PARA ACENDER UMA LUZ

Proibida de escrever na infância, Dona Jacira fala sobre o amor pela escrita e sobre sua nova coluna no UOL

Camilla Freitas Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP) Jef Delgado

Jacira Roque de Oliveira é escritora. Mas não é só isso. É artista plástica, cuidadora de horta, alguém que gosta de estudar de horóscopo a "bicho que dá em gente, como os fungos e bactérias". Dona Jacira, como é mais conhecida, tem 56 anos e é capricorniana, filha de Iansã e "herdeira de uma mulher forte pra caramba". Agora, além de tudo isso, também é colunista de Ecoa.

"Eu sou detentora de tecnologias ancestrais e muitas delas como a tecelagem, o bordar, o plantar, foram colocadas no meu caminho como caminho de sobrevivência, porque a escrita me foi negada desde o berço", conta. Dona Jacira aprendeu a ler muito cedo e quando os professores reconheceram nela essa facilidade com as palavras, não foi encorajada a seguir com a escrita.

"As pessoas brancas que estavam à frente das escolas achavam que isso era uma afronta, uma menina negra, que empunhava papel e lápis e fazia texto cheio de entendimento, eu fui castigada por isso, tive que sofrer calada", lembra. Hoje, ela descobriu seu caminho na escrita, caminho este que diz ter procurado por toda a vida e que vai compartilhar, semanalmente, aqui em Ecoa.

Seu amor pela palavra acabou sendo transmitido para os filhos rappers: Emicida e Fióti. Ou Leandro e Evandro, como ela os batizou ao nascerem.

Divulgação

Desde muito cedo, alguém me dizia que esse caminho [da escrita] já estava aberto, só quem fechou os meus caminhos foram algumas pessoas, mas as minhas entidades sempre me disseram que esse caminho era meu.

Dona Jacira, escritora e colunista de Ecoa

Jef Delgado Jef Delgado

Ecoa - Como a senhora se descobriu escritora?

Dona Jacira - Eu não sei dizer quando foi que eu me descobri escritora, mas eu sei que um dia a minha professora me pegou pela mão, eu estava no primeiro ano, e ela me levou até a diretoria e falou "essa menina tem que ir para o segundo ano porque ela sabe muito". Aí a diretora passou o dedo nas costas da mão, indicando que eu era negra, e no dia seguinte eu estava lavando o banheiro da escola.

Os professores rasgavam o que eu escrevia, já fui chamada de ladra de texto alheio. E eu comecei achar que escrever era um castigo. Mas quando eu começo a entender que este é o meu dom, eu volto lá atrás pra buscar essas Jaciras, essa criança que foi proibida de escrever. A gente não pode deixar de escrever, escrever é estar a par com a memória.

E como a senhora pretende usar esse espaço da coluna? Quais temas quer abordar?

Eu vou usar esse espaço para falar sobre as questões da vida, o cotidiano, os costumes, as coisas que eu estudo. Por exemplo, eu agora estou num estudo sobre bicho que dá em gente. A gente precisa saber que os fungos e as bactérias são anteriores às nossas vivências, que o vírus que chegou agora, antes de aparecer, deu muitos recados. Fora isso, eu sou uma pessoa que gosta muito de horóscopo, esse zodíaco tem ensinos sérios e muito importantes. Também gosto muito de filosofia, principalmente quando eu me sinto uma filósofa, porque o filósofo não é só Platão, não é só Sócrates.

É horrível quando a gente vai ter uma aula de filosofia e o professor diz que não tem filósofos no Brasil. Como assim? E meu filho [Emicida]? E o Djavan? E o Caetano? E minha mãe? E minha vizinha? Filósofos são pessoas pensantes e as pessoas que tiram soluções do fundo do baú. Então, é sobre isso que eu falo, é sobre isso que eu escrevo. O quanto que me revolta muito ver como a população da Cracolândia é tratada, como a periferia não se encaixa dentro de algumas colocações.

Tinha vezes que, na casa da patroa, eu pegava um jornal que caía na minha mão e ia direto nas colunas, porque sabia que eu ia ler aquilo rapidamente e que aquele texto ia me acender uma luz e ia me levar a continuar pensando naquele assunto. Eu pretendo trazer essa luz.

Jef Delgado
Dona Jacira

A horta da senhora também é bastante conhecida e seu trabalho artesanal recriando objetos com o que muitos acham ser lixo também. Queria saber como foi que a senhora começou a se interessar por essas duas atividades e se pretende trazer algumas dicas relacionadas a elas na coluna.

Em uma aula caríssima, uma mulher branca me disse que eu sou uma pessoa que dou jeito pra refugo e eu tive que olhar o dicionário pra ver o que é refugo. E é o mesmo que lixo. Mas eu falei "puxa, eu não trabalho com refugo, não, minha senhora. Eu trabalho com matéria-prima". Desde criança eu gosto de construir coisas e esse meu lado também não foi aceito porque eu estava sendo preparada para ser empregada doméstica. E por que minha mãe me preparou para ser empregada doméstica? Porque foi o único recurso que ela viu. Agora, eu, em posse dessa informação, sempre pensava em não falar para as minhas filhas que elas só podem ser empregadas domésticas. Hoje o Leandro [Emicida] já estuda piano, o Evandro [Fióti] faz outros estudos. A minha filha quis fazer direito e está fazendo, a minha outra filha está lidando com a empresa dela. Então, é isto.

Mas falando sobre a horta, eu sou uma pessoa que todos os meus aprendizados demandam tempo. É por isso a minha ligação com a horta, porque eu quero seguir desde o princípio da semente, eu quero ver como ela chega na fase da adolescência e aí depois quando ela chega na parte adulta e dá a semente. E eu acredito que em algum momento eu vá compartilhar essas coisas também. Até porque essa coisa de cuidar das plantas virou algo gourmet, e quando vira gourmet os negros vão sair de cena.

Eu vejo as pessoas vendendo na internet ensinos primitivos, saberes e fazeres por mais de mil reais, enquanto que o ensinamento dos mestres, se a gente coloca a dez reais, não tem público, porque dá a impressão de que a gente não sabe do que a gente está falando.

Gostaria de saber, por fim, com quem que a senhora gostaria de falar sobre todos esses temas por meio dos seus textos?

Os meus textos, geralmente, são jogados ao vento, sabe? Algumas pessoas leem e dizem que é infantil. Mas a grande maioria fala sobre as sabedorias que eles carregam. Então, eu não tenho um público específico. Eu falo muito de cuidado, falo muito em cuidado com a criança e se tem um público que eu gostaria que prestasse atenção nos meus textos, é o das pessoas que tem uma criança sob seu cuidado. Porque toda vez que a gente maltrata uma criança, a gente vai gerar uma população adulta menos saudável.

Por um bom tempo eu achei que a palavra e a escrita eram o meu castigo. Mas hoje eu sou outra Jacira, esta Jacira que sabe quem ela é, de onde veio e conhecendo todas as suas potencialidades

Dona Jacira, escritora e colunista de Ecoa

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