Herança transatlântica

Como seria se o Brasil tivesse nascido de visão oficialmente afrocentrada e o que isso nos ensina pro futuro

Texto: Thaís Regina Ilustrações: Linoca Souza

Quão longe remonta a música que você escuta? E o jeito como você fala? Afinal, como você se vê no mundo? A cultura de quase cinco milhões de pessoas trazidas à força do continente africano encontrou no solo brasileiro terreno fértil para prosperar em fonemas, filosofias, religiões e ritmos.

Mais do que construir um país, essas ideias resistiram à violência ao firmar aqui seus valores civilizatórios. "Há no nosso país uma experiência africana que não é ensinada", dispara Aza Njeri, 35, pesquisadora de África.

"Aqui é muito comum as famílias morarem no mesmo quintal; o mais velho compra a casa, aí o filho mora em cima, ao lado, na frente e quando você vê, tem sete casas no mesmo quintal! Essa é uma lógica de construção matriarcal de quilombo: uma criança nesse quintal é matrigestada por todos. Todo mundo tem que ficar ligado se o portão está fechado pra criança não ir pra rua, se ela está fazendo uma coisa errada, ninguém vai chamar a mãe, educa-se ali, na hora", explica Aza Njeri.

Mas como será que estaríamos se essas raízes não tivessem passado por um processo de apagamento? Como seria o nosso presente caso a construção do Brasil tivesse sido oficialmente afrocentrada, ou seja, se tivesse a cultura africana no centro em oposição à eurocentrada, que olhou para a Europa como referência?

Uma relação de respeito com a natureza e o poder da palavra, por exemplo, estão entre as Leis de Maat, que norteavam a sociedade de Kemet, nome dado ao Egito antigo e berço da cultura africana. Nesta reportagem, Ecoa dedica-se a identificar algumas dessas características presentes até hoje na vivência brasileira e descobrir maneiras de pensarmos um futuro sustentável para todo mundo.

Acredito que o amor romântico ocidental tem que morrer para que a gente possa experimentar a pluriversalidade que é amar

Aza Njeri, filsósofa

O afeto

No entanto, dentro desses quintais, algo mudou radicalmente: a forma como amamos. "Das diferenças ao longo da humanidade, dos tempos, essa é brutal. Antes do Romantismo, não existia esse romance que a gente imagina, esse quê de romantizar as relações", explica Caroline Sodré, 26, mestranda em história pela PUC e especialista em diversidade da Farm. "É um assunto delicado porque a gente pode estereotipar os povos antigos, pensando que eles não amavam. Não é isso, a diferença é que esses povos não enxergavam as relações a dois como algo que deveria durar a vida inteira. As relações não eram de amor romântico. E é sensível porque mexe muito com a gente, joga nosso mundo de cabeça pra baixo."

Para ajudar o exercício de pensar como as sociedades ancestrais, Sodré trouxe uma palavra que por vezes ouvimos na música brasileira, de Nação Zumbi a Luedji Luna, e que se faz presente no tronco linguístico bantu, difundido no território que se estende ao sul do deserto do Saara. Malungo. "Quer dizer laço de irmandade. É por isso que no movimento negro a gente se chama de irmãos e irmãs, porque entendo meu próximo como alguém que veio da mesma semente que eu. Na época, a palavra malungo era empregada para todos, desde os mais jovens aos mais velhos. As pessoas tinham filhos juntas e, lógico, isso fortalecia o respeito e cuidado, mas não significava que a relação iria se tornar afetuosa, romântica ou que o filho se trataria de um laço de vida. O afeto é outro, de irmandade."

Mas isso não vale para todas as sociedades do continente africano. Segundo Njeri, depende de como é feita a construção da linhagem familiar (matrilinear ou patrilinear) — ou seja, se os filhos recebem o sobrenome da mãe ou do pai — e de como se dá o poder político social, com as mães da comunidade ao centro ou os pais (matriarcal ou patriarcal). "Tudo isso tem que ser considerado para discutir as relações. Tem um livro chamado 'Niketche: Uma História de Poligamia' [(2001), de Paulina Chiziane], em que a autora critica a colonização da poligamia; ela discute que a poligamia após a chegada dos europeus torna-se algo completamente diferente do que era antes."

