RAP DA EXPERIÊNCIA

Aos 76 anos, Conceição Evaristo lança espaço físico no Rio de Janeiro e escreve letras de rap no tempo livre

Beatriz Mazzei Colaboração para Ecoa, no Rio de Janeiro (RJ) ZO GUIMARAES

A agenda está cheia. Live, entrevistas, sessão de autógrafos e, nesse ínterim, mais de 57km que distanciam a residência fixa de Conceição Evaristo, em Maricá (RJ), do Morro da Conceição, no bairro da Saúde, casa que ocupa para os compromissos na capital carioca. A alcunha do Morro nada tem a ver com o nome da escritora, mas, como a própria Conceição não acredita em coincidências,
costuma dizer que estava "escrito nas estrelas".

Nascida no dia 29 de novembro de 1946, Evaristo foi batizada uma semana depois, justamente no dia de Imaculada Conceição. A escritora também dialoga com Oxum, orixá brasileiro que, na umbanda, apresenta sincretismo com sua santa xará. De origem mineira, ela cresceu em Belo Horizonte (MG), na favela de Pindura Saia, grafada com "i" mesmo. Desde aí, já vê a importância da oralidade no texto. Cercada de figuras femininas na família, cresceu ouvindo histórias, entre elas, relatos sobre a escravização.

Na década de 1970, Conceição mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se formou em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e passou a trabalhar como professora da rede pública de ensino. Participante dos movimentos de valorização da cultura, é mestre em literatura brasileira e estreou na literatura, em 1990, na série "Cadernos Negros". Desde então, concilia academia e literatura com uma série de livros, alguns já foram traduzidos para o francês e o árabe. De sua escrita nasceu o termo "escrevivência", que reúne escrita e vivência, tendo a mulher negra como figura central.

Apesar de ser a protagonista desse modo de fazer literatura, a escritora reforça que a escrevivência se faz na primeira pessoa do plural: "a nossa escrevivência". Algo que ela define como a escrita fundamentada na subjetividade do corpo negro e da estética negra, que reafirma a identidade e resiste ao silenciamento.

É descendo pacientemente as escadas do Morro da Conceição, em um dia de céu aberto em pleno inverno, que Conceição Evaristo recebe a reportagem de Ecoa na porta da Casa Escrevivência, um espaço dedicado a preservar a biblioteca e a produção literária da escritora, que abre suas portas em sincronia com o Julho das Pretas e o Dia da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha. O espaço está localizado no Beco João Inácio, nas confluências da Pedra do Sal e do movimentado Largo de São Francisco da Prainha, que faz parte da Pequena África, região portuária onde está localizado o Cais do Valongo, porto que recebeu mais africanos escravizados das Américas e que é considerado Patrimônio Mundial pela Unesco desde 2017.

Zo Guimarães
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Ecoa - Como surgiu a ideia da Casa Escrevivência?

Conceição Evaristo - A Casa Escrevivência nasce a partir do momento em que eu começo a observar meu acervo de livros. Em Maricá eu tinha uma casa de dois andares que era uma verdadeira quinquilharia de livros e então comecei a me sentir incomodada porque acredito que o livro é uma matéria morta que só adquire significados a partir do momento em que é lido. O texto ganha novas autorias somente através de quem lê. Com isso em mente, a Casa Escrevivência vem para promover um acesso mais democrático às obras.

A primeira ideia era fazer uma biblioteca comunitária, mas a partir do momento em que o termo escrevivência ganha amplitude e se torna um conceito, decidi criar um espaço para colocar todos os livros, quadros e prêmios que já ganhei. A ideia é que sirva de polo catalisador dos meus textos e da minha memória para essas e as próximas gerações.

A senhora acredita que falta iniciativa pública para a criação de espaços voltados para autoras negras?

Sem dúvidas. Além da falta do incentivo público, e talvez por conta dele, também enfrentamos uma falta da nossa possibilidade de sonhos e perspectivas. O que me conforta é pensar que a geração mais jovem tem mais potência para cobrar esses incentivos. Eu acredito muito nessa juventude aguerrida que está se formando.

Em algum momento a senhora pensou em fazer essa casa em Belo Horizonte?

Gostaria de fazer também em Belo Horizonte, que é o meu local de origem. Inclusive eu brinco que eu quero que essa casa tenha puxadinhos. Hoje em dia, quando eu passo no bairro onde eu nasci, que era uma grande favela, acredito que seria uma reviravolta se eu conseguisse um dia fazer uma biblioteca ali. Outra possibilidade é levar esse espaço para Igarapé, município perto de Contagem, onde estou construindo uma casa para mim. Igarapé não tem nenhuma biblioteca, então também seria uma forma de levar acesso ao local.

A escolha por construir no Rio de Janeiro e especificamente no Cais do Valongo tem relação com a memória negra do local?

