A capacidade do brasileiro em lidar com os problemas, se adaptar a mudanças, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas - tudo aquilo a que se chama resiliência -está bem marcada no campo da pesquisa.
Não fosse assim, dificilmente o país estaria na briga para receber a vacina contra o coronavírus em pelo menos quatro testes já em andamento com pacientes brasileiros - fruto de parcerias de laboratórios internacionais com instituições de ensino e pesquisa no país.
A resiliência que também é traço de um povo ganhou "injeção de contraste na ciência durante uma pandemia em que mais de 125 mil vidas já foram ceifadas e suas famílias, afetadas. Todos os dias, mesmo após uma série de medidas que estrangulariam a pesquisa científica no país, por parte do governo federal e de governos estaduais, ainda são os pesquisadores que se debruçam a encontrar saídas para a atual crise e a insistir perante a opinião pública sobre a necessidade de se tomar por norte a ciência. É dela, afinal, que resultará a tão aguardada vacina.
Em julho passado, um estudo realizado pela SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) revelou que mais de 8.000 bolsas permanentes de pesquisa que eram oferecidas pela Capes, agência ligada ao MEC, foram cortadas. Segundo a SBPC, os cortes vão aprofundar as desigualdades regionais da ciência brasileira e atingir principalmente programas de pós-graduação em regiões mais pobres do país.
O governo João Doria (PSDB), em São Paulo, encaminhou um pacote de ajuste fiscal à Assembleia Legislativa determinando o repasse de superávits financeiros de autarquias e fundações ao Tesouro estadual. A medida atingiria, entre outros, a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo), a principal fomentadora de pesquisa acadêmica no estado. "A impressão que eu tenho é que esse projeto é devastador para a saúde e ciência no estado", classificou Mario Scheffer, professor e pesquisador da USP. "Nenhuma universidade perderá recursos para a realização das suas pesquisas", disse o governador.
Para o autor da ação que mapeia a "diáspora científica brasileira", os cortes e ameaças de cortes de verbas para pesquisa no Brasil "são extremamente lamentáveis".
"Não apenas é um desperdício de recursos já dispendidos, pois vários projetos têm de ser interrompidos pela metade, como é uma perda de oportunidades para o futuro. O atual teto de gastos [aprovado sob o governo de Michel Temer, do MDB] ou toda austeridade fiscal indiscriminada são políticas incompatíveis com qualquer projeto de desenvolvimento, mas são ainda mais cruéis quando implicam cortes de recursos em áreas como ciência, educação, saúde, saneamento", lamenta.
Por outro lado, o cenário não é 100% desolador, avalia o autor do mapa: "há muita gente na sociedade civil, fora da academia", enfatiza, "que admira o trabalho que esses pesquisadores fazem, acredita nos resultados publicados e confia que as melhores decisões devem ser tomadas com base nesses achados".
"Parece óbvio, mas fazer o quê se ultimamente temos que reafirmar o óbvio —'vacinas não matam', 'a Terra é redonda', 'vidas negras importam', e tantas outras? Eu pediria aos cientistas brasileiros que não se acomodassem com a situação atual e que se organizem para aumentar o poder de pressão da comunidade por melhores condições de trabalho. Para isso, o papel dos cientistas no exterior é essencial, como caixa de ressonância e para o efeito bumerangue", recomenda.
Pesquisadores fora do país engrossam o coro
"Se sequenciamos o genoma no meio de uma pandemia, com investimento e respaldo, quanto mais não pode ser feito?", questiona a cientista com pós-doc Andréa.
Para o professor Gustavo Monteiro Silva, a "formação durante a iniciação científica no Brasil é tão boa ou melhor que a norte-americana; a diferença começa a surgir na pós-graduação em adiante", observa.
"Enquanto a ciência não for vista como essencial em um plano de desenvolvimento nacional, enquanto os governantes não entenderem que investimentos em educação e ciência estão intimamente atrelados à economia, geração de empregos, inovação e aumento da soberania e autonomia nacional, essa migração vai continuar ocorrendo. É por isso que nações desenvolvidas investem tanto em ciência, porque entendem o retorno socioeconômico", analisa Silva. Na avaliação dele, são necessários "planos e iniciativas a longo prazo" capazes de formar massa crítica.
"Precisamos investir em infraestrutura, precisamos de autonomia na gestão das universidades e agências de fomento, e mais que isso, precisamos oferecer oportunidades que permitam a absorção desses jovens profissionais no mercado de trabalho."