60 dias de solidão

Conhecer o gelo antártico é assustador, mas cientistas o desbravam pelo futuro do planeta

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo Arquivo pessoal

Na Antártica é possível distinguir e pensar sobre a natureza do silêncio. Não há qualquer ruído a centenas de quilômetros. O silêncio, então, torna-se uma espécie de som cuja característica é sua ausência. "Qual é o ruído do silêncio?", costumam-se perguntar cientistas que vão até lá pela primeira vez. Com um pouco de concentração, é possível identificar que, na verdade, há nele um metrônomo tímido, incapaz de ser ouvido na cidade: os batimentos do próprio coração.

A sensação é descrita pelo cientista Francisco Eliseu Aquino, geógrafo, doutor em climatologia, diretor do Centro Polar e Climático, e estudioso do aquecimento global e da formação de ciclones no continente gelado - e de seus impactos no meio ambiente. Os estudos feitos por ele acontecem na Criosfera 1, uma base científica instalada a mais de 2.500 km da Estação Antártica Brasileira Comandante Ferraz e a 670 km do polo sul. Chegar lá tem uma distância equivalente a sair de São Paulo e ir até Buenos Aires pelo continente adentro.

O termo "base científica" faz a Criosfera parecer uma instalação com design high-tech. Na verdade, a base desenvolvida pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) foi inaugurada em 2012 e lembra mais um container vermelho e rodeado por pequenas barracas de acampamento - duas para dormitório, uma para cozinha e outra para o banheiro, sem chuveiro.

Na ausência de um hotel - ou qualquer outra infraestrutura -, é o lugar mais confortável para se hospedar. A base tem placas de energia solar e eólica para gerar energia elétrica e aquecimento. Há instrumentos meteorológicos para calcular a umidade relativa do ar, pressão atmosférica, irradiação solar, concentração de dióxido de carbono e a deposição de neve. Os dados são enviados por satélite.

A estrutura abriga cientistas e expedições que duram de 15 a 60 dias. É possível pelo menos pegar uma sombrinha lá dentro: durante o verão, os dias antárticos não têm noite. Faz sol durante 24 horas. Também é aconchegante contra o frio. Os pesquisadores já enfrentaram temperaturas que chegaram a - 47º C. A saída possível é derreter a neve para passar um café.

A base parece distante, como uma colônia espacial, mas os fenômenos que a flagelam estão chegando até nós de maneira cada vez mais drástica. O aquecimento da Terra tem provocado um degelo cada vez mais acelerado - este ano, a temperatura ultrapassou os 20ºC, um recorde histórico. E o que significa esse cenário? Que os ciclones devem aumentar em frequência e agressividade nos próximos anos, como o "ciclone bomba" que abalou a região sul do Brasil entre o final de junho e início de julho.

Basicamente, um ciclone extratropical é formado pelo encontro entre ar gelado e quente, que faz com que ele se movimente mais rápido. Para quem está no hemisfério sul como a gente, o giro é no sentido dos ponteiros do relógio.

Por exemplo: ar úmido e nuvens que chegam no sul do Brasil são formados a partir da umidade produzida pela floresta amazônica. O ar quente (da Amazônia ou Atlântico tropical) encontra esses ventos frios vindos da Antártica em uma área de baixa pressão. Só que lá no alto há ventos muito rápidos, conhecidos como correntes de jato, que intensificam ainda mais a movimentação do ar e a formação desse ciclone extratropical, o que aumenta os ventos e intensifica nuvens e tempestades. Resultado: um colosso giratório com até 3 mil km de diâmetro? Ou mais.

O "ciclone bomba" é a versão ainda mais intensa de um ciclone extratropical, quando a pressão atmosférica cai rápido demais em 24 horas. Além disso, ele tem uma estrutura vertical mais bem definida e fortalecida. Traduzindo: é daí que vem o termo "bomba".

