Céus em Queda

'Eleição vai definir futuro não só do Brasil, mas do planeta': artistas indígenas veem humanidade em risco

Lia Hama Colaboração para Ecoa, em São Paulo José Moreau @zedu_moreau

As eleições presidenciais do próximo domingo (30) serão cruciais para definir o futuro não apenas do Brasil, mas de todo o planeta. É o que afirma Daiara Tukano, artista, educadora e comunicadora indígena. "Outro dia assisti a uma live da Sonia Guajajara [deputada federal eleita pelo PSOL-SP] com o linguista americano Noam Chomsky. Ele aponta que essas eleições são fundamentais não só para os brasileiros, mas para toda a humanidade porque vai definir o futuro da Amazônia. Se elegermos um governo que ameaça um dos últimos biomas que sustentam o ecossistema do planeta, todos os seres vivos serão afetados", alerta a ativista, referindo-se à possibilidade da reeleição do presidente Jair Bolsonaro (PL).

Daiara é a curadora da exposição "Nhe'Porã: Memória e Transformação", em cartaz no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. A mostra propõe um mergulho na diversidade das línguas faladas pelos povos indígenas no Brasil e aponta que sua importância vai além da riqueza de léxicos e fonemas. "Estamos falando não apenas de línguas, mas de uma visão de mundo que faz com que os povos originários sejam apenas 5% da população mundial, mas preservem 80% da biodiversidade do planeta", destaca a artista do povo Tukano, da Amazônia.

Daiara, 40, é uma das expoentes de um grupo de artistas, pensadores e curadores indígenas que têm conquistado visibilidade em museus, universidades, palcos e galerias de grandes metrópoles brasileiras, como São Paulo e Rio de Janeiro. "Essa visibilidade não veio de graça, é resultado de um esforço coletivo dos indígenas de provocar, dialogar e articular com esses espaços reclamando o devido lugar de representação", afirma a curadora e artista. "Tivemos que invadir a Bienal de Arte de São Paulo e pressionar as instituições para que pudéssemos ser ouvidos", concorda Denilson Baniwa, curador da exposição "Ygapó: Terra Firme", em cartaz no Museu das Culturas Indígenas, na capital paulista.

José Moreau @zedu_moreau
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A arte indígena é pop

Em novembro de 2018, Denilson Baniwa caminhou pelos corredores da 33ª Bienal de São Paulo munido de chocalho, flores e um manto de onça. Ali, rasgou as páginas de um exemplar do livro "Breve História da Arte", de Susie Hodge, por não contemplar a produção de artistas indígenas. Apontando para uma fotografia antiga de um povo originário em exibição na mostra, o artista questionou: "É assim que querem os índios: presos no passado, sem direito a futuro? Nos roubam a imagem, nos roubam o tempo, nos roubam a arte".

A cena faz parte da performance Hackeando a 33ª Bienal de Artes de São Paulo, um protesto que não estava previsto pela organização do evento. "Eu e o Jaider Eisbell [artista da etnia Macuxi morto em novembro de 2021] invadimos aquele espaço para forçar a visibilidade dos artistas indígenas", explica Denilson.

Funcionou: na Bienal seguinte, a arte indígena contemporânea ocupou lugar de destaque e Jaider foi convidado para ser o curador da exposição "Moquém Surari: Arte Indígena Contemporânea", que integrou a programação da mostra. Duas obras de Jaider, "Carta ao Velho Mundo" (2018-2019) e "Na Terra Sem Males" (2021), foram adquiridas pelo Centre Georges Pompidou, de Paris.

Essa cultura [indígena] é completamente distinta do modelo de produção e consumo que está por trás dessa crise ambiental que vivemos hoje, de mudanças climáticas e da sexta extinção em massa de espécies do planeta.

Daiara Tukano, artista, educadora e comunicadora indígena.

Nascido em Barcelos, no interior do Amazonas, Denilson é indígena do povo Baniwa. Aos 38 anos, ele vive e trabalha em Niterói (RJ). Além de curador e artista visual, é publicitário e articulador de cultura digital e hackeamento.

"Meu trabalho parte do entendimento da presença indígena a partir de hoje, não como uma representação de indígenas presos num passado colonial e romantizado. Muita gente no Sudeste acha que os indígenas só vivem na floresta, nus, caçando e coletando, e não têm contato com o mundo externo e as novas tecnologias. Eu trabalho para combater esse estereótipo e mostrar a produção indígena contemporânea", diz.

