Da terra à terra

Em crematório para pets, localizado em reserva de 120 mil m², funeral se integra a ações de reflorestamento

Gabriel Vituri (texto) e Filipe Redondo (fotos) Colaboração para Ecoa, em São Paulo Filipe Redondo

Conhecer a mata junto a Christine Hueck é um exercício de contemplação. Em poucos passos, admiramos a copa de folhas largas de um cauassu, descobrimos um broto de araucária que aparece tímido entre outras espécies, notamos a recorrência de pequenas árvores de palmito-juçara que estão surgindo e encontramos a toca de um animal que não fomos capazes de identificar.

O santuário de Chris, ou Tine, como também é chamada, ocupa uma reserva de 120 mil metros quadrados de mata atlântica por onde circulam espécies da fauna brasileira que não são vistas com facilidade em outros lugares.

Na tela do celular, ela mostra bichos que são flagrados pelas câmeras com sensor de movimento que espalhou pela área. Em tom de brincadeira, mas nem tanto, a ambientalista diz guardar segredo sobre a fauna que vive na região, com receio de que pessoas mal-intencionadas perturbem a paz animal que reina ali.

Desde janeiro, Chris, de 58 anos, tem dividido sua energia entre os cuidados com a vegetação nativa e as demandas de seu projeto mais recente, o Ânimas, um crematório para pets de pequeno e médio porte que tem como princípios a preservação do meio ambiente e o acolhimento para o animal e para a família enlutada.

Filipe Redondo

É um acontecimento supertriste, mas as pessoas saem daqui tranquilas. É uma despedida integrada com a natureza, e a vida do seu gato, do seu cachorro, vai continuar sob outras formas.

Christine Hueck, ambientalista e veterinária

Filipe Redondo/UOL Filipe Redondo/UOL

Silêncio e mata nativa

A proposta do Ânimas é que as cinzas de seu pet sejam entregues em urnas artesanais, feitas em cerâmica pela própria Christine, e que possam ser plantadas junto a uma das dezenas de árvores nativas que ela cultiva em sua reserva: jatobá, manacá-da-serra, pau-brasil, araucária e jabuticabeira, para citar algumas.

Localizada em Itapecerica da Serra, a reserva de Christine Hueck é um reduto de tranquilidade. O silêncio da mata é entrecortado por sons de pássaros e insetos e, de quando em quando, se escutam ruídos de automóveis ao longe, que chegam de uma das estradas principais que dão acesso à vizinhança.

Na recepção do crematório, um espaço minimalista, de cores claras e sem adereços ocupando as poucas paredes, quem dá o tom e a cara para o ambiente é o verde da mata. Christine recebe os tutores enlutados, apresenta as urnas disponíveis para guardar as cinzas dos pets e, se for o desejo da família, é também dali que se pode assistir à cremação transmitida pelas câmeras instaladas na área técnica.

Para iniciar sua operação, o Ânimas enfrentou uma longa jornada de burocracias: foram quatro anos aguardando a aprovação da licença junto à Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo). Nesses três meses de atividade, o número de pessoas que procuram o local tem aumentado gradativamente, e a expectativa é de que ela consiga, em breve, reverter o alto investimento feito na estrutura do crematório.

O forno é ligado de uma a duas vezes por semana, a depender da demanda. Como iniciar o funcionamento envolve uma operação complexa, a cremação é feita quando já há alguns pets aguardando para o ritual.

Enquanto isso, o corpinho dos bichos fica em uma câmara fria, semelhante àquelas usadas para conservar cadáveres de seres humanos. No Ânimas, a queima é individualizada, garantindo que as cinzas não se misturem. A cremação de cada bicho leva cerca de uma hora, a depender do tamanho.

Aqui não tem cruz, símbolo, cada um escolhe a religião que quer. O meu templo é a natureza.

Christine Hueck, ambientalista e veterinária

Filipe Redondo/UOL Filipe Redondo/UOL

Um outro viver

"A Milka foi um sonho, a nossa conexão era muito forte. Tem gente que sonha em ter um carro, uma casa, um filho. Meu sonho era ela", diz Rachel Chen, 38. Sua cachorra a acompanhou em momentos decisivos, na saída da casa dos pais, no início da vida profissional, na busca pela independência financeira, no casamento. "Ficamos juntas por doze anos, fizemos muitas viagens, conhecemos meio Brasil", conta a médica.

Nos últimos tempos, porém, a saúde do animal começou a se deteriorar, até que mais recentemente chegou a um ponto irreversível. "Três dias antes dela partir, vi no Instagram um vídeo lindo sobre o projeto da Christine. De alguma forma eu sabia que a hora estava chegando", lembra.

Depois que Milka partiu, então, Rachel se preparou para a despedida. "A vida ia continuar sob outras formas", reflete. A proposta de associar o luto ao reflorestamento se alinhava perfeitamente ao que a médica sentia a respeito da vida. "Meu coração estava em frangalhos, mas tive certeza de que era a melhor escolha".

As cinzas de Milka serão plantadas por Rachel com uma muda de manacá-da-serra, que floresce entre o Natal, quando a cachorra nasceu, e a quarta-feira de cinzas, quando ela morreu.

