A vida, né, minha filha?

Drauzio Varella lança livro e fecha clínica para se dedicar ao atendimento na cadeia: 'urgência'

Marcos Candido de Ecoa, em São Paulo (SP) Bruno Santos/ Folhapress

O oncologista Drauzio Varella estudou em Nova Iorque, Amazônia, Tóquio, na extinta União Soviética e se formou médico no suntuoso prédio da Faculdade de Medicina da USP. Os outros 30 anos de carreira foram vividos em prédios à margem, mas também de dimensões colossais, como o antigo Carandiru e a Penitenciária Feminina da Capital. Aos 78, Drauzio acaba de lançar um novo livro para unir as duas experiências de vida.

Em "O exercício da incerteza" (Companhia das Letras, 2022), o médico detalha os avanços da medicina, a universidade, o ofício como médico, as cadeias, o avanço do crack nas periferias, o medo da morte, o cigarro, a família e a atuação como comunicador na televisão e internet.

Drauzio fechou a clínica para dedicar-se à comunicação e ao atendimento no Centro de Detenção Provisória (CDP) do Belém, em São Paulo (SP). O trabalho nas cadeias gerou sucessos literários como "Estação Carandiru", "Carcereiros" e "Prisioneiras". O novo título foi sugestão da editora e caiu bem. Para ele, o ofício exige aprimoramento em diferentes situações. "A medicina é um trabalho incerto. Duas pessoas nunca são exatamente iguais".

Ironicamente, o médico que convive com a morte ainda tem certo medo dela. Para despistá-la, ele se mantém em movimento, correndo maratonas e atendendo os presos com quem tanto aprendeu. Ainda hoje, afirma ser o único médico no CDP onde trabalha — e não pretende parar. "O trabalho na cadeia tem um sentido de urgência", diz nesta entrevista à Ecoa.

Bruno Santos/ Folhapress
Bruno Santos/ Folhapress

Ecoa - O senhor diz que a medicina é um exercício de empatia. Como se manter empático no Brasil em 2022?

Drauzio Varella - A idade traz um pouco de sabedoria. Você passa por isso que estamos passando outras vezes. Já tivemos uma fase muito dura e terrível no Brasil com a ditadura militar, com AI-5, uma repressão brutal, execuções de inimigos, tortura de pessoas inocentes.

Nós temos uma fase melhor do que aquela. E essa dicotomia, essa divisão da sociedade, não vai durar muito tempo. Não existe mais espaço e tempo para a violência daquela época. As coisas vão se acalmar com o tempo, mas temos 30 milhões de pessoas com insegurança alimentar. São milhares de famílias. É muito duro sentir que não existe um esforço nacional para acabar com isso.

Então, a empatia se dá por essa compreensão de que as coisas passam?

Acho que sim. Acho que a vida é essa aqui. É um grande privilégio viver nessa terra. Estou chegando aos 80 anos com uma condição física que não me limita. Posso viajar o país, vou e volto sem limitações. É um privilégio enorme, apesar de estarmos em uma situação complicada. A vida não é simples. Tem fases melhores e piores e a gente tem que ser, eu acho, agradecido quando está bem, vivo e por experimentar os prazeres que a vida e o corpo podem proporcionar. Procuro ter essa visão mais otimista por ter vivido tantos anos sem uma doença grave.

Marcio Capavilla/Folhapress
Drauzio Varella, em 1994

No novo livro, o senhor trata de como as pessoas começaram a buscar a felicidade, às vezes até pela medicação. Quais são os efeitos dessa busca e como ela é feita?

A gente tem uma visão um pouco romântica da existência, uma ideia de que tem que estar feliz o tempo inteiro. A felicidade permanente é só na infância. Quando cresce a gente passa só uns dias muito felizes, como quando faz uma viagem, quando está com amigos...Uma vez escrevi na Folha de S. Paulo que a felicidade é como um pássaro arisco: mal pousa e já levanta voo. Você fica feliz, mas os pensamentos são desviados pela preocupação com cartão de crédito que vai estourar, a falta de dinheiro para pagar. A gente tem que se conformar que é assim, que em boa parte do dia a gente faz coisas que dão pouco ou nenhum prazer.

A pandemia tirou o estímulo dessa busca por felicidade?

Tem sido uma coisa cansativa. A gente não conhecia esse estresse. Ver os amigos e os familiares correndo risco morte é um estresse. Estresse não é só pegar trânsito e se irritar — o que na verdade é um aborrecimento. O estresse de verdade é essa preocupação generalizada, que o tempo inteiro te deixa preocupado com o que vai acontecer. Eu acho que a pandemia fez aflorar isso de um jeito perigoso.

E tem remédio para essa sensação?

Olha [suspira]. Tem gente que é mais equilibrada, apesar de sentir essa pressão. Uns fazem yoga e ficam tranquilos, outros passam um tempo desligados desses aparelhos diabólicos que infernizam a nossa vida. Eu não consigo nenhum desses métodos. Imito o que nossos antepassados faziam na época das cavernas. O cara saía da caverna, de repente dava de cara com o leão e só tinha duas alternativas: se atracar com o leão, ou sair correndo. Se ele saísse com vida, gastava todos aqueles mediadores do estresse, a respiração acelerada que desvia o sangue para os músculos. A adrenalina. Eu faço a mesma coisa. Corro longas distâncias, até ficar bem cansado. Me sinto muito mais tranquilo depois. A atividade física ajuda muito.