A natureza

Quando Sodré relaciona o laço de irmandade à ideia de uma semente comum, ela se refere a um dos mitos de criação da África: adoração de árvores Baobá. A maior parte das teorias de criação envolve natureza e, segundo Caroline, é difícil pensar em que momento da história houve a cisão entre espiritualidade e meio ambiente. A relação de troca constante com a natureza também é central na cosmovisão dos povos indígenas. "As outras religiões que já passaram pela história, além de serem politeístas, conectam-se [diretamente] com elementos da natureza", comenta.

Outras árvores também são protagonistas de mitos de criação, como Iroko, variando de sociedade para sociedade. A escolha não era aleatória, trata-se de uma série de evidências e condições de melhor qualidade de vida a partir da proximidade com estas árvores. "Muitos povos ao sul do deserto do Saara vão cultuar a semente do Baobá com essa ideia de árvore da vida, a ideia de que a vida começou em uma semente de árvore", explica Sodré, "O reino Kush, que foi um dos maiores, vai se criar com muitos baobás em torno de si porque é uma árvore que, por sugar muita água do solo, necessariamente cresce perto de rios, então dava indício para a população de que existiam rios ali perto. Em uma região desértica, ficar perto do rio é essencial. As copas largas do baobá davam também a sombra, os frutos atraiam animais, que poderiam ser caçados. Naquele momento, aquela árvore não era só um símbolo da vida, ela era a vida."

Curiosamente, aqui no Brasil nós continuamos esse mito de criação, de maneira lúdica. Quando vamos explicar a uma criança como ela nasceu ou por que uma pessoa está grávida, a história da semente volta à cena. "As pessoas pensavam: se as árvores são assim e elas vêm de sementes, por que a gente não vem de sementes também?", "Naquela época, não existia ultrassom ou ferramentas que pudessem ver o que estava dentro da barriga das mulheres. Várias mães ainda dizem para seus filhos hoje: 'A gente plantou uma sementinha e nasceu você'. Mesmo sem querer, a gente propaga essa história oral e faz parte dessa oralidade sem perceber", diz Sodré.

Leis de Maat: De Kemet ao Brasil

  • Kemet

    Maat é uma entidade, uma deusa em termos ocidentais, um orixá em termos afrobrasileiros; ou seja, Maat é uma espiritualidade responsável pelo princípio da justiça. Em Kemet, antigo Egito (3.000 a 700 aC), acreditava-se que, quando uma pessoa morria, ela seria levada à Maat. Por sua vez, Maat faria as perguntas da justiça à falecida, que são as 42 leis de Maat. Depois de responder uma a uma, o coração da pessoa é pesado em um prato da balança de Maat, enquanto no outro é colocada a pena da cabeça de Maat -- a pena da justiça. Para os keméticos, o coração da pessoa deve ser mais leve que a pena para que possa continuar sua jornada.

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  • Grécia

    "A tradição greco-romana bebe em Kemet -- Sócrates, Aristóteles, Platão expressam isso em suas obras", diz Njeri, "A gente não sabe disso porque o Iluminismo, que é um dos pilares fundadores do ocidente, ou melhor, os filósofos iluministas, estou falando de Heidegger, Kant e Hegel, fazem esse apagamento dos escritos dos socráticos e dos pós-socráticos sobre as trocas com África, com reinos keméticos, assírios e núbios. George James [em 'O Legado'] vai na obra original e mostra as páginas em que as idas à Kemet são citadas."

  • Brasil

    "O 11º princípio de Maat fala muito sobre a escuta da palavra. Qual é a palavra que penetra seu coração, influencia seu ser? Às vezes, a gente fala palavras que só vão bater no outro anos depois", reflete Njeri. "Para a sociedade africana, a palavra é muito importante", prossegue a pesquisadora carioca. "A gente tem essa herança: quando dizemos 'a palavra tem poder' ou 'praga de mãe pega', sabe? Tudo isso gira em torno do campo da palavra, que é uma vibração sônica e espiritual. Já quando a gente pensa em Brasil 2021, o que mais vejo é a falta da palavra, desde passar o ano inteiro falando que a covid-19 é uma 'gripezinha' e há algumas semanas dizer 'Eu nunca falei de gripezinha'; sabendo que tem vídeos!"

