A senhora já deu um depoimento dizendo que enquanto o livro "Quarto de Despejo", da Carolina Maria de Jesus, que é o diário de uma mulher favelada, causa comoção para os leitores de classe abastada, você e seus familiares se sentiam como personagens da autora. Como foi a sua infância na favela de Pindura Saia?
Eu sou a segunda de nove filhos e o que Carolina vivia em São Paulo, nós vivíamos em Belo Horizonte. Do mesmo jeito. As dificuldades, falta de acesso... Tanto é que antes mesmo da gente sair da favela, no final dos anos 1960, minha mãe começa a escrever um diário que é igualzinho ao diário de Carolina. É parecido tanto fisicamente, porque ela escrevia em cadernos doados ou achados por aí, quanto do ponto de vista do conteúdo e do texto. Ela aprendeu a ler dentro de casa. Me dizia que aprendeu a olhar o relógio escutando o rádio. Então quando o radialista falava "dez horas", ela corria no relógio para olhar e fazer essa conexão entre o que era dito e o que ela via, assim, já sabia o que era dez horas.
Muitos dos seus livros trazem histórias que foram contadas pelos seus familiares. Como essa oralidade familiar te levou aos livros e à literatura?
A marca da oralidade que eu tenho na feitura dos meus trabalhos, como estética, tem muita relação com a minha família. Lá em casa a gente fala muito. Minha mãe era muito memorialista, meu tio velhinho falava tudo sobre a infância e juventude deles e minha tia gostava da disciplina de história, então me contava sobre os bandeirantes e outros momentos históricos. Como eu era curiosa, escutava o que devia e o que não devia porque eu prestava atenção na conversa. Sem sombra de dúvida, essa falação despertou a minha curiosidade para escutar o outro, ver até onde a fala vai e o que ela gera.
Para minha mãe, nos colocar na escola era um dever sagrado. Nós sempre estudamos e, à medida que eu fui crescendo, fui ensinando meus irmãos. O livro de Carolina, por exemplo, eu conheci em um movimento operário católico que tinha um olhar forte para os pobres e aí todos em casa leram. Como era um livro só [para a família toda], para adiantar a leitura, muitas vezes a gente se reunia em uma espécie de sarau e eu lia para todos.
Na última bienal do livro em São Paulo, Ana Maria Gonçalves, autora de "Um Defeito de Cor", disse que em um país onde a maioria da população é composta por mulheres negras, como é o caso do Brasil, a literatura feita por mulheres negras não é aquela que mostra "o outro lado da história", mas, sim, a que mostra a história de fato. Você concorda?
Com certeza. Esse "outro lado" é na perspectiva de distinguir uma história que é abafada pelas vozes do poder, que é da autoria de pessoas brancas, que nunca prestaram atenção no que tínhamos a dizer. Um dado bem relevante para indicar a importância da escrita das mulheres negras é quando, entre 200 títulos, o livro de Carolina Maria de Jesus é apontado como o livro mais importante para se entender o Brasil, no ano passado. Isso certifica a potência de nossa fala.
As nações que foram colonizadas têm tendência de se valerem por aquilo que os colonizadores falam, mas à medida em que outras vozes silenciadas explodem, elas apresentam o verdadeiro rosto da nação. Nós também deveríamos dar mais atenção à outra narrativa silenciada, que é a indígena. A voz indígena conta sobre um Brasil e um processo de resistência que nós não conhecemos. A história "oficial" nos ensinou que os "índios" eram preguiçosos e não estavam acostumados a trabalhar, e portanto, era preciso trazer os africanos. Foi assim, nós crescemos com esse estereótipo de que os índios eram maleáveis, tanto é que o Estado Brasileiro também tutelou o sujeito indígena por muito tempo.
Com isso, sem dúvida alguma, as vozes negras, indígenas e das mulheres pobres estão aí para nos contar o que de fato seria o Brasil.
Falando sobre o conceito de escrevivência, a senhora usa muito a figura de Oxum nos seus textos. "Olhos D'Água" remete bastante à orixá, pela relação com as águas, e a senhora já disse que se fosse para pensar em alguma simbologia para a escrevivência, ela seria o espelho de Oxum e de Iemanjá, que trazem essa relação de dentro para fora. A senhora segue alguma religião? Qual sua relação com a espiritualidade?
A minha espiritualidade vem de uma prática católica. Fui batizada, crismada e casei na religião católica. Contudo, vivi o que Leda Martins, Edimilson Pereira de Almeida e Helena Theodoro falam sobre o catolicismo negro, que é o catolicismo que venera os mitos católicos cristãos, mas apresenta marcas africanas. Logo, venho desse catolicismo que é marcado pelas congadas, os contos do Rosário, que chamam Jesus Cristo de Zambi, e onde a devoção de Nossa Senhora do Rosário, protetora dos sujeitos escravizados, é marcada por cânticos e batuques.
Com isso, acredito que minha fé é eclética. Meu nome é Conceição porque fui batizada no dia de Imaculada Conceição, mãe de Jesus. Conceição também tem confluência com Oxum na umbanda. Então, eu digo que respeito Imaculada Conceição, dialogo com Oxum e Iemanjá, tenho fé em Santa Rita de Cássia e não dispenso a companhia de Anastácia, a quem chamam de Escrava Anastácia e eu prefiro chamar de Rainha Anastácia. Já o candomblé, fui conhecer no Rio de Janeiro e afirmo que se me fosse dada anos atrás a oportunidade de escolha, eu escolheria o candomblé para viver intensamente. Mas hoje vivo do candomblé, ainda nessa mistura com a fé católica. Tudo isso me constitui.