Bruno Santos/ Folhapress Bruno Santos/ Folhapress
Ciro Coelho/Folhapress
Drauzio Varella, em 1996

O vício em cigarro e a 'cracolândia'

O senhor dedica um capítulo inteiro ao cigarro no seu livro, o que é curioso. O que você aprendeu com a dependência?

Primeiro, me ensinou que a droga quebra o caráter do usuário. Você fica de joelhos. Eu comecei a fumar com 17 anos, dizendo que iria parar rápido. Assim, passaram-se 19 anos. Um tempo absurdo. O cigarro é uma droga absurda e faz as pessoas sofrerem muito. Tratei muitos amigos e amigas da adolescência com uma história de vida semelhante a minha. E agora temos as companhias de cigarro eletrônico. É o maior crime da história do capitalismo depois da escravidão! Não consigo achar outro crime semelhante que continue afetando tantas pessoas.

Recentemente, ocorreram novas operações na 'cracolândia'. O senhor conhece o crack desde quando começou a se espalhar nos presídios. Tem uma solução adequada para tratar essa situação?

A gente tem que ser realista e entender que ninguém vai resolver esse problema de imediato. Chegar na sarjeta, virar os dias e noites em função da droga não é algo que você resolve de uma hora para outra. Esse é o problema dos prefeitos e governadores: querem acabar de um dia para o outro com a 'cracolândia', como se fosse passível.

E não existe uma solução que funcione para todos. Cada um tem um nível de dependência, uma história de vida. Primeiro é preciso oferecer ajuda, mas ajuda real. Pelo menos, dar comida, avaliar quantos estão com tuberculose, por exemplo.

Poderia ter critérios de internação, como internar aqueles com pneumonia, febre, fazer radiografias, tomografias, dar medicação. São critérios clínicos para dizer quem fica hospitalizado, que precisaria de antibióticos na veia e, em determinadas situações, quem vai para a UTI. Nós, como sociedade, temos que nos aparelhar para lidar com esse problema com seriedade. Há uma classe média em diante que só dá importância para o crack quando tem um dependente na família. Aí acorda para o mundo.

Quando analisamos quem está lá [na 'cracolândia'], jogado no meio da sujeira, se observa que são os mais pobres da população. Como é que eles caíram nessa? Por uma série de fatores sociais que você não resolve de um dia para o outro. É preciso definir as políticas públicas com continuidade, ou vamos continuar nessa confusão de hoje. E é preciso escutar quem trabalha lá há anos. 

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Drauzio Varella, médico

Eduardo Knapp/Folhapress

E o senhor fechou seu consultório há dois anos. Sente falta?

Olha, eu gosto de atender. Gosto de examinar doente. Senti mais falta do [Centro de Detenção Provisória] do Belém quando não podia entrar mais lá durante pandemia. O trabalho na cadeia tem um sentido de urgência, pois não tem outro médico lá. A maioria dos CDPs não têm médico nenhum.

Se eu não for na segunda-feira, sei que eles não terão atendimento. Percebi que esse trabalho lá é muito mais necessário do que o trabalho no consultório. Fui um dos primeiros oncologistas de São Paulo. Hoje, tem uma meninada ótima, formada em grandes centros internacionais. Posso ser substituído na clínica, mas na cadeia não é assim. Chega uma idade que você sente que precisa aproveitar o máximo do seu tempo. Então, onde é que eu vou ser mais eficiente e, consequentemente, feliz enquanto estiver em boa forma?

Cheguei a conclusão que o mais importante seria me dedicar a educar sobre saúde, algo que fazia nas horas vagas e que poucos médicos tiveram a chance de fazer. Seria melhor atender a 20 pessoas que poderiam consultar um médico tão bom ou melhor do que eu, ou usar o programa de televisão à noite, a coluna na Folha, na Carta Capital, no meu site com 8 milhões de acessos, meus três milhões de inscritos no YouTube? É aí que tenho que atuar, não é verdade?

Em uma live com o Celso Athayde, ele me apresentou como Dr. Drauzio, há mais de 30 anos fazendo trabalho na favela. Eu corrigi. Nunca trabalhei em favela. Ele me disse, então: ?o que é a cadeia senão uma extensão da favela??

Drauzio Varella, médico

Gabriel Cabral/Folhapress Gabriel Cabral/Folhapress

No livro, o senhor narra o medo da morte, mesmo lidando com ela várias vezes. Não tem jeito de se acostumar com essa ideia, mesmo?

Lidei com morte na clínica e por violência na cadeia, especialmente no Carandiru. Eu tenho medo da morte violenta, claro, de alguém sacar um revólver contra mim. Mas quando a morte vem de um jeito inexorável, ela traz também um entendimento.

Você se desliga da vida espontaneamente, a doença traz uma resignação. Chega um ponto que o corpo vira uma fonte de sofrimento e você começa a não ter capacidade de reação. Vi isso com meus doentes a vida inteira.

Esse tipo de morte natural acho que a gente não tem como se preocupar. A morte por violência traz desespero. Nunca vi um morto por doença se debater em desespero. Chega a um ponto que reagir é inútil. Sabe, eu sou ateu e não tenho expectativas. Acho que vou morrer e acabou, deixo de existir. Aí me perguntam: a vida é só isso? É só isso, pô. Não tá bom?

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