É justamente porque houve essa troca que muitos símbolos de Maat estão na base da tradição jurídica ocidental: a balança, a pena. No entanto, as leis de Maat são pouco aproveitadas pelo Ocidente. Dentre os 42 princípios, a relação saudável com o meio ambiente e o compromisso com a palavra divergem do cenário contemporâneo ocidental.

Isso pode ser observado em

  • 11. Eu não fechei meus ouvidos para a verdade
  • 16. Eu não induzi as pessoas ao erro
  • 22. Eu não poluí a mim mesmo
  • 34. Eu não poluí a água

"Esse comportamento ocidental é completamente antagônico à perspectiva africana. Porque, em África, o que se fala é lei. Só que o pensamento ocidental não valoriza isso, pois aqui o que vale é o que se escreve", diz Njeri.

Por mais desafiador que seja o exercício imaginativo, como seria nosso país se apenas essas quatro leis fossem princípios formadores dos brasileiros?

Esse também é um elemento que pra mim é muito importante, entender que há uma imensa diversidade dentro da diáspora africana. Acho extremamente interessante que várias gerações diferentes e pessoas de várias disciplinas e de várias diásporas diferentes coloquem questões diferentes e criem respostas diferentes. Isso dá riqueza ao movimento.

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Grada Kilomba, artista, professora e psicóloga portuguesa a Ecoa

A sociedade

Gênero é também uma construção ocidental, com toda sua carga histórica e simbólica. Assim, a divisão de tarefas entre homens e mulheres na África antiga varia de sociedade para sociedade. Na civilização kemética, por exemplo, a posição de sacerdote, alta dentro da hierarquia social, era com frequência ocupada por mulheres. "Isso significa que as mulheres eram letradas e, mais que isso, eram as guardiãs do pensamento, da escrita", reflete Sodré.

A socióloga nigeriana Oyèrónké Oyewùmí explica como as relações a partir do matrimônio eram diferentes em Iorubalândia do que vemos no Ocidente: "por exemplo, a esposa do meu irmão também me chama de marido. Porque o marido em inglês [e outros idiomas] tem que ser homem, alguém que tem pênis. Mas no iorubá é uma categoria social, essa é a chave. Não é uma categoria biológica ou de gênero.

"Nessas grandes civilizações, como assírios, kushitas, keméticos e núbios, existiam moedas de troca, porém não eram unitárias. Ou seja, as pessoas negociavam com o que tinham, seja cabeça de gado, plantação ou uma moeda de troca comum entre o ocidente e o oriente: mulheres. O casamento era um contrato não romântico e muito utilizado para unificar reinos e regiões.

Já na Namíbia, que fica perto de uma das maiores regiões desérticas do continente, água e camelos passam a ser muito valiosos. Varia muito de região para região, mas a cultura europeia de basear a economia no ouro e metais preciosos, abundantes na África, não fazia sentido dentro daquelas comunidades. No geral, esses metais eram usados na construção civil pelo seu poder de resistência, mas não lhes era conferido alto valor.

O trabalho

Outra divergência é como encaramos o trabalho. Pensando em povos iorubás e bantus, dentro das cidades havia clãs de ofício. Enquanto a profissão é individual e não definidora do indivíduo, o ofício é a atividade em si, especializada e com conhecimentos passados de pai para filho. "Como os orixás são guardiões da cidade, era comum religião e ofícios andarem juntos; se você é da linhagem de Ogum, provavelmente a sua família trabalha com ferro; ou ainda, pensando nos bantus, se você é zulu, provavelmente seu ofício vai ser da mineração", exemplifica Njeri. Dessa forma, não há mobilidade de ofício, pois já é definido de forma ancestral.

Oyewùmí concorda. "Sua família, sua linhagem é mais importante do que se você é homem ou mulher. Assim, se a caça é a vocação de sua família, você, como uma mulher dessa família, tem acesso e oportunidade de ser uma caçadora bem antes de um homem de uma família que não é de caçadores", diz a socióloga nigeriana.

