Ser Ponte

"Nada diferente pode sair se continuarmos fazendo tudo igual", diz Christiane Pinto criadora do AfroGooglers

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo Fernando Moraes/UOL

"Meus pais passaram por muitas coisas na vida deles, vêm de famílias bem humildes mas conseguiram dar pra mim e pro meu irmão um nível de educação que, infelizmente, é de mais qualidade do que a maioria das pessoas no nosso país têm acesso. Até a 8ª série estudei numa escola particular, pude estudar inglês durante a minha adolescência e tudo isso claramente fez muita diferença na minha trajetória. Me ajudou a abrir portas que hoje talvez não estivessem abertas se eu não pudesse ter tido essa formação.

Eu me sinto muito ponte. Já que eu tive esses acessos durante a minha vida e pude chegar aonde cheguei, não quero ser a única. Pelo contrário, sempre vou querer criar pontes e abrir portas para mais pessoas estarem junto."

Fernando Moraes/UOL
Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

"Escritório da Suécia"

Nos últimos anos, a comunicadora Christiane Silva Pinto esteve à frente de um processo de transformação no Google Brasil. Fundadora do comitê AfroGooglers, responsável por promover diversidade racial e inclusão na empresa de tecnologia, ela liderou ações de conscientização sobre a questão racial, de capacitação e recrutamento de pessoas negras.

Tudo começou quando cursava o último ano da graduação em jornalismo e decidiu aplicar para o programa de estágio do Google Brasil. No processo seletivo da empresa, candidatos não pleiteiam uma vaga específica, mas são encaminhados de acordo com seu perfil. Christiane, aspirante a jornalista, foi direcionada para a área de recursos humanos, o que quase a fez desistir.

"Eu tinha um super preconceito com RH, achava mega quadrado, careta [risos]", disse a Ecoa. "Mas depois pensei, bom, é o Google, vai ser uma experiência bacana. Qual não foi a minha surpresa quando entrei no RH e amei, justamente pela possibilidade de impacto na vida das pessoas", disse Christiane.

Na época em que ingressou na empresa, em 2013, ela se viu como uma das poucas negras no quadro de funcionários da empresa. Embora não haja um dado preciso sobre a proporção, a estimativa fornecida por Christiane é de que havia cerca de três negros entre os mais de 300 empregados àquela altura. Um para cada 100 em um país onde mais da metade da população é preta ou parda.

A experiência incômoda de ser praticamente a única mulher negra em um espaço não era novidade. "Minha vida inteira foi muito marcada por ser a única ou uma das únicas pessoas negras — e principalmente mulher negra — nos espaços que eu ocupava. Na escola particular, depois na escola pública técnica, que tinha uma prova pra entrar, na USP, nos trabalhos por onde passei. Mas, realmente, o lugar onde eu encontrei o espaço pra fazer algo foi no Google", contou.

Esse espaço se abriu de maneira mais evidente em 2014. Reconhecendo seu engajamento no tema e as ações que vinha desenvolvendo, o Black Googlers Network, comitê global do Google voltado a apoiar a comunidade e cultivar lideranças negras dentro da empresa, a convidou para iniciar e liderar uma célula no Brasil. Assim nasceu o AfroGooglers.

No início, mais uma vez, Christiane era a única pessoa negra do comitê. Eram cinco no total. "Contei muito com a ajuda de alguns poucos aliados que entendiam a importância de ser antirracista", disse. Hoje, 240 pessoas integram o comitê, entre negras e aliadas. O Google não divulga a proporção.

É claro que não estava certo ser uma das únicas [negras na empresa] num país como o Brasil. Tinha essa piada entre a gente de que parecia que você estava no escritório da Suécia

Christiane Silva Pinto , Gerente de Marketing no Google Brasil

Fernando Moraes/UOL
Christiane Silva Pinto

"Nada diferente pode sair se continuarmos fazendo tudo igual"

Quando o AfroGooglers começou a se organizar em 2014, o objetivo primordial do grupo era a conscientização interna em relação à desigualdade racial e ao racismo.

"Tem que estar todo mundo na mesma página para [uma empresa] poder se tornar esse lugar inclusivo. É uma questão de investimento de tempo e dinheiro, como com qualquer outra coisa que é importante para uma empresa. Nada diferente pode sair se continuarmos fazendo tudo igual.", disse Christiane

Aos poucos, Christiane foi se sentindo mais segura com a ideia de liderar. Ela se aproximou de figuras que são referência na causa, como a filósofa e ativista Sueli Carneiro e a empresária Luana Génot.

