Do amor ninguém foge

Com taxa de reincidência três vezes inferior a prisões comuns, e custos menores, Apac ganha documentário

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo Divulgação

"Aqui entra o homem, o delito fica lá fora" é o que se lê em uma placa na entrada da Apac de São João del-Rei (MG), unidade prisional onde cerca de 330 homens e 50 mulheres cumprem pena atualmente.

Como outras dezenas de Apacs que existem no Brasil, a de São João del-Rei não é uma prisão comum. A frase da entrada é uma das premissas da metodologia da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados, entidade que administra mais de 60 presídios no Brasil hoje aplicando um modelo próprio.

Na chegada, são visíveis algumas das características mais propagandeadas desse modelo, como o fato de não haver agentes penitenciários ou vigilância armada e de que os próprios detentos — ou recuperandos, como são chamados os que cumprem pena ali — têm as chaves dos portões.

O local também não realiza a chamada revista vexatória, procedimento que obriga familiares de presos a se despir completamente, agachar sobre um espelho, contrair os músculos e abrir com as mãos o ânus e a vagina, e que é condenado por organizações de direitos humanos. Normalmente, segundo a gerente geral Daniela Fazzion, é feita apenas uma revista superficial, em paralelo à conscientização dos familiares.

Antes mesmo de cruzar as grades e portas da unidade, porém, a visão panorâmica do lugar se choca com as pré-concepções de como é uma prisão.

Com jardins bem cuidados - pelos próprios recuperandos, como tudo o que se vê ali -, uma horta com pequenos pés de alface à vista, uma capela, uma quadra, um centro médico, viveiros de animais e oficinas de marcenaria, serralheria e produção de tijolos ecológicos, sem muros ao redor, a Apac de São João del-Rei pouco se assemelha ao imaginário de uma cadeia.

Em 18 de maio, cerca de 300 pessoas, entre detentos, funcionários e convidados participaram da pré-estreia especial do documentário "Do amor ninguém foge", gravado na unidade prisional em 2019 pelos irmãos Julio e Daniel Hey. O filme ainda inédito aborda o método da Apac e traz depoimentos dos detentos. O evento foi acompanhado pela reportagem de Ecoa.

Dois irmãos filmando na Apac

Em 2018, a proposta das Apacs chamou a atenção do curitibano Daniel Hey, instrutor de ioga e de meditação que se dedicava a trabalhos sociais em diferentes áreas, como abrigos infantis, escolas e comunidades, principalmente no estado de São Paulo. Nesses lugares, nas histórias que ouvia, o tema dos presídios era muito recorrente. Várias das crianças e jovens que estavam ali tinham um familiar preso.

Isso fez crescer sua vontade de atuar como voluntário junto a pessoas encarceradas. Foi então que, pesquisando sobre o tema, se deparou com o trabalho da Apac. Agendou uma conversa com Valdeci Ferreira, diretor da fundação que gere a entidade, e ele o direcionou para conhecer a unidade de São João del-Rei.

Ali, Daniel passou cerca de 40 dias como voluntário em 2019, participando das atividades do dia a dia, dormindo no local e conversando com recuperandos. Com o apoio do irmão, o cineasta Julio Hey, realizou nesse período as filmagens para o documentário "Do amor ninguém foge".

Muitas das pessoas com quem Daniel e Julio comentavam sobre o filme se mostraram resistentes à ideia de desenvolver um projeto em um presídio, questionando essa aproximação com pessoas que haviam cometido crimes.

O registro dos depoimentos e vivências na Apac foi feito à medida que acompanhavam o cotidiano dos recuperandos, que passaram a procurar espontaneamente os irmãos para dar seu testemunho.

"O que esse documentário busca oferecer é a experiência de perceber aquelas pessoas além do estigma de serem presos", diz Daniel Hey.

Não se trata de altruísmo, de bondade ou maldade, de uma questão moral, mas de encontrar caminhos que funcionem melhor, caminhos práticos para uma sociedade mais sábia. Quando a gente olha pra essa questão dos presídios com o mínimo de sensibilidade, percebe que o jeito que existe hoje está gerando mais problema do que solução.

Daniel Hey, diretor do filme 'Do amor ninguém foge'

'Humanizar' as prisões

A Apac atua há 50 anos, completos em 2022, no desafiador sistema carcerário brasileiro. A Ecoa o diretor-executivo da entidade que congrega e fiscaliza as Apacs, a FBAC (Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados),Valdeci Ferreira, afirma que o trabalho realizado busca "romper com a visão equivocada das prisões como espaços de vingança e não de recuperação de vidas". Essa ênfase na recuperação dos presos e na mitigação do estigma é a razão para serem chamados de "recuperandos".

O contraste com as prisões tradicionais parece ir além dos números: recuperandos ouvidos por Ecoa relataram uma melhora nas condições de cumprimento da pena e uma mudança de vida ao serem transferidos para a Apac de São João del-Rei.