A minha vida profissional foi toda construída aqui no Rio. Tenho mais tempo de vida no Rio de Janeiro do que em Belo Horizonte, então é uma forma de presentear a cidade onde eu construí toda a minha vida profissional. Além disso, sem dúvidas, nós queríamos que a casa tivesse uma relação com territorialidade, então nossas pesquisas [em busca de um imóvel para a sede] foram os bairros que compõem a Pequena África: Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Praça Onze e Centro. Nós queríamos um espaço que tivesse relação com a memória negra.

Qual o seu sentimento pelo Rio?

O sentimento é de gratidão. Meu marido era carioca, minha filha é carioca. Aqui eu construí não só uma família sanguínea, mas muitos laços afetivos. Também foi no Rio de Janeiro que eu consegui o primeiro emprego naquilo que eu desejava, como professora. Não por coincidência, o primeiro local onde eu trabalhei ao chegar na cidade está a poucos metros da Casa Escrevivência. Para mim isso tudo é muito simbólico.

Recentemente estão discutindo sobre uma certa gentrificação da região da Pedra do Sal, com a massiva presença de turistas e eventos que descaracterizam o espaço. O que a senhora pensa sobre isso?

Acredito que nós, pessoas negras, carregamos uma memória ancestral coletiva de perda de território. Primeiro, quando nossos ascendentes são forçados a se espalhar pelo mundo afora, segundo, quando muitos de nós somos expulsos das favelas. Então, quando nós procuramos um lugar para a Casa, também foi nesse sentido de se apropriar de algo que é nosso. A memória negra sacraliza esse espaço. Quando nós, pessoas negras, ocupamos esse espaço, a relação é diferente do que quando vem uma pessoa de fora que apenas ouve falar que aqui pessoas escravizadas foram enterradas, mas não possuem relação com essa história. Portanto, acredito que estar aqui também é uma maneira de preservar a memória desse lugar.

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A senhora já deu um depoimento dizendo que enquanto o livro "Quarto de Despejo", da Carolina Maria de Jesus, que é o diário de uma mulher favelada, causa comoção para os leitores de classe abastada, você e seus familiares se sentiam como personagens da autora. Como foi a sua infância na favela de Pindura Saia?

Eu sou a segunda de nove filhos e o que Carolina vivia em São Paulo, nós vivíamos em Belo Horizonte. Do mesmo jeito. As dificuldades, falta de acesso... Tanto é que antes mesmo da gente sair da favela, no final dos anos 1960, minha mãe começa a escrever um diário que é igualzinho ao diário de Carolina. É parecido tanto fisicamente, porque ela escrevia em cadernos doados ou achados por aí, quanto do ponto de vista do conteúdo e do texto. Ela aprendeu a ler dentro de casa. Me dizia que aprendeu a olhar o relógio escutando o rádio. Então quando o radialista falava "dez horas", ela corria no relógio para olhar e fazer essa conexão entre o que era dito e o que ela via, assim, já sabia o que era dez horas.

Muitos dos seus livros trazem histórias que foram contadas pelos seus familiares. Como essa oralidade familiar te levou aos livros e à literatura?

A marca da oralidade que eu tenho na feitura dos meus trabalhos, como estética, tem muita relação com a minha família. Lá em casa a gente fala muito. Minha mãe era muito memorialista, meu tio velhinho falava tudo sobre a infância e juventude deles e minha tia gostava da disciplina de história, então me contava sobre os bandeirantes e outros momentos históricos. Como eu era curiosa, escutava o que devia e o que não devia porque eu prestava atenção na conversa. Sem sombra de dúvida, essa falação despertou a minha curiosidade para escutar o outro, ver até onde a fala vai e o que ela gera.

Para minha mãe, nos colocar na escola era um dever sagrado. Nós sempre estudamos e, à medida que eu fui crescendo, fui ensinando meus irmãos. O livro de Carolina, por exemplo, eu conheci em um movimento operário católico que tinha um olhar forte para os pobres e aí todos em casa leram. Como era um livro só [para a família toda], para adiantar a leitura, muitas vezes a gente se reunia em uma espécie de sarau e eu lia para todos.

Na última bienal do livro em São Paulo, Ana Maria Gonçalves, autora de "Um Defeito de Cor", disse que em um país onde a maioria da população é composta por mulheres negras, como é o caso do Brasil, a literatura feita por mulheres negras não é aquela que mostra "o outro lado da história", mas, sim, a que mostra a história de fato. Você concorda?

Com certeza. Esse "outro lado" é na perspectiva de distinguir uma história que é abafada pelas vozes do poder, que é da autoria de pessoas brancas, que nunca prestaram atenção no que tínhamos a dizer. Um dado bem relevante para indicar a importância da escrita das mulheres negras é quando, entre 200 títulos, o livro de Carolina Maria de Jesus é apontado como o livro mais importante para se entender o Brasil, no ano passado. Isso certifica a potência de nossa fala.

