Novelas por um Brasil melhor

Telenovelas incentivaram denúncias de agressão contra mulheres e ajudaram a localizar crianças desaparecidas

Jennifer Ann Thomas Colaboração para Ecoa, de São Paulo João Miguel Júnior/Divulgação

Espremidos entre os mais de 300 mil mortos pela covid-19 e um desemprego esperado de 14,6%, as brasileiras e brasileiros tiveram que se acostumar, também, a ter seus pequenos prazeres suspendidos pelo coronavírus. Estamos falando, entre eles, da suspensão das gravações das novelas, gênero televisivo favorito do país segundo pesquisas do Kantar IBOPE Media.

Houve algum alívio com a volta dos capítulos inéditos de "Amor de Mãe", no último dia 15. A novela de Manuela Dias, estrelada por Regina Casé, estreou em 25 de novembro de 2019 na rede Globo, mas foi interrompida por causa da pandemia em 2020.

Seus novos episódios refletem a crise atual e mostram as personagens Lurdes, Thelma e Vitória adaptadas às medidas de proteção contra a covid-19. Algumas cenas iniciais gravadas durante a pandemia chegaram a trazer informações desatualizadas sobre o vírus e ganharam uma advertência ao fim dos capítulos para reforçar cuidados da população.

A adoção do mais básico protocolo de segurança para evitar a disseminação da doença - o uso de máscaras - nas cenas do folhetim ilustra um dos necessários serviços prestado pelas novelas à sociedade: elas são poderosas ferramentas de educação e de comunicação sobre temas sensíveis, como a violência contra a mulher, a dependência química e as múltiplas orientações sexuais e identidades de gênero.

João Miguel Júnior/Divulgação
Folhapress

Glória Perez e as crianças desaparecidas

Há 26 anos, a novela "Explode Coração" (1995), escrita por Glória Perez, estava no ar e contou a história de Odaísa (interpretada por Isadora Ribeiro), mãe de uma criança desaparecida.

Naquela época, Ivanise Esperidião, moradora de São Paulo, tinha acabado de sofrer o maior baque de sua vida: sua filha Fabiana, então com 13 anos, desaparecera após passar o dia na casa de uma amiga. Depois de se cadastrar em uma instituição de apoio às mães em busca de crianças desaparecidas, Ivanise foi procurada pela produção da novela para gravar um depoimento que seria veiculado após um dos capítulos como parte de uma campanha.

Diante da projeção nacional, Ivanise acreditou que aquela seria a solução máxima e definitiva para reencontrar Fabiana. Não foi o que aconteceu.

"É pior do que a morte. Revirei essa cidade inteira atrás dela", contou a Ecoa. Segundo Ivanise, o tema não era debatido abertamente pela sociedade - ela não conhecia outras mães que compartilhavam a mesma situação e não sabia a quem recorrer para pedir ajuda. Foi durante a gravação do depoimento que ela conheceu outras mulheres com a mesma dor que a sua. Juntas, decidiram criar a associação Mães da Sé.

"A novela jogou luz sobre um assunto e começamos a receber apoio", explicou. Naquele ano, mais de 60 crianças foram encontradas, como reflexo da campanha motivada pela novela.

Mente por trás da trama de "Explode Coração", a autora Glória Perez defende que o caminho para chegar até o telespectador é por meio da emoção, mais do que por uma militância explícita ou didatismo. "Ao abordar determinadas questões contemporâneas, usar argumentos para defender uma ideia pode resultar em resistência", disse ela. "O espectador se põe na defensiva. Pela porta da emoção, ele é pego de surpresa", afirmou.

Glória, autora conhecida por colocar causas sociais nas tramas, conta que escrever sobre um assunto é uma maneira de refletir sobre ele.

"Sendo uma obra aberta, as novelas permitem fazer essa reflexão junto com o público", disse a Ecoa. Ela acredita que a característica tem a ver com o interesse por capturar as tensões de momentos específicos, curiosidade que a levou a cursar história na graduação.

"Foi exatamente a necessidade de compreender tempos diferentes, as mentalidades diferentes que movimentam cada época, que me levou a estudar história", disse.

Victor Pollak/Globo Victor Pollak/Globo

Pessoas trans e travestis

Reprisada no horário das 21h até o último dia 10, "A Força do Querer" (2017), também da autora Glória Perez, foi a primeira novela a dar destaque a um personagem abertamente transgênero.

Na trama exibida na rede Globo, Ivan Garcia (Carol Duarte), um homem trans, busca tratamento hormonal clandestino para fazer a transição hormonal e sofre uma violenta agressão física.

Além de Ivan, a novela contava a história do motorista Nonato (Silvero Pereira), que à noite se apresentava como a drag Elis Miranda.

Décadas antes, em "Explode Coração", Glória contara a história de Sarita Witt (Floriano Peixoto), uma travesti que fazia apresentações à noite e acaba a trama encontrando o grande amor no produtor de seu show. Na época, Floriano disse à Folha de S. Paulo que "não queríamos definir como drag queen ou travesti. A melhor definição para Sarita é sua alma feminina."

