A crise é da água?

Modelo de grandes cidades escondeu rios e tratou água como mercadoria, mas ainda é possível reverter o cenário

Rodrigo Bertollotto De Ecoa, em São Paulo Apu Gomes/Folhapress

São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte pararam neste ano de 2020. E isso foi antes do coronavírus chegar às terras brasileiras. Mas agora quem é que lembra das enchentes de janeiro passado, fora aqueles que foram diretamente atingidos por elas?

O excesso ou a falta de água (lembra da seca e do desabastecimento dos anos 2014-15 na Grande São Paulo?) nas grandes cidades brasileiras revela a nossa dificuldade de lidar com o elemento que compõe 70% do corpo humano e que é o mais essencial para a nossa sobrevivência. Especialmente agora, época em que lavar as mãos com água e sabão se tornou assunto obrigatório e a melhor forma de evitar contaminação em meio a uma pandemia como a do coronavírus.

O tipo de desenvolvimento urbano acelerado que o país adotou a partir da década de 1950 escondeu os rios em galerias subterrâneas e misturou a água limpa com esgoto doméstico e dejetos industriais. Mas essa mentalidade aos poucos está mudando. "A água não tem crise. A crise somos nós", resume José Bueno, arquiteto social que fundou o grupo Rios e Ruas e sonha com fontes e ribeirões reaparecendo nas metrópoles.

Em 1992, a Organização das Nações Unidas estabeleceu 22 de março como o Dia Mundial da Água e divulgou a Declaração Universal dos Direitos da Água, que trata a substância como "o patrimônio" e "a seiva" do planeta. O problema é que, de lá pra cá, a água tem virado cada vez mais um patrimônio com donos, ou seja, uma mercadoria. O aumento da poluição e o desperdício criaram uma escassez programada de algo que era abundante - consequentemente expandiram um mercado. Uma biografia é emblemática desse cenário: o norte-americano Michael Burry fez fama e fortuna prevendo a crise financeira de 2008 (história retratada no filme "A Grande Aposta") para depois investir seus lucros em empresas de abastecimento de... água.

É preciso olhar para as tragédias com outro olhar. Não com o de vítima. Chega de falar 'tá tudo bem' toda hora. É preciso dar um basta. É preciso aprender com as calamidades, sejam enchentes, secas ou pandemias.

José Bueno, arquiteto social que fundou o grupo Rios e Ruas

Rodrigo Bertollotto/UOL

Rio concretado

Iquiririm significa em guarani "rio silencioso". Esse é o nome do curso d'água que nasce em uma das bordas da Cidade Universitária da USP, passa pelo muro que faz divisa com o bairro vizinho da Vila Indiana e depois é silenciado por um bueiro, que engole as águas límpidas para através de galerias subterrâneas devolvê-las acinzentadas no falecido rio Pinheiros. Antes de se tornar invisível, o rio Iquiririm banha um lago com peixinhos coloridos e irriga um jardim alimentício de taiobas, capebas e lírios do brejo em uma privilegiada calçada de São Paulo.

"Sonho em abrir um trecho do rio, fazer uma pontezinha para ele atravessar a rua e poder deslizar por um quarteirão a céu aberto", conta o vizinho Bueno. "A cidade cresceu com as casas dando as costas para os rios: era o lugar de jogar o lixo. Os moradores pediam para as autoridades para canalizar. Agora há uma mudança de mentalidade", argumenta Bueno.

Os projetos de despoluir os rios paulistanos já consumiram bilhões de reais (mais de 13 deles) ao longo de quase três décadas. Mesmo assim, as águas malcheirosas continuam como marca da cidade. Exemplos bem sucedidos pelo mundo não faltam. Londres, Paris, Lisboa, Seul, Amsterdã, Copenhagen e Portland limparam seus rios e revitalizaram a paisagem. Nova York, por exemplo, recentemente destapou vários rios e criou 9.000 jardins de chuva, que captam, filtram e limpam a água (4.000 já estão implantados).