O local de encontro entre os ares, no nosso hemisfério, fica na região sul da América do Sul, o que faz com que Sul e Sudeste do Brasil sejam propícios à formação e impacto dos ciclones. O problema é que o ar está cada vez mais quente, ou seja, o choque tem sido cada vez mais intenso e destrutivo.

O aumento da temperatura a cada ano também está promovendo uma reconfiguração mundial do fenômeno. Segundo o professor Francisco Eliseu Aquino, um lugar onde não há ciclones, diz ele, pode começar a recebê-los. A frequência e a intensidade também podem aumentar ou diminuir onde já são comuns.

Foi o que aconteceu com o ciclone bomba que matou 12 pessoas, arrancou janelas inteiras de apartamentos, destelhou casas, explodiu geradores e deixou milhares de pessoas sem energia elétrica em Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná, com prejuízo estimado pelo cientista em R$ 40 bilhões entre junho e julho. O número levantado por Eliseu leva em conta não apenas bens materiais que foram destruídos, mas também a estiagem na região, o impacto agrícola e urbano.

O acontecimento foi peculiar em sua devastação. Um ciclone extratropical costuma atingir o ápice de sua intensidade no oceano. Na ocasião, o ápice ocorreu no continente. Para espanto dos especialistas, outro ciclone bomba formou-se na costa brasileira após uma semana. Por sorte, chegou ao ápice no oceano, apesar de não tão distante da costa quanto de costume.

Mais uma vez, o aquecimento global é a explicação. Em 2016, ano mais quente registrado desde 1880, um ciclone formou-se na costa do Rio Grande do Sul e provocou ciclones com rajadas de até 100 km/h. A agressividade só foi vencida pelos dois ciclones deste ano.

A frequência de novo surpreendeu climatologistas experientes, que calculavam cerca de dois ciclone bombas ao ano por aqui. "Os ciclones estão mais organizados e mais intensos. É um sinal da mudança climática", diz Eliseu.

Segundo ele, os ciclones mais fracos estão dando sinal de diminuição. Ao contrário dos ciclones bomba. "Eu não me recordo de ter visto um fenômeno avançar com tanta intensidade recentemente", afirma o pesquisador. A frequência semanal de dois ciclones é um fenômeno típico da costa da Antártica, onde costumam acontecer uma vez por semana. É como se o país onde vivemos experimentasse viver sob o mesmo clima do continente gelado.

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Ciência e mitologia grega

Nascido no Rio Grande do Sul, Eliseu lembra que na infância assistia às nuvens, especialmente as cumulonimbus, e previa que elas logo desapareceriam em formato de chuva, como num movimento conscientemente coordenado.

Na mitologia grega, os ventos são seres conscientes e regidos por quatro entidades nos pontos cardeais. Bóreos é responsável pelos ventos na direção norte. No sul, Nótus indica a direção oposta. O pesquisador batizou de "Nótus" o centro de pesquisa que dirige, localizado no Rio Grande do Sul, em homenagem ao ser mitológico.

A admiração e o medo do professor aos fenômenos somente aumentaram de escala. "Os ciclones têm uma razão de existir. A Antártica não é mais fria e a Amazônia mais quente porque existem trocas contínuas de massa ar, tanto no polo sul como no norte, operadas com eficiência pelos ciclones extratropicais". Ou seja, o planeta é como um organismo vivo que se mantém em equilíbrio.

Quando está na Antártica com um grupo de pesquisadores, Eliseu é um dos responsáveis por interpretar o movimento das nuvens, calcular o clima enviar informações ao avião que os transporta para onde chama de "meio do nada". É preciso poupar recursos como gás de cozinha e alimentação caso o clima não permita que o avião pouse em segurança. Se houver uma emergência médica, uma aeronave pode levar dias ou até semanas para aterrissar.