Filipe Redondo Filipe Redondo

Sustentável e rentável

Enquanto andamos pelas trilhas da reserva do Ânimas, celebramos as espécies nativas ao mesmo tempo em que nos desvencilhamos das teias de aranha que se multiplicam nessa época do ano. Por mais de uma vez, Christine diz que ainda está se acostumando ao universo do empreendedorismo.

Durante toda a vida, ela trabalhou com animais, mas em uma realidade bem diferente: veterinária formada pela Universidade Rural Federal do Rio de Janeiro (UFRRJ), ela fez doutorado e pós-doutorado na Alemanha com um trabalho de pesquisa voltado para cavalos. Ainda hoje, uma vez por semana, faz atendimentos em um haras localizado no interior.

Nascida em São Paulo e criada no mesmo sítio onde vive hoje, Christine passou três décadas longe da fauna e da flora brasileira. Depois de concluir os estudos na Europa, foi para o México com o ex-marido, com quem teve seus três filhos.

Quando voltou para o Brasil, sete anos atrás, não encontrou espaço no mercado veterinário e buscou novos caminhos. O território de mata, adquirido por seu pai a preços baixíssimos numa época em que poucos investiam nos arredores de Itapecerica, era convidativo, mas Chris precisava inventar algo ali que fosse tão sustentável quanto rentável.

Considerou um restaurante, mas diz não saber cozinhar, "sou péssima nisso"; pensou em um espaço para crianças, com trilhas e aventuras, mas entendeu que esse público demanda cuidados muito específicos; cogitou até um asilo, "daqui a pouco eu mesma vou precisar", brinca, mas percebeu que sua vocação tinha muito mais a ver com plantas e bichos do que com gente.

"Eu não sabia que tinha esse talento de acolher as pessoas, porque elas chegam muito tristes. A gente cria um laço bem forte, jura amor eterno, mas quando acaba o ritual, eu entrego a urna e a pessoa vai para casa bem, com o processo já vivido", diz.

Filipe Redondo Filipe Redondo

Cruzada ambientalista

Neta do botânico alemão Kurt Hueck, autor de 'As florestas da América do Sul' e um dos pioneiros nos estudos sobre a flora latino-americana, Chris não chegou a conhecer o avô, que morreu, coincidentemente, no mesmo ano em que ela nasceu.

Hoje em dia, no campo, na cidade ou onde quer que esteja, ela volta sua atenção ora para o céu, onde avista e comemora o crescimento de árvores nativas, ora para o chão, onde procura sementes que irão se transformar em novas mudas cuidadosamente dispostas em seu viveiro.

Ao longo dos anos, de forma autodidata, a veterinária foi se enveredando para o lado da botânica, tornando-se uma conhecedora tanto de espécies em abundância quanto daquelas em extinção.

Essa cruzada ambientalista, ela reforça diversas vezes, não é nem um pouco solitária. Pelo contrário, Chris reconhece que seu trabalho só faz sentido coletivamente. Junto da ONG Preservar Ambiental, criada em 1991, com sede em Itapecerica da Serra, ela participa de ações de reflorestamento e distribuição de mudas nativas, além de oficinas e projetos de conscientização sobre o meio ambiente.

"Eu tenho mais ou menos 2.500 mudas aqui. E, sozinha, eu não consigo fazer nada", diz. A veterinária destaca os trabalhos de Elenita Oliveira Rodrigues, que lidera um grupo para a reciclagem e educação ambiental; da jornalista Adriana Abelhão, vice-presidente da Preservar, uma voz ativa e onipresente no município; e de Vitor Augusto, psicólogo e plantador de mão cheia, entre outros representantes locais.

No fim, a empresa é um meio para que eu consiga me dedicar ao fim, que é o plantio.

Christine Hueck , ambientalista e veterinária

Filipe Redondo/UOL Filipe Redondo/UOL
Filipe Redondo/UOL

Velório na mata

No dia em que Ecoa esteve no Ânimas, Christine aguardava a chegada de um cachorro para cremação, que estava programada para o final daquela semana. O traslado do corpo do pet, que é chamado de acolhimento, seria feito por seu filho mais novo, Gabriel, que está passando uma temporada no local e auxilia nas atividades do negócio.

Entre as famílias cujos pets seriam cremados nos dias seguintes, duas delas tinham solicitado que o ritual fosse precedido por uma cerimônia de despedida na Mata Atlântica, um conforto que faz parte do pacote do crematório.

Nesses casos, sempre com o apoio incansável de Clodo, funcionário que divide com Chris a responsabilidade por todas as etapas e procedimentos do crematório, o bichinho é colocado em um cesto e adornado com plantas e flores para um velório rápido, que costuma ocorrer em uma plataforma de madeira dentro da mata.

Nos últimos anos, enquanto aguardava o momento de finalmente iniciar as operações do Ânimas, Christine Hueck temia que suas atividades de ceramista e viveirista pudessem acabar sufocadas pelas responsabilidades de empreendedora, mas esse receio foi logo se dissipando.

Como acontece na mata, as paixões de Tine parecem se ligar umas às outras, numa simbiose que remete a um ecossistema em equilíbrio.

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