No escurinho da Amazônia

Dupla faz expedições para registrar louva-a-deus e descobre novas espécies do inseto no Brasil

Fernanda Ezabella Colaboração para Ecoa, de Vancouver (CAN) Projeto Mantis

É quando o sol vai embora, no breu da floresta, que se iniciam os trabalhos de Leo Lanna e Lvcas Fiat. Armados apenas de lanternas, atravessam trilhas por quilômetros de distância. Seu guia é um bicho carnívoro e camuflado que não passa de poucos centímetros: o carismático e paciente louva-a-deus.

Lanna, 31, é biólogo, e Fiat, 30, é designer. Ambos são fotógrafos e parceiros no Projeto Mantis, uma organização dedicada a pesquisar, conservar e fotografar vida selvagem.

"A floresta se transforma quando dá a noite, guarda muitos segredos", disse Lanna a Ecoa, após a dupla tomar o palco principal do TED, que aconteceu em abril em Vancouver para apresentar seus trabalhos e descobertas científicas, como uma nova espécie de louva-a-deus. Falaram na mesma sessão que Elon Musk, um monge budista e a atriz Bryce Dallas Howard.

"Bichos que ficam escondidos de dia, se revelam. Eles não precisam ficar tão camuflados, como o louva-a-deus, então há cores muito vibrantes. É o momento mais fantástico", completou.

O projeto começou em 2015 como uma iniciativa universitária. Em 2017, expandiu com apoio financeiro da National Geographic Society, que ajudou em expedições multidisciplinares em florestas tropicais, como a Mata Atlântica no Rio de Janeiro e a Amazônia brasileira e peruana.

"Fora da floresta, não gosto do escuro. Mas dentro da floresta, é nosso ambiente, sou muito tranquilo. Só fica proibido contar histórias de terror", disse Lanna, rindo. Eles vão de galocha, calça e camisa de manga comprida. E nada de facão.

"Não saímos das trilhas, e nem tem por que sair. A Amazônia é tão pouco conhecida que às vezes dá para trabalhar só ao redor do alojamento a vida toda."

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Guardiões do jardim

A dupla tem medo é de outra coisa, muito além do encontro assustador que tiveram com uma anta, achando que era uma onça, ou dos macacos que jogavam galhos em suas cabeças por terem sido acordados no meio da noite.

"O bicho que a gente tem mais medo de encontrar é ser humano", disse Fiat à reportagem. "Vai ser um caçador ilegal ou um fazendeiro armado de ignorância e um facão. E estamos ali fazendo pesquisa justamente para tentar impedir que ele esteja ali. Então dá muito medo."

O Brasil tem a maior diversidade de louva-a-deus do mundo, com 10% das 2.500 espécies conhecidas. A comunidade científica acredita que existem ao menos 300 ainda a serem descobertas no país.

Predador astuto e voraz, o louva-a-deus se alimenta de pequenos insetos e, às vezes, até de bichos maiores, como sapos ou passarinhos. Mas não tem veneno, nem dá picada, usando apenas a força de suas garras.

Sua presença é como a de um tubarão num recife de corais, explica a dupla. Ambos os animais são bioindicadores de equilíbrio: todos os ciclos da cadeia alimentar foram supridos para a existência daquele predador naquele microuniverso.

"Minha avó falava que os louva-a-deus eram os guardiões do jardim dela porque eles comem tudo o que ataca as plantas, grilos, larvas de mosquito, baratas", disse Fiat.

Lanna afirma que as pesquisas de louva-a-deus nos trópicos, onde mora a maioria, ainda são incipientes. "Não se sabe ainda se no futuro ele poderá ser usado para agricultura, para controle biológico de pragas, por exemplo", disse.

"Existe um imediatismo hoje de que a natureza tem que servir para alguma coisa. Nunca é pelo simples fato de que a gente compartilha o planeta com esses seres. Temos que conhecê-los."

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Descoberta na mata

Com a pandemia, Lanna deixou o laboratório que usava de base no Jardim Botânico do Rio e se mudou de volta para seu sítio em Valença, município a três horas de carro da capital. Lá, mora atualmente com cerca de 50 louva-a-deus, todos coletados em suas expedições.

O biólogo trabalha com métodos não letais e cria todos até a morte natural. Dá um trabalho extra, como pegar um ônibus de 18 horas para conseguir voltar da Amazônia com 160 caixas de louva-a-deus, ou navegar três dias de barco no Peru quando num avião daria uma hora.

"São sacrifícios que trazem vantagens, como poder acompanhar o desenvolvimento e as mudanças ao longo da vida", disse Lanna, que atrai os insetos com uma armadilha de luz, um pano estendido com uma luz forte em cima.

Em 2021, numa expedição de dois meses no sul da Amazônia, encontraram uma nova espécie a ser nomeada ainda neste ano. O nome científico será uma homenagem ao rio Cristalino, onde foram encontrados os dois machos nunca antes descritos, e à RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural) do Cristalino, que hospedou a equipe no norte de Mato Grosso.

"Ele tem o corpo meio transparente, achamos que cristalino combina bastante", disse.

Outra descoberta, anos antes, foi o primeiro registro de um louva-a-deus selvagem se alimentando de material vegetal, no caso látex de mamão, considerado tóxico. "Despertou muitas perguntas. E nos lembrou que pouco conhecemos seu comportamento."

Na expedição mais recente, de volta à Amazônia em outubro, levaram uma equipe de seis pesquisadores e artistas para vivenciar a Floresta Nacional de Caxiuanã, no Pará. O material captado, exibido com exclusividade no TED, inclui fotografias induzidas por ultravioleta pura, revelando uma floresta repleta de fluorescências e novos mistérios.

"Quais outros segredos estamos perdendo?", perguntou Fiat à audiência do TED. "Mais uma vez, a floresta tropical nos mostrou o quão pouco entendemos de sua beleza noturna."

Quando o sol está se pondo, acontece uma transição de animais diurnos e noturnos, é um momento de euforia. As cores vão ficando mais pálidas