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Gelo é como um grande arquivo do mundo

É difícil não questionar a própria mortalidade ao andar por um lugar como nenhum outro no planeta. Uma das inspirações dos cientistas antárticos costumam ser culturas que respeitam e convivem com o gelo, como o povo Inuit no hemisfério norte — o termo esquimó caiu em desuso por possuir uma carga pejorativa, que significa "comedor de carne crua".

"Como os Inuit, aprendi a interpretar quando foi a última vez que nevou só de ouvir o clec-clec da neve ao caminhar", explica. Quando a temperatura começa a cair para -20ºC, ele aposta em outros sentidos apurados na vivência com as camadas milenares de gelo: as pálpebras começam a grudar umas nas outras ao piscar e é preciso buscar por abrigo.

Na Criosfera 1, os cientistas fazem buracos no gelo para mapear a mudança de temperatura na região ao longo do tempo. Por exemplo: é possível confirmar se no último verão fez muito calor ao analisar o estágio de congelamento das últimas camadas de gelo. Uma simples vala pode apresentar camadas formadas há séculos. É este estudo que permite confirmar que esse processo se acelerou nos últimos anos e que, após a Revolução Industrial, o mundo esquentou como nunca antes. Basta ir cavando, extraindo e estudando.

É possível, por exemplo, levar o gelo ao laboratório e identificar quando houve uma erupção vulcânica a partir da análise de partículas que foram carregadas pelo vento até serem congeladas para a eternidade — se a crise climática permitir. Um artigo encabeçado por pesquisadores na Criosfera 1 identificou gelo de 400 anos atrás, no qual foi possível encontrar partículas vulcânicas vindas da Indonésia, na Ásia.

A partir do gelo também dá para descobrir a origem da água que o formou. Algumas vezes, ele pode ter sido formado por umidade vinda floresta amazônica, do Oceano Atlântico ou da própria Antártica. Caso uma umidade tenha uma origem muito distante, é possível concluir que o ar mais quente está esquentando e encontrando menos resistência para ir mais longe no continente.

O professor descreve as experiências como uma "análise de um arquivo natural" que equilibra nosso planeta. "Nós devemos apenas ler o que a natureza está nos dizendo", explica.

O vento na Antártica é sempre ao sul e sopra sem cansaço a uma velocidade média que é de três a quatro vezes maior do que em qualquer continente. Isso significa um vento congelante com velocidade média de 80 km/h. "É castigante", pontua o professor.

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Corrida à Antártica

No passado, as expedições até a Antártica promoveram uma corrida semelhante à ida até a Lua. Países como Rússia, Estados Unidos e Grã-Bretanha estimularam viajantes a explorar o continente e a chegar ao extremo sul do globo entre o século 19 e 20. O mito havia sido alimentado por volta de 1770, quando o capitão britânico James Cook desistiu, após três anos de tentativa, em encontrar o que suspeitavam ser um novo continente inóspito que lançava gelo pelo oceano.

Entre 1901 e 1904, o britânico Robert Falcon Scott tornou-se um herói nacional ao bater o recorde de distância no interior do continente. Em 1910, Scott arrecadou fundos para uma expedição que levaria os britânicos até o Polo Sul, ponto mais ao sul do planeta. A expedição foi um fracasso.

Pôneis foram levados para a expedição, mas o frio intenso obrigou a expedição a abandoná-los no gelo. Os trenós também foram descartados por não se adaptarem ao relevo. Restavam apenas cinco homens quando finalmente alcançaram o polo sul, em janeiro de 1912.

Apesar do esforço, não foram os primeiros. Uma equipe norueguesa liderada por Roald Amundsen já havia chegado ao local. Sem o título, ainda era preciso retornar para casa. Um deles foi "queimado" pelo gelo intenso e decidiu ficar para trás durante uma nevasca. Outro já havia morrido no início do retorno. Os três que sobraram, incluindo Scott, morreram sob um acampamento em março de 1912, a apenas 20 quilômetros de um abrigo. Os diários de viagem do grupo foram encontrados oito meses depois.