Segundo Glória, há uma preocupação com a empatia do público pela personagem que vive um conflito. "Quando uma mãe, como Joyce de 'A Força do Querer', sofre, nega e briga com a condição da filha, ela representa o estranhamento da maioria do público que nem sequer tinha ouvido falar em pessoas trans", explicou.

Para a autora, é essencial respeitar esse sofrimento, porque há outras pessoas que sentem o mesmo e acompanham as personagens.

"Fina Estampa"

Cena mostra a personagem Celeste (Dira Paes) pedindo ajuda após ser agredida pelo marido

Aumento de denúncias de violência contra a mulher

Desde o início das novelas, as personagens femininas tiveram peso essencial para os enredos das tramas. De acordo com a professora e coordenadora do Centro de Estudos de Telenovela (CETVN/ECA-USP), Maria Immacolata Vassallo de Lopes, um dos temas centrais na teledramaturgia é a representação da mulher. "Quando as histórias ainda eram restritas ao rádio, era a mulher que estava em casa e as escutava", explicou.

Em "Fina Estampa" (2011), a primeira telenovela a ser reprisada após o início da pandemia, a personagem Celeste (Dira Paes) sofria agressões físicas quando Balthazar (Alexandre Nero), seu marido, chegava em casa.

Três anos antes, em "A Favorita" (2008), Catarina (Lília Cabral) era vítima de violência doméstica. As agressões sofridas pela personagem iniciaram-se verbais e psicológicas e tornaram-se físicas. No ano em quem a novela foi exibida, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM) registrou aumento de 22,3% nos relatos de violência recebidos pela Central de Atendimento à Mulher em relação a 2007.

Na época, a então a ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Nilcéa Freire, creditava o aumento das denúncias à divulgação da Lei Maria da Penha, que entrara em vigor no segundo semestre de 2006. A própria Maria da Penha disse à Folha de S. Paulo, em 2008, que "Seria interessante se o autor da novela 'A Favorita' mostrasse os caminhos que a personagem Catarina [Lilia Cabral] tem para denunciar os maus tratos que sofre do marido. Uma boa oportunidade de mostrar como a lei é aplicada". Como disse a autora Glória Perez a Ecoa, as novelas são um espelho dos costumes e esperanças do momento vivido pelo Brasil.

Divulgação/Divulgação

Representatividade?

Uma constante crítica na teledramaturgia é sobre a falta de diversidade e de representatividade no elenco. É simbólico que em "A Cabana do Pai Tomás" (1969), considerada a primeira novela protagonizada por uma uma atriz negra, Ruth de Souza, o protagonista masculino fosse um homem branco com o rosto pintado de negro, caracterizando "blackface".

De acordo com uma pesquisa da Ação Afirmativa (GEMAA), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), das 162 telenovelas exibidas pela TV Globo entre os anos de 1984 e 2014 apenas 8% tinham como protagonistas atores e atrizes negros e pardos.

Em "Amor de Mãe" (2020), uma dessas exceções, o pequeno Tiago (Pedro Guilherme Rodrigues), filho de Vitória (Taís Araújo), foi detido durante um arrastão pelo fato de ser negro. A comoção com a cena foi tão grande que Taís Araújo postou sobre as mensagens que recebeu em uma rede social pessoal: "é duro, sim, é real demais, mas profundamente necessário expor o que acontece todos os dias há décadas nas cidades do nosso país."

Para Maria Immacolata, as produções televisivas podem avançar na questão da representatividade. "Há estereótipos de personagens, como o homossexual afeminado, o papel para o artista negro e até mesmo tipos de mulheres. Fala-se muito sobre a representatividade, mas ainda há espaço para avanços", afirmou para Ecoa.

A novela é uma espécie de praça onde o Brasil se reconhece e confraterniza

Glória Perez, escritora e autora de telenovelas

Sergio Zalis/Globo

Espelho do país

Há quase 60 anos, a extinta TV Excelsior apresentou a primeira telenovela diária brasileira e já havia ali retratos das desigualdades do país e temas que são tabu até hoje: em "2-5499 Ocupado" (1963), a trama girava em torna da história de amor entre uma presidiária que trabalhava como telefonista e um homem que se apaixonou por sua voz.

A partir da segunda metade dos anos 1960, Excelsior, Tupi, Record e Globo, as principais emissoras de época, passaram a investir no gênero. Para Maria Immacolata, o divisor de águas nos folhetins foi em 1968, com "Beto Rockfeller", da TV Tupi. "A novela tem o poder de entrar na memória cultural da nação e ela é também uma narrativa sobre a nação", disse.

Para Glória Perez, grande promotora de causas e mudanças na televisão brasileira, as novelas são uma porta de entrada para outros interesses, inclusive para a literatura. "Ela espelha os costumes, os sonhos e as esperanças daquele momento da vida do país".

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