Como seus antecessores, o atual governador de São Paulo, João Doria (PSDB), também é adepto das promessas autolimpantes: diz que o rio Pinheiros não estará mais sujo em 2022, ano de eleição. Já no Rio, o governador Wilson Witzel condicionou a limpeza do rio Guandu (principal provedor da água tratada da cidade) à privatização da Cedae, a companhia de água e esgoto do Estado. Em Belo Horizonte, a lagoa da Pampulha, declarada patrimônio da humanidade segundo a Unesco, segue poluída — em janeiro ultimo, desbordou.

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Na praça Conchita de Moraes, no bairro de Vila Guilherme, zona norte de São Paulo, os vizinhos represaram a água de uma vertente e fizeram um lago para praticarem pesca. Na praça das Corujas, na Vila Madalena, zona oeste da capital, a comunidade montou uma horta que tem rega natural só aproveitando o fluxo da nascente de lá. Há também exemplos de nascentes e cursos de água usados até para lavar carros.

"O rio é um meio para falar de uma cidade diferente. Isso envolve muito a população, porque a discussão do espaço público interessa a todos, independentemente de viés político ou religioso. Temos que acabar com a visão de o que é público não é de ninguém: ele é nosso", sentencia o geógrafo Luiz de Campos, também fundador do Rios e Ruas.

A volta dos rios ao cenário urbano também pode influir no clima. "Preservando as nascentes, arborizando sua área e reabrindo os rios, você reduz a impermeabilização das cidades, as enchentes e as ilhas de calor que tanto concreto cria", afirma a engenharia ambiental Fabiana Lucena, integrante do coletivo Salve o Saracura, criado em 2019 para preservar o rio que nasce no espigão da avenida Paulista e corre em direção ao centro antigo.

Lucas Lima/UOL Lucas Lima/UOL

E eu com isso?

Segundo o Código Florestal Brasileiro, uma área de nascentes é considerada uma APP (área de preservação permanente). Mas como aplicar isso em uma região altamente urbanizada, onde é mais fácil ver um prédio construído em cima da nascente bombeando água límpida na sarjeta ou anunciando em placa na fachada a utilização de "água de reuso" para sua limpeza?

Rafael Funari, especialista em direito ambiental e também integrante do Salve o Saracura, acredita que dá para criar "miniAPPs", que não necessariamente reflorestem 50 metros do entorno da mina d'água, como está na legislação. "Mesmo que seja formada por fragmentos de vegetação, é importante preservar esses trechos porque eles têm importância ambiental e histórica", diz. Uma das nascentes do rio Saracura já é cenário de luta, afinal, uma construtora anuncia o erguimento de dois prédios no terreno.

"As pessoas acham que os problemas da cidade são enormes e só políticos, empresas e especialistas podem tratar deles. Não é assim. As iniciativas só ocorrem por pressão social, e os gestores correm atrás das demandas. Meu trabalho é empoderar as pessoas", afirma Bueno, que logo emenda seu slogan: "Temos que sonhar grande, fazer pequeno e começar logo"

Silvio Santos e a caixa d'água

"O bairro do Bexiga era a caixa d'água que alimentava o centro de São Paulo e seus chafarizes." Dessa forma Rafael Funari define a importância escondida de rios como o Saracura e Itororó, que desaguam no Anhangabaú. O Saracura nasce perto da avenida Paulista e atravessa o bairro do Bexiga. Já o Itororó foi encoberto pela avenida 23 de Maio.

"O Saracura também tem um peso histórico, porque na sua beira havia um quilombo, cuja herdeira atual é a escola de samba do Vai-Vai", conta Funari. Hoje, só quando alaga a região é que as pessoas se dão conta que ali existe um rio.

Para Fabiana Lucena, do coletivo Salve o Saracura, a especulação imobiliária é a principal ameaça para a preservação das nascentes e rios. "Ela vem em uma velocidade muito rápida. A gentrificação do bairro está acabando com as áreas verdes e expulsando os moradores tradicionais." Um caso exemplar é a luta para criar o Parque do Bexiga entre o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, diretor do teatro Oficina, e o apresentador Silvio Santos, que queria construir três edifícios no terreno. A Câmara Municipal aprovou a criação, mas o prefeito, Bruno Covas, vetou. O projeto do parque abre o soterrado rio Bexiga para deixá-lo novamente ao ar livre. Mas, por enquanto, ele continua sufocado.