As nações que foram colonizadas têm tendência de se valerem por aquilo que os colonizadores falam, mas à medida em que outras vozes silenciadas explodem, elas apresentam o verdadeiro rosto da nação. Nós também deveríamos dar mais atenção à outra narrativa silenciada, que é a indígena. A voz indígena conta sobre um Brasil e um processo de resistência que nós não conhecemos. A história "oficial" nos ensinou que os "índios" eram preguiçosos e não estavam acostumados a trabalhar, e portanto, era preciso trazer os africanos. Foi assim, nós crescemos com esse estereótipo de que os índios eram maleáveis, tanto é que o Estado Brasileiro também tutelou o sujeito indígena por muito tempo.

Com isso, sem dúvida alguma, as vozes negras, indígenas e das mulheres pobres estão aí para nos contar o que de fato seria o Brasil.

Falando sobre o conceito de escrevivência, a senhora usa muito a figura de Oxum nos seus textos. "Olhos D'Água" remete bastante à orixá, pela relação com as águas, e a senhora já disse que se fosse para pensar em alguma simbologia para a escrevivência, ela seria o espelho de Oxum e de Iemanjá, que trazem essa relação de dentro para fora. A senhora segue alguma religião? Qual sua relação com a espiritualidade?

A minha espiritualidade vem de uma prática católica. Fui batizada, crismada e casei na religião católica. Contudo, vivi o que Leda Martins, Edimilson Pereira de Almeida e Helena Theodoro falam sobre o catolicismo negro, que é o catolicismo que venera os mitos católicos cristãos, mas apresenta marcas africanas. Logo, venho desse catolicismo que é marcado pelas congadas, os contos do Rosário, que chamam Jesus Cristo de Zambi, e onde a devoção de Nossa Senhora do Rosário, protetora dos sujeitos escravizados, é marcada por cânticos e batuques.

Com isso, acredito que minha fé é eclética. Meu nome é Conceição porque fui batizada no dia de Imaculada Conceição, mãe de Jesus. Conceição também tem confluência com Oxum na umbanda. Então, eu digo que respeito Imaculada Conceição, dialogo com Oxum e Iemanjá, tenho fé em Santa Rita de Cássia e não dispenso a companhia de Anastácia, a quem chamam de Escrava Anastácia e eu prefiro chamar de Rainha Anastácia. Já o candomblé, fui conhecer no Rio de Janeiro e afirmo que se me fosse dada anos atrás a oportunidade de escolha, eu escolheria o candomblé para viver intensamente. Mas hoje vivo do candomblé, ainda nessa mistura com a fé católica. Tudo isso me constitui.

Em diversas entrevistas a senhora disse que queria saber cantar, e ao Mano Brown, no podcast Mano a Mano, confessou que já rascunhou alguns raps. Existe chance da senhora seguir esse caminho como compositora?

Depois que o Mano Brown me disse, durante o podcast, que eu poderia escrever a letra e entregar para quem sabe fazer rap fazer a marcação, fiquei animada. Já escrevi vários raps, mas ao escutar o que eu fiz e ouvir os outros, não vejo no meu rap aquela marcação. Mas, quando ele me livrou dessa responsabilidade, acho que estou pronta para fazer rap.

Gosto de ver o que eu criei musicado. Já tive alguns poemas meus que viraram trechos de música e fiquei muito metida.

E o seu rap fala sobre o quê?

O rap que eu estou fazendo, venho chamando de "rap da experiência", que seria justamente uma pessoa mais velha contando todas as histórias e dizendo: para que me serve essa sabedoria se ela não for apropriada pelos mais jovens? A ideia é essa. Falar de legado.

Qual a semelhança entre o rap e a sua literatura?

A semelhança está no lugar social que dá origem, motivação e inspiração para esse texto ou música. Esse lugar social influencia tanto no conteúdo quanto na estética. Gosto muito de como as classes populares se apropriam da língua portuguesa. Adoro quando o Emicida diz: "É nois", que, na minha visão, é a mesma lógica quando uma personagem minha diz: "A gente combinamos de não morrer". É claro que eu sei que isso fere a gramática, mas eu queria ferir. Tanto é que me gera insatisfação quando as pessoas fazem correção dessa frase e dizem "nós combinamos de não morrer".

Tanto na minha literatura quanto no rap, não é só o conteúdo, mas a própria forma de dizer que expressa as insatisfações. É a gramática do cotidiano e a maneira de falar que vive dentro de uma urgência. Para mim, o linguajar rapper é uma urgência, uma necessidade, um desespero. Esse é o tempo que a gente tem para dizer, então vamos dizer, independente das normas.

ZO GUIMARAES

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