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Cientistas x Exploradores

Ao longo dos anos, cientistas tomaram o lugar dos exploradores — que eram até caçadores de focas — para estudar a fauna, o comportamento climático, geológico e de que forma o continente é alterado pela ação humana, mesmo inabitado (a Antártica é o único continente, por exemplo, sem a presença do novo coronavírus). A figura do cientista e aventureiro foi cultuada por cineastas como Werner Herzog, que os retratou no documentário "Encontros no Fim do Mundo".

Diferentemente do passado, as expedições atuais têm uma logística exigente. O transporte é feito por pilotos bem treinados para resgates arriscados e com baixíssima visibilidade. Durante alguns destes voos, o céu branco iguala-se ao chão e é preciso habilidade para não se confundir, manter a altitude e evitar o choque contra platôs e formações elevadas.

Em 2007, Eliseu foi de avião a um destes platôs com 2 mil metros de altitude na Antártica acessível apenas por voo. As aeronaves possuem esquis acoplados para derreter levemente o gelo e facilitar o pouso neste tipo de superfície.

Mas, como fazia muito frio, assim o que avião pousou, o chão descongelou e rapidamente. Com vento cortante na cara a cerca de 80 km/h, Eliseu e mais dois companheiros cientistas, um carioca e um chileno, precisaram empurrar o avião até a decolagem.

Seria a primeira de muitas infelicidades desta expedição. Assim que a pesquisa foi encerrada, o trio acionou o avião via satélite. Ao avistá-lo, porém, as nuvens fecharam-se e o piloto os perdeu na nevasca.

Há um fato que não ajuda em nada: lá nascem e morrem ciclones semanais. "Eu estou no mar, que tem iceberg, e ainda por cima é um cemitério de ciclones extratropicais", comenta Eliseu sobre a dificuldade do resgate.

O avião, então, deu voltas para ver se o tempo melhorava, mas anunciou que voltaria depois. Restava apenas um dia de gás disponível para os membros da expedição. Era preciso poupá-lo e torcer para o tempo melhorar.

Após três dias, a aeronave conseguiu levá-los em segurança. Para estar apto a este evento é preciso passar por testes físicos e psicológicos para não colocar a vida em risco. A máxima entre cientistas é a de que não vale a pena morrer para publicar um artigo.

"Mas quando apresentamos nossa pesquisa na Península Antártica durante um congresso britânico, fomos muito elogiados. Todos diziam que queriam ter feito essa pesquisa, mas fomos questionados: 'quem eram os loucos o suficiente para ir até lá?", brinca o cientista.

Mario Tama/Getty Images Mario Tama/Getty Images

Tudo está interconectado

De certa forma, os cientistas se arriscam em aventuras dignas de Júlio Verne para confirmar que somos responsáveis por desequilibrar a "consciência" da Terra, uma força visível e responsável por gerar vida.

Até mesmo as calotas de gelo soterradas há milhares de quilômetros mantém um diálogo permanente com árvores da floresta amazônica. A erupção de um vulcão indonésio está interligada à fumaça lançada por um comboio de carros em Porto Alegre.

"A atmosfera é plenamente fluida e livre. O desmatamento na Amazônia torna a América do Sul mais quente. Com isso, há interferência no sistema tropical inteiro, que se interconecta com todo o planeta", explica o especialista.

Não se sabe se cientistas brasileiros irão retornar para o Criosfera 1 no próximo ano. Até agora, o governo, por meio do Ministério de Ciências e Tecnologia, ainda não abriu um novo edital de pesquisa devido à pandemia do novo coronavírus. Há tensão sobre o futuro do programa.

"A nível individual e coletivo, interromper o aquecimento global deve ser considerado uma bandeira quando se elege um vereador, um deputado. Toda a gestão pública tem que estar comprometida com a mudança climática", defende o pesquisador.

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