Sempre rebelde

Professora, sindicalista, gestora, diva do carimbó: as vidas de Dona Onete

Juliana Domingos de Ecoa, em São Paulo (SP) Divulgação/AndreSeitti/ItauCultural
Divulgação/AndreSeitti/ItauCultural

"Que carimbó é esse
De toque maneiro
Gostoso, brejeiro
De onde é que tu é
Das cabeceiras dos rios
Dos lados dos igarapés".

Faz dez anos que o carimbó chamegado de Dona Onete ganhou o Brasil e o mundo com o lançamento de "Feitiço caboclo", seu primeiro disco solo, em 2013.

Hoje, aos 83, a paraense prepara seu quarto álbum de estúdio e é homenageada por uma exposição no Itaú Cultural, em São Paulo, em cartaz de março a junho deste ano. Seu sucesso abriu caminhos para outras artistas do Norte, como Gaby Amarantos e Aíla, num ritmo até então masculino.

Mas a carreira de cantora e compositora a que Ionete da Silveira Gama se dedicou nas últimas décadas é só um dos capítulos de sua vida.

Ela formou gerações dando aulas de história por mais de 20 anos em Igarapé-Miri, no nordeste do Pará. Como militante sindicalista, participou de mobilizações pela melhoria no ensino e nas condições de trabalho dos professores e até pelo cultivo sustentável do açaí.

Também impulsionou grupos e festivais de cultura popular como assessora de cultura (cargo equivalente hoje ao de secretária) entre 1993 e 1995.

'Mulher era só para cozinhar'

Nascida em 1939 em Cachoeira do Arari, na Ilha do Marajó, Dona Onete foi para Belém aos quatro anos. Perdeu os pais cedo e foi criada pela avó, que era parteira, e a quem acompanhava em suas viagens pelo interior do Pará.

Na juventude, procurava ler muito. Em vez de gastar dinheiro com um vestido bonito, preferia comprar uma chita e usar o resto em revistas como O Cruzeiro e Grande Hotel, "para ser antenada".

"A minha avó brigava por isso, eu tinha uma mente totalmente diferente", diz a Ecoa.

Como muitas mulheres de sua geração, ela precisou enfrentar o marido para estudar e trabalhar: "Eu batalhei muito, briguei muito para estudar. Meu marido dizia que ia me largar e eu dizia, me larga, mas eu quero ter o meu emprego", conta.

Pensavam que a mulher era só para cozinhar, lavar, fazer o café do marido. Nunca pensaram que a gente tinha condição de dar cinco passos a mais na nossa vida. Mas eu era rebelde. Sempre fui. No tempo que a roupa era aqui [no tornozelo], eu já suspendia mais um palmo."
Dona Onete, cantora e compositora

Acervo da família
Em foto antiga, Dona Onete aparece em sua casa em Igarapé-Miri

Depois de se formar no magistério, Ionete se tornou professora de história na escola Aristóteles Emiliano de Castro, em Igarapé-Miri (PA). Nunca deixou de estudar: nas férias, fazia cursos para se "reciclar". Deu aulas até a aposentadoria, aos 62.

"Quando eu tinha 250 horas [de aulas] de história, eu disse: agora posso deixar meu marido. Comecei a dizer que não queria mais. Aí foi mais briga. Eu não podia me pintar, não podia usar uma roupa, era uma coisa. Fiquei Amélia mesmo. Eu sabia que aquilo era para ninguém me ver", diz.

Quando se aposentou e passou a se dedicar integralmente à música, também teve que enfrentar o machismo. Naquele tempo, já nos anos 2000, só homens podiam ser mestres de carimbó. Ela mudou essa situação.

"Mulher era talvez para fazer café, para dançar. Nem maraca entregavam para mulher tocar. Mas agora não, mulher é dona de grupo de carimbó, toca saxofone, toca tudo que os homens tocavam", diz. "Eles não davam oportunidade, mas aí eu vim e quebrei isso. Eu já estava aposentada no estado, já era dona dos meus caminhos. Consegui desbloquear esse grande entrave da nossa música".