Arquivo Rios & Ruas/Divulgação Arquivo Rios & Ruas/Divulgação

Caminho para Machu Pichu

É difícil de acreditar que um morro no bairro do Butantã era parada obrigatória dos índios a caminho da cordilheira dos Andes. Mas a pouco conhecida história das rotas do Peabiru está atrás de muros e portões de um terreno em disputa judicial na sempre difícil luta de criar parques onde o poder econômico quer construir prédios.

"Nossa campanha já dura quase 20 anos. Começamos em 2001. Mas tenho fé que a fonte do Peabiru vai ser um parque que vai atrair muitos turistas." Assim Maria Cecília Pelegrini, ex-diretora da Associação Cultural da Comunidade do Morro do Querosene, bairro vizinho do futuro Parque da Fonte. Ela conta que a bica era usada pelos moradores até a década de 1970, mas aos poucos foi murada.

"Desde antes do descobrimento, esse era um terreno onde os guaranis se abasteciam de água em seu caminho até encontrar os incas. Depois, os bandeirantes passaram por aqui. A área tem que voltar ao que era: algo público", afirma Pelegrini. O terreno foi decretado como de interesse público, assim como seu tombamento, já se estabeleceu uma indenização para o proprietário e os caseiros, mas o processo está parado na prefeitura, com o Ministério Público pedindo celeridade.

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Rodrigo Bertolotto/UOL

População sem acesso à água

Imagine uma cidade de São Paulo com chafarizes e fontes públicas para as pessoas se refrescarem, brincarem e quem sabe até beberem suas águas potáveis. Pois é, a cidade já foi assim. Hoje a maioria das fontes da cidade estão abandonadas, sujas ou desativadas.

Talvez fosse uma alternativa para a população de rua manter a higiene em meio a uma pandemia em que lavar as mãos é a principal prática que determina entre quem se contamina e quem não.

A água tratada também é rara nas casas precárias, de palafitas, construídas próximas aos rios e de suas enchentes que chegam levando tudo não só nos verões chuvosos.

No Brasil, 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada e 100 milhões não possuem esgoto. É outra tragédia programada em um país sempre no top 10 mundial da desigualdade social. "Temos que sair do terreno da denúncia e focar nas boas práticas. É possível mexer com a cidade", completa Bueno.

"A cidade não é o contrário de natureza. No mundo, a natureza está cada vez mais na cidade, mas o Brasil está um passo atrás." As pessoas ainda acham que para achar natureza tem que pegar estrada, pagar pedágio e ficar horas em um engarrafamento. Enquanto isso, a natureza brota em cada fresta no concreto de São Paulo. É só deixar.

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Arquivo Rios & Ruas/Divulgação Arquivo Rios & Ruas/Divulgação

Expedição aos rios invisíveis

Munidos de mapas antigos e novos, Bueno e Campos traçaram o trajeto esquecido do rio Iquiririm e promoveram há 10 anos a primeira expedição, passando por escola, delegacia, baldios do Butantã e chegando finalmente ao rio Pinheiros. A experiência por eles foi replicada em diversos bairros e cidades atrás de outros córregos que foram encanados.

"Nessas expedições, o mais legal é encontrar os moradores de cabelinho branco que contam com saudade de quando brincavam e nadavam no rio. Se foi assim no passado, por que não pode ser no futuro? Isso mostra que é possível", relata Bueno.

Entre as muitas lutas do grupo, esteve evitar o despejo clandestino de esgoto de casas vizinhas à nascente do Iquiririm e também uma maior integração com o trecho da nascente que está dentro do terreno com a USP.

Dos anos de experiência em achar nascentes, Buenos dá uma dica boa, apontando para uma planta de folhas enormes em forma de paleta de pintor.

Onde tem taioba é um indício que tem terreno encharcado e pode ter uma nascente.

José Bueno

Lucas Lima/UOL Lucas Lima/UOL

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