"Quando o comitê global me convidou pra começar [o AfroGooglers], eu pensava: 'Como eu vou liderar esse movimento? Eu acabei de sair da faculdade, sou super júnior, não venho da periferia. Vai que eu falo alguma coisa errada...'., contou a Ecoa.

Além de instruir pessoas que já estavam na empresa a respeito da questão racial, o comitê passou a desenvolver outros dois pilares. Recrutamento, com foco em contratar mais pessoas negras, e comunidade, voltado à escuta de outras organizações e apoio de seus projetos.

Atualmente, com a entrada de mais profissionais negros na empresa — embora não se saiba o número exato, uma vez que o Google afirma não divulgar dados locais de diversidade — o pilar do recrutamento do AfroGooglers se desdobrou em retenção, desenvolvimento de carreira e saúde mental.

Lá fora, a empresa de tecnologia também vem se movimentando. Em junho de 2020, já em meio à onda de protestos do movimento Black Lives Matter, o chefe-executivo Sundar Pichai anunciou medidas para melhorar a diversidade na liderança, prometendo chegar em 30% de representantes de grupos minoritários no alto escalão da empresa até 2025.

De outro lado, porém, a inteligência artificial desenvolvida pela empresa é alvo de críticas por ter viés racista e pesquisadoras do tema na empresa foram recentemente demitidas por falar a respeito.

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Institucionalização

Algumas das ações desenvolvidas pelo AfroGooglers nos últimos sete anos se tornaram programas fixos dentro do Google Brasil. Um deles é o Black Ads Academy, projeto que capacita estudantes, profissionais e empreendedores negros no uso da ferramenta Google Ads. A competência é bastante requerida no mercado de publicidade e marketing digital. Também é útil para impulsionar pequenos negócios, podendo beneficiar empreendedores negros.

O treinamento surgiu em 2015, em uma parceria do AfroGooglers com a Faculdade Zumbi dos Palmares.

"Claro que a questão [da falta de diversidade] não é a falta de profissionais negros, mas sim como a gente pode ativamente mudar esse cenário, entendendo todos os obstáculos que existem no caminho desses profissionais".

A primeira edição do programa teve a participação de 50 profissionais, estudantes de comunicação da Faculdade Zumbi dos Palmares. Com a pandemia, o programa foi realizado pela primeira vez no formato online em 2020, o que permitiu alcançar participantes do Brasil inteiro. De mais de nove mil inscritos, 3.700 alunos concluíram o curso. Desses, mais de 760 se certificaram no exame, número que corresponde a mais de 10% dos profissionais certificados em Google Ads no Brasil, todos negros.

Um banco de talentos com os aprovados foi criado e compartilhado com as agências e empresas parceiras do Google.

"Não tem mais a desculpa de 'não encontro profissionais negros'. Eles estão aí. A gente tem certeza porque ajudou a capacitá-los"

Christiane Silva Pinto, Gerente de Marketing no Google Brasil

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

"Esse espaço também é seu'"

Outra iniciativa que nasceu no comitê e se tornou uma prática regular é o oferecimento de bolsas de estudo de inglês para jovens profissionais negros. Em 2018, uma ação do AfroGooglers chamada Projeto Dandara ofertou 30 dessas bolsas.

Para a gerente de comunidade e conteúdo paulistana Aline Louise Luciano, beneficiada com uma das bolsas do Projeto Dandara, o curso foi um divisor de águas em termos profissionais. Ela participou também do treinamento Black Ads Academy. Além do acesso a essa capacitação, Aline destaca a importância do incentivo pessoal que recebeu de Christiane.

"Antes de conhecer a Chris eu achava esse universo de tecnologia, de empresa grande, de liderar projeto era algo muito distante. Quando a conheci, ela passou a ser uma inspiração do que eu queria ser. Sempre quando me via pessoalmente ou por e-mail ela me dava conselhos: 'esse espaço também é seu'.", disse Aline a Ecoa.

O comitê também participou da criação de um programa de estágio inclusivo, o Next Step, que retirou o requisito do inglês para estudantes negros. Há atualmente 21 estagiários negros na empresa, que ingressaram a partir da iniciativa.

A gente ainda é medido pela régua do homem branco: mostrar presença, falar do seu trabalho, sempre fazer aquele marketing pessoal, e às vezes ter que ferrar alguém para o seu trabalho parecer melhor.

Christiane Silva Pinto , Gerente de Marketing no Google Brasil

+ Causadores

Duda Gulman/UOL

Kombativa

Sheila de Carvalho aprendeu a usar a raiva como força motriz

Ler mais

Filha inspirou

Zé Pescador deixou a pesca predatória e se dedica à proteção ambiental

Ler mais

Anemia falciforme

Sheila perdeu seis irmãos por negligências e virou militante

Ler mais
Topo