Sistema Obtuso

"Quando se cresce puxando água do poço sabemos que ela saiu da terra e não de uma torneira", diz Criolo

Giacomo Vicenzo Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP) Gil Inoue

Em uma floresta tropical um homem maltrapilho, magro, aparentemente perturbado e com barba longa joga seguidas vezes fósforos acesos no chão. Acende o seu cigarro, traga, despeja o líquido de uma garrafa pet no chão e, em pouco tempo, a densa vegetação arde em chamas.

A cena é a abertura do clipe da faixa 'Sistema Obtuso', de Criolo e Tropkillaz, lançado há pouco mais de quatro meses. Os versos miram a "geração trap"; narram uma degradação individual e urbana, com vício em drogas e em álcool, mas o vídeo tem como cenário a destruição intensa da natureza. Estão lá os impactos de severas mudanças climáticas: chamas na Amazônia, neve no Rio de Janeiro e um amontoado de lixo a se perder de vista em Brasília, em frente ao Palácio do Planalto. Parece uma sequência do vídeo anterior de Criolo, "Boca de Lobo", que termina com um enorme morcego sobrevoando a capital federal.

Criolo afirma que as cenas fictícias da arte visual retratada em sua obra, que conta com a direção musical do músico e produtor Daniel Ganjaman, são reflexo de uma preocupação mundial e nacional com a preservação da floresta amazônica. "O clipe mostra qual será o resultado se continuarmos nesse ritmo frenético de destruição. Irá sobrar apenas uma montanha de escombros humanos em um cenário apocalíptico. Para alguns pode soar como exagero, mas basta comparar como está o planeta hoje e como ele estava há 100 anos. O que estamos vivendo já é o cenário cruel do resultado deste abandono", diz o rapper a Ecoa.

Gil Inoue

"Sistema Obtuso", Criolo & Tropkillaz

Convoque seu Buda

Convoque seu buda que o clima está tenso, mandaram avisar que vão torrar o centro. Criolo, "Convoque seu Buda"

A voz de Criolo ecoa por temas que frequentemente são vividos às margens das cidades, mas sua nova produção traz uma preocupação em escala global. O rapper considera uma tarefa desafiadora falar de meio ambiente justamente para os que mais sofrem com as desigualdades sociais e econômicas.

"Falar de meio ambiente para pessoas e lugares, que não são nem começo nem fim, que são apenas meio para exploração do território é algo desafiador. Como falar de futuro para uma família que só tem água suja para beber?", questiona.

Mas encontra a saída por meio da sua arte. "Se você não parte desse manancial que é a mente de cada ser humano, não vai existir mudança total do meio ambiente global", diz.

Mas longe de apontar culpados, Criolo não esconde que 2020 (ano em que o mundo se viu abalado pela pandemia de covid-19 e por uma grande crise econômica) também lhe foi um ano difícil, assim como para todos, e enxerga que estamos vivendo uma esteira de situações que moldaram nosso cotidiano e rotina.

"É muito cruel apontar o dedo e culpar toda a humanidade. Quando não se tem acesso ao conhecimento fica difícil criar pontes de diálogo. Como dialogar com algo que nem sei que está acontecendo? ", indaga.

Gil Inoue

"A fome cansa o amor"

De fato, Criolo tem motivos para as preocupações que externa em sua obra e nem é preciso voltar um século para isso, como ele sugere.

Entre agosto de 2019 e julho de 2020, 11.088 km² de floresta foram derrubados na Amazônia. É o maior desmatamento na região da última década, de acordo com dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), no maior bioma brasileiro

Mas foi longe da floresta amazônica e de sua biodiversidade, no Grajaú, bairro periférico da zona sul de São Paulo, que se mesclava entre o urbano e o rural na época, que Criolo, 45, nasceu, viveu e aprendeu a cultivar o respeito pela terra.

"Quando se cresce puxando água do poço, você sabe que ela saiu da terra e não de uma torneira, então devemos ser gratos à terra por este presente", diz o autor de "Não existe amor em SP" a Ecoa

"Cresci num lugar de muito amor, mas sem saneamento básico, então era muito amor mesmo para seguir sem o mínimo para contenção de construção de dignidade estrutural cotidiana. A fome não é maior que o amor, mas às vezes, e muitas vezes, [a fome] o cansa", completa.

Cleber Souza/UOL Cleber Souza/UOL

Sustentabilidade para a quebrada?

Se no vai e vem de uma cidade grande pouco se tem tempo para si mesmo, o rapper lembra que a pauta do meio ambiente muitas vezes toma distância das pessoas e não consegue conversar e apresentar a dimensão real dos problemas para a maioria da população.

"Entendo que se fala de ecossistema, salvar o planeta, mas fica tão distante e de modo proposital para não se ter a emergência que essa situação exige", acredita.