Imaginando esse Brasil possível e com tanto a resgatar de seu laço latente, perguntamos a Aza Njeri quais são as maiores heranças de África no nosso país. "Além do corpo, palavra, conjunto ético e estético, que são mais que heranças, são estratégias de sobrevivência, acho que África deixa o princípio do equilíbrio, a circularidade das experiências do viver: da nossa família, da capoeira, do samba, o jongo. A circularidade é um valor civilizatório que consigo ver nas experiências negras afrobrasileiras", responde.

"Outro legado muito importante é a ancestralidade, espiritualidade das religiões de matriz africana. Um terreiro de candomblé é um útero mítico civilizatório africano, o que a gente tem de África enquanto experiência viva. E o pretuguês, essa forma de se falar português, essa entrada da fonética e cadência lexical bantu na língua portuguesa, que vai fazer com que a gente fale: falanu, comenu, craudia, bicicreta, sabe?"

Da língua, do som, do jeito de se olhar e olhar a vida, as milhões de vidas africanas continuam a viver no solo afrobrasileiro que construíram, sem arrebentar o cordão umbilical que nutre África no Brasil.

Na antiguidade não existia essa bobagem de eu sou de humanas, eu sou de exatas. Há então a noção de um indivíduo global. Nas palavras não ditas, você consegue conectar os conteúdos. A sacerdotisa é médica, filósofa, matemática, historiadora, antropóloga, não existia a divisão

Caroline Sodré, historiadora

E se a educação no Brasil tivesse sido afrocentrada?

  • Esqueça a sala de aula

    A circularidade é um valor africano civilizatório, assim como as arquiteturas originárias de África são circulares. Logo, esse modelo tradicional de escola que conhecemos não existiria. Se houvessem salas, provavelmente seriam redondas

  • Corporalidade no centro

    Lousa grande, professor como detentor do conhecimento, estudantes enfileirados sentados? Muito difícil. Isso porque, segundo Njeri, as filosofias africanas entendem a experiência como parte fundamental, especialmente o corpo. Então, essa história de ficar horas sentado absorvendo conteúdo sem a experiência empírica não sustenta uma lógica afrocentrada

  • Nem de humanas, nem de exatas

    Em Kemet, os detentores e formuladores do conhecimento, os sacerdotes, ocupavam um lugar de prestígio na hierarquia de poder -- a qual seguia, de cima para baixo: faraó, nobres, sacerdotes, escribas, soldados, camponeses e servos. "Estes sacerdotes são guardiões da palavra, memória e sabedoria", diz Sodré

Dicas de leitura de Aza Njeri

  • "Amkoullel, o menino fula" (1992), de Amadou Hampâté Bâ

    O livro é um registro autobiográfico do autor, do nascimento à juventude. Nascido no território que hoje é o país Mali, em 1900, Amadou Hampâté Bâ ? ou Amkoullel, seu apelido de infância ? é considerado um dos mestres da tradição oral africana, o que tinge o livro com uma contação de histórias cheia de detalhes. Sua história traz à tona a formação de uma visão de mundo a partir das pessoas que lhe atravessaram e de uma forte veia islâmica, predominante na região. Além da riqueza histórica de Amkoullel, é interessante a dinâmica de poder sobre o território, na época uma colônia francesa, e cuja população atuou em uma grande resistência cultural.

  • "O Menino Negro" (1953), de Camara Laye

    Vencedor do prêmio Charles-Veillon, em 1954, "O Menino Negro" debruça-se sobre a infância de Camara Laye, em Guiné. Escrito no exílio do autor na França, é um livro carregado de afetividade pelo continente de origem. Para criar uma imersão do leitor em sua cultura natal, Laye lança mão de elementos fantásticos que dialogam com a autobiografia e, assim, formam o poderoso universo de sua infância. Neste sentido, a obra é um livro de memórias, mais do que um registro autobiográfico. Aborda-se a formação identitária de Laye, os rituais, lendas e espiritualidade de Guiné, tudo atravessado pelos poderosos laços familiares.

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