Divulgação/AndreSeitti/ItauCultural Divulgação/AndreSeitti/ItauCultural

Durante a ditadura militar, Dona Onete lembra que a direção da escola monitorava se o que os professores ensinavam era "subversivo".

"A gente não podia falar nada na sala, era reprimido. Mas eu sutilmente colocava algumas sementinhas que grelaram depois na cabeça deles", recorda.

Além do ensino fundamental, ela dava aulas em um curso supletivo. Por achar o ensino fraco, decidiu alterar por conta própria o programa, trabalhando com os adultos o conteúdo que ensinava aos adolescentes. Para completar, era estudiosa de Paulo Freire e usava seus ensinamentos nas aulas.

Outras professoras passaram a seguir seu exemplo, o que chamou atenção dos superiores. Ela precisou se explicar numa reunião.

"Eu estava tratando do meu povo, dos meus alunos que queriam ser alguém, passar num concurso, fazer segundo grau. O que adianta ter um diploma e não saber nada?", questiona.

Acervo da família
Dona Onete, em 1999

Trajetória no sindicato

Nos anos 1980, a professora Ionete Gama se sindicalizou. "Foi bom, eu deixei o marido e entrei no movimento. Esse cavalo passou e eu montei", lembra.

Ela integrou as mobilizações dos professores da região do Baixo-Tocantins, (PA) por melhores condições de trabalho, das quais também participou o atual prefeito de Belém, Edmilson Rodrigues (PSOL).

Eles fizeram paralisações, atos e greves pelo pagamento de salários atrasados e formação continuada. Chegaram a trancar o prefeito em uma escola para que assinasse um termo comprometendo-se com mudanças na lei em Igarapé-Miri.

"Graças a Deus a gente alcançou nossos objetivos. Hoje tem universidade em várias cidades do Pará, a federal, a UEPA e outras. Eu me sinto feliz de ter feito parte dessa luta", afirma.

Dona Onete foi uma das fundadoras do Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras em Educação Pública do Pará (Sintepp), integrou o Partido dos Trabalhadores (PT) e esteve na inauguração da Central Única dos Trabalhadores (CUT) em São Bernardo do Campo (SP), em 1983.

Com menos de 100 mil habitantes, a Igarapé-Miri de Dona Onete também deu ao Brasil músicos como Pinduca, conhecido como rei do carimbó, Aldo Sena, rei da guitarrada, e Tonny Brasil, pai do tecnobrega.

Ela já era uma figura de relevo na vida cultural da cidade anos antes de ter um disco gravado. Em 1989, fundou o Grupo Folclórico Canarana, que fazia apresentações de carimbó, benguê e lundu pelo estado do Pará, dançando suas composições autorais.

Depois, veio o convite para assumir a secretaria de cultura do município. No cargo, ela criou a Casa Ribeirinha para resgatar manifestações culturais das populações tradicionais e fortaleceu o lado artístico dos festivais do município relacionados com o extrativismo, como o Festival do camarão e do açaí, incluindo apresentações musicais, de grupos escolares e folclóricos.

Dona Onete - Divulgação/AndreSeitti/ItauCultural - Divulgação/AndreSeitti/ItauCultural
Imagem: Divulgação/AndreSeitti/ItauCultural

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Nessa época, a produção de açaí do município já tinha sido recuperada — Igarapé-Miri é considerada hoje a capital mundial do açaí —, mas a polpa que é a base da alimentação dos paraenses tinha quase desaparecido da mesa nos anos 1980 e 1990.

Essa situação foi causada pela chegada das indústrias de palmito à região do Baixo-Tocantins, que levou ao corte indiscriminado dos açaizeiros para a extração do alimento. Foi necessária a organização dos trabalhadores rurais para enfrentar a situação.

A gente do sindicato teve que sair novamente para a luta, se envolveu, falou com a Embrapa, conseguiu empréstimo no banco para a plantação do açaí e hoje em dia o Pará é exportador. A luta de Dona Onete não foi só numa coisa, foram muitas. Dona Onete, cantora e compositora

Divulgação/AndreSeitti/ItauCultural Divulgação/AndreSeitti/ItauCultural

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