Na hora que a gente desceu [do carro], não acreditei que isso aqui era uma cadeia. Desci com a mão para trás, andando de cabeça baixa e um dos plantonistas falou: 'Aqui você pode andar de cabeça erguida, pode soltar as mãos. Aqui você está preso mas com dignidade.'.

Rafael, recuperando , no filme 'Do amor ninguém foge'

O início de tudo

A história das Apacs começou em 1972, em São José dos Campos (SP), quando um grupo de voluntários cristãos liderados pelo advogado e jornalista Mário Ottoboni começou a atuar no presídio Humaitá para "evangelizar e dar apoio moral aos presos".

A associação foi fundada dois anos depois, assumindo a forma de uma entidade jurídica sem fins lucrativos dedicada à recuperação e à reintegração social dos condenados. Apesar de sua filiação ao cristianismo, a Apac afirma respeitar a crença de cada recuperando.

O que soa como utopia, na verdade, se resume à aplicação da legislação. "Nas Apacs nós cumprimos a Lei de Execução Penal e os princípios constitucionais naquilo que toca os direitos e os deveres do preso", disse o diretor-executivo da FBAC, Valdeci Ferreira.

Hoje o Brasil tem 63 Apacs em funcionamento em sete estados e outras 87 em diferentes estágios de implementação. A metodologia foi exportada para 12 países, como Paraguai, Coreia do Sul e Itália.

A crítica silenciada

Todo detento da Apac já passou por um presídio comum. Muitos cometeram delitos graves, como homicídios. Mas há alguns requisitos para se cumprir pena numa unidade mantida pela associação: ter sido condenado, ter família residindo na comarca, declarar ter interesse em ser transferido e o propósito de se ajustar às regras do modelo.

Esses critérios são regulamentados por uma portaria e estão listados no site da FBAC. Uma das condições para transferência, descrita no Artigo 2º do documento, não consta no site: "não registrar o preso notas desabonadoras no cumprimento da pena, em período mínimo que o Juiz da Execução definir como necessário".

A frase indica que a Apac privilegia presos com bom comportamento, segundo chama atenção o advogado especializado em direitos humanos Paulo Malvezzi, um dos críticos ao modelo da entidade. Ele acrescenta que aqueles que não se adaptam podem ser expulsos e mandados de volta para o sistema comum, o que contribui para discipliná-los.

"Um preso transferido para aquele espaço em que não há superlotação vai lutar até o fim para continuar lá. Provavelmente é um ambiente melhor de se estar, não estou duvidando disso. Mas a questão me parece que [o modelo] é uma franja de um sistema completamente apodrecido, com violações sistemáticas da dignidade humana", diz.

Para Malvezzi, esse é um aspecto central para a taxa de sucesso das Apacs e mostra que o modelo só pode funcionar como exceção. Mas, diante de problemas "infinitamente maiores" do sistema carcerário tradicional, as críticas à entidade acabam sendo silenciadas.

A partir de sua experiência, o advogado também questiona as implicações do teor religioso da organização para os recuperandos, principalmente em relação à orientação sexual, identidade de gênero e liberdade de culto.

Ele destaca que há casos de LGBTfobia ocorridos nas Apacs que são conhecidos e que o método exige participação em atividades religiosas, culminando na "Jornada de Libertação com Cristo", etapa final de reflexão dos recuperandos voltada "à adoção de uma nova filosofia de vida".

Ainda é preciso considerar, segundo aponta o advogado, que o modelo é uma forma de privatização do sistema prisional — pela lei, a execução da pena é função indelegável do Estado — e que contraria o princípio da laicidade ao subvencionar uma entidade cristã.

A questão que fica é: como uma prisão-igreja, baseada numa filosofia cristã, atende pessoas LGBT? Como, na prática, presos que são de outras religiões, do candomblé, da umbanda, são atendidos nessas unidades quando são obrigados a participar de atividades religiosas?

Paulo Malvezzi, advogado e consultor do Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC)

O filme volta para casa

Dois anos se passaram desde as filmagens, nos quais houve restrições à entrada de visitantes externos na Apac em função da pandemia de covid-19. Só em maio de 2022 os diretores puderam realizar a primeira exibição da obra em São João del-Rei.

Atravessando um pátio cheio de toalhas de banho coloridas, estendidas em fileiras de varais a perder de vista, uma escada dá acesso ao salão de convivência usado pelo regime aberto e fechado para oficinas, aulas e atividades de lazer, preparado para a exibição com cadeiras, telão e equipamento de som.

Os espectadores começam a encher a sala e tomam seus lugares perto das sete da noite. Na primeira fila estão alguns dos participantes do documentário, hoje já em liberdade.

Ex-recuperando e hoje funcionário da Apac, Lucas** falou aos diretores: "As pessoas ainda precisam conhecer o que é a Apac. [Elas] não acreditam se a gente falar, acham que é utopia."

*A repórter viajou a convite da produtora Café Royal
**Os nomes dos recuperandos e ex-recuperandos foram trocados para preservar sua privacidade e segurança

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