra não era aquela depois de muitos anos", conta.

É só conversar um pouquinho com ele para entender que o fruto não cai muito longe do pé. Toni vive contando e cantando, herança viva de sua mãe. Às vezes te pega no susto ao soltar o vozeirão. Em outros casos, dá o aviso antes de começar: "eu vou cantar agora, tudo bem?". Afinal, para ele, certas coisas são melhor explicadas e compreendidas quando acompanhadas de melodia.

Amanda Bambu/UOL Amanda Bambu/UOL

A primeira vez que cantou publicamente foi aos 11 anos, em um festival de talentos na escola. Também foi a primeira vez que subiu em um palco para atuar. Incentivado pelas professoras, Toni escreveu uma peça em que cantava uma paródia — também escrita por ele — de "Xote Ecológico", de Luiz Gonzaga, criada para o evento.

No ano seguinte, colegas se aproximaram para que escrevesse peças para outras turmas. Escrevia um roteiro para um, outra história para outro, e com 15 anos já ganhava um bom dinheiro fazendo teatro assim.

Não teve dúvidas quando chegou a hora de decidir o que cursar na faculdade. Até um teste vocacional apontou que Toni realmente levava jeito era para as Artes Cênicas. Mas pela pressão de conhecidos e familiares contra uma vida artística, optou por estudar direito ao mesmo tempo. O único lugar que o permitia fazer isso naquela época ficava em Santa Catarina. E para Florianópolis foi ele. As experiências que viveu lá fortaleceram o laço com o mundo das artes.

Uma das mais impactantes foi assistir a um espetáculo com uma mulher branca interpretando uma mulher negra com trejeitos exagerados e estereotipados com o objetivo de projetar uma imagem vexatória de pessoas negras. Quando saiu, inconformado, Toni decidiu que se dedicaria a escrever uma peça feita só por atores negros. Pesquisando movimentos como o Teatro Experimental do Negro (TEN), ele escreveu à mão 80 páginas para sua iniciação científica na faculdade.

Lembra da história da Camila Pitanga? Pois é, não foi só o contato do Antônio Pitanga que ele perdeu naquele dia. O projeto com com todos seus estudos e a peça escrita para pessoas negras também estavam na mochila. Coube a Toni sentar e escrever tudo de novo.

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Foi também em Florianópolis que ele se tornou contador de histórias. No final dos anos 90, o setor de cultura do Sesc (Serviço Social do Comércio) chegava à cidade, junto com as oportunidades de emprego na área. Toni abraçou uma de contador em um projeto com histórias curtas, a maioria indígenas e africanas.

Acabou despertando nas pessoas que o assistiam um interesse não só em aprender sobre contação, como também sobre as diferentes culturas apresentadas nos espetáculos.

"O trabalho do Toni me influenciou muito a buscar conhecer mais sobre a nossa ligação com a África. A dominação branca europeia foi tão grande que abafou tudo que era não branco, e o Toni me despertou para isso. Agora também tenho vontade de fazer contação de histórias resgatando a influência africana", conta Abides Oliveira Primo Jr., jornalista e artista que costumava assistir às apresentações do sergipano antes da pandemia.

No doutorado pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), Toni pôde se aprofundar nessas histórias quando começou a pesquisar e estudar sobre os contadores de história da África Ocidental, mais conhecidos aqui como griôs e lá como djeli. Com eles, Toni entendeu de fato como uma história contada pode servir principalmente para educar e divertir.

"Dizem que o conto é útil, fútil e instrutivo. O conto vem para explicar alguma coisa. Eles têm alguma utilidade, mas também precisa divertir. E é sempre instrutivo, sempre pedagógico. Os contos têm camadas, normalmente quando ouvimos pela primeira vez, atingimos as camadas mais superficiais. Agora, estudando, relendo e recontando, conseguimos chegar nas camadas mais profundas, assim surgem os ensinamentos", diz.

Amanda Bambu/UOL

Debruçando-se sobre os djeli — especialmente os da família Kouyaté, de Burkina Faso, como Sotigui, Hassane e Toumani Kouyaté, considerados os primeiros e mais importantes contadores da África Ocidental —, Toni despertou para outra prática: a de usar a rua como palco. "Eles preferem contar histórias em espaços abertos. Isso me encantou bastante, porque cresci em Aracaju, e os repentistas nas ruas sempre me fascinaram, a possibilidade de juntar gente em volta de uma roda para assistir algo", compartilha.

Ir para a rua fazer arte se tornou rotina. Um dos primeiros projetos que desenvolveu nesse sentido foi com o grupo teatral Africatarina, de Florianópolis. Toni ficou responsável pela montagem de uma peça baseada no estatuto da criança e do adolescente. Assim, levou 130 crianças para a rua. Na mesma cidade, fundou o MAR (Movimento dos Artistas de Rua) e a Trupe Popular Parrua, em parceria com outros artistas de rua, com o objetivo de produzir espetáculos nesse espaço.

Ou como quando estava estudando na Bahia, e ajudou a desenvolver o projeto "Cheganças", que o levava para cidades do interior do estado procurar contadores de histórias, para depois reuni-los em roda nas praças públicas para que mais pessoas pudessem escutar e conhecer o que os mais velhos da região tinham para ensinar.

Quando a gente fala, estamos doando nossos pensamentos para outras pessoas. Tem um ditado no Congo que diz: 'quem ouve normalmente é mais rico do que quem fala'. Eu não sei quanto tempo eu vou viver, mas, de qualquer jeito, as palavras que falo através dos contos ou das canções serão eternas se alguém me escutar.

Toni Edson, contador de histórias e curador de Ecoa

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