Ciete Silvério Ciete Silvério

Do Xingu para a Paulista

Denilson também foi convidado para participar da exposição "Xingu: contatos", que será inaugurada no próximo dia 5/11 no Instituto Moreira Salles (IMS), na Avenida Paulista. Com a exibição de fotografias, curtas-metragens e obras realizadas por indígenas, a mostra, que tem entre seus curadores o cineasta Takumã Kuikuro, aborda a trajetória da região do Xingu do século 19 até os dias de hoje, passando pela criação do Parque Indígena do Xingu, em 1961. Denilson vai criar uma obra inédita a partir de imagens publicadas pela revista Cruzeiro entre 1969 e 1977, durante o regime militar.

"O deslocamento de pessoas indígenas para assim dominá-las faz parte da minha história de vida. Minha família é da região do Rio Negro, no Amazonas, onde ocorreram os 'descimentos' indígenas, expedições nas quais indígenas eram capturados para o trabalho escravo e a catequização forçada nos séculos 17 e 18. Quero contar a relação entre o que aconteceu no Xingu nos anos 1960 e 1970 e o que aconteceu no Rio Negro em outro tempo histórico", conta o artista.

Do mirante do IMS Paulista poderá ser visto um mural de autoria de Wally Amaru, artista xinguano de 41 anos. A obra na empena de um prédio na rua da Consolação traz grafismos tradicionais usados em pinturas corporais dos povos do Xingu, em Mato Grosso. Segundo Wally, o desenho no alto simboliza a borboleta e o que fica abaixo, a cobra. A cor preta representa o jenipapo e a vermelha, o urucum.

O artista conta ter perdido a mãe, um cunhado, um primo e uma tia mortos pela covid: "A pandemia chegou com força e não havia remédio e atendimento médico na nossa região", diz Wally, morador da aldeia Afukuri, no Xingu.

Quero que as pessoas olhem para essas pinturas e valorizem a nossa cultura que está ameaçada pelo agronegócio. Os fazendeiros jogam veneno na lavoura, que polui os nossos rios, de onde vem a água que bebemos e os peixes que nos alimentam

Wally Amaru, artista

Ciete Silvério Ciete Silvério

Diversidade é vida

Ativista pelos direitos dos povos indígenas, Denilson acha impossível ser artista indígena no Brasil de hoje e não ser ativista. "Não tem como fugir disso: quem é indígena precisa usar todas as ferramentas possíveis para comunicar e denunciar a situação de violência pela qual passamos."Tanto Denilson como Daiara Tukano saúdam a recente eleição de Sonia Guajajara (Psol-SP) e de Célia Xacriabá (Psol-MG) para a Câmara de Deputados. "São deputadas que vêm do movimento indígena nacional. A Sonia tem um histórico de gestão. A Célia Xacriabá tem experiência no campo de educação, trabalha para articular uma rede de mulheres indígenas. São pessoas de muito preparo para representar as nossas lutas e demandas e ocupar o Congresso Nacional", avalia Daiara.

Toda arte indígena é política e ativista mesmo quando não foi feita para isso porque a nossa vida é ativista e política. É uma luta diária por sobrevivência

Denilson Baniwa, artista

Daiara destaca a importância de ouvir as lideranças indígenas para proteger seus territórios e frear as mudanças climáticas provocadas pela ação humana. "Nossos sábios estão alertando sobre isso há muito tempo. Touro Sentado [líder indígena da etnia Sioux que viveu no século 19 nos Estados Unidos] já dizia aos brancos: 'Prestem atenção: uma hora a terra seca, o rio acaba, os animais morrem. Vocês acham que os recursos da natureza são infinitos, mas não são'. O mesmo faz [o líder yanomani] Davi Kopenawa quando fala sobre a 'queda do céu'."

Segundo a ativista, é preciso aprender com os povos indígenas, que sabem viver em harmonia com a natureza. "Quando impomos a violência para acabar com a diversidade, nosso fim está anunciado. Na natureza, cada um tem o seu lugar. Nós, como povos originários, também merecemos o nosso", acrescenta.

"Será que as próximas gerações terão que procurar hologramas para saber o que é uma anta, uma arara ou um jacaré porque esses animais estarão extintos? Será que só existirá leite sintético? Temos o dever de deixar um lugar melhor para os nossos descendentes, sejam eles indígenas ou não indígenas."

José Moreau @zedu_moreau José Moreau @zedu_moreau

Onde ver as exposições

  • "Nhe'Porã: Memória e Transformação", até 23/04/2023 no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Ingressos e horários no site.
  • "Ygapó: Terra Firme", no Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo. Ingressos e horários no site.
  • "Xingu: contatos", abre no dia 5/11/2022 e vai até 9/04/2023 no Instituto Moreira Salles, em São Paulo. Ingressos e horários no site
José Moreau @zedu_moreau José Moreau @zedu_moreau

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