Se por muitas vezes termos técnicos, nomes difíceis e outras questões complexas são usadas para defender e apontar os cuidados necessários com a natureza, Criolo levanta justamente a necessidade de uma comunicação mais empática para não isolar o assunto.

"Toda ação que se estabelece enfraquecendo e distanciando essas questões do todo cria uma espécie de redoma cruel. Daí a importância de, com empatia, dividir as informações e convidar à reflexão que vai reverberar numa energia linda de mudança de hábitos", diz Criolo a Ecoa.

Tenho escutado muito minha mãe. Sua fé tem me ajudado muito em mudanças profundas e a enxergar ilhas de paz no coração do outro que lhe estende a mão para uma nova oportunidade de se rever e o que rega os corações numa cidade gigante de um planeta que está morrendo a cada dia, tendo seus recursos naturais praticamente ignorados e utilizados de modo intranquilo sem a preocupação com as futuras gerações

Criolo, rapper

Alexandre Schneider/UOL

Ainda há tempo

As pessoas não são más, elas só estão perdidas. Ainda há tempo. Criolo, "Ainda Há Tempo"

Com pés no chão, o artista enxerga também as barreiras reais e ciclos que estruturam nosso modo de vida atual e que precisam ser rompidos para que a mensagem de salvar o meio ambiente não seja em vão. "Esse esforço sem o apoio das autoridades e das pessoas que lucram com este modo antigo de construir a sociedade e a economia faz com que o trabalho fique cruelmente difícil", diz.

"É fácil falar que a população tem a sua parte de culpa e eu concordo que todos temos nossa parte nisso, mas como fazer com que uma única corporação que impacta um estado inteiro, um país inteiro, mude seus hábitos?", disse Criolo.

Se a crise ocasionada pela pandemia de covid-19 nos trouxe a necessidade de pensar de forma mais coletiva, desde o uso simples e necessário da máscara por todos até a formação de redes de apoio e doação, Criolo lembra que a ideia de individualismo não existe na prática.

"Vivemos em comunidade, isso é algo indivisível, até a manutenção do individualismo requer outras pessoas para isso se manter de pé. Se vou comer, alguém fez a comida. Se você fez a comida, alguém plantou essa comida. Quem escolhe não ser solitário, mas ser sozinho no mundo depende de toda uma rede de apoio em ações e suporte à sua individualidade", diz.

Criolo revela que nos últimos tempos as experiências que o têm ajudado em mudanças em relação ao meio ambiente estão na escuta de sua mãe, Maria Vilani Gomes, educadora, filósofa e agitadora cultural no Grajaú. "Tenho escutado muito minha mãe".

Aruan Viola/ Divulgação Aruan Viola/ Divulgação

"Árvores, lagos, família, raiz"

Sem armas de fogo pra cantar, só palavras de fogo pra rimar. Criolo e Kunumi MC, "Demarcação Já, Terra, Ar, Mar"

A zona sul é a maior região da cidade de São Paulo. No extremo sul da zona sul, encontra-se o Grajaú, bairro natal de Criolo, imortalizado nos versos de "Grajaeux", e, também, Parelheiros, onde fica a aldeia guarani Krukutu, lar do rapper Kunumi MC.

Criolo,
que já gravou uma parceria com o rapper guarani Kunumi MC, enxerga no jovem indígena rimas fortes e um ensinamento de amor à terra e à sua história ancestral por meio da arte e da música. O rapper do Grajaú defende que o hip-hop também é um caminho para enfrentar a forma como estamos tratando o planeta em que vivemos.

Em conversa com Ecoa, em 2020, Kunumi refletiu sobre a preservação do meio ambiente e o fato de ser um indígena cantando rap: "Nós sabemos que quando preservamos uma floresta, teremos oxigênio pra viver. Então isso que é viver. Quando a gente vive na natureza estamos protegidos e quem protege a gente é essa mãe natureza, né? (...) Quando eu uso meu rap e minha literatura nativa eu uso para defender o meu povo. Então, o indígena, na visão do branco, já é muito ruim, mas quando se fala de um indígena artista é pior ainda." Criolo e Kunumi, duas crias da zona sul, originários dos limites entre periferia e zona rural, registraram, em 2019, a canção "Demarcação Já, Terra, Ar, Mar".

"Kunumi lembra do amor como única peça fundamental de salvação, mas também bate de frente com a crueldade de como estamos tratando nosso planeta e os originais da terra", diz Criolo. Enquanto o sistema obtuso segue em ciclo, Criolo e Kunumi tentam traduzir temas tão complexos quanto aquecimento global e mudanças climáticas para as massas. Ou, como diz o rapper de 45 anos, produzem "fermento pra massa".

Kunumi Mc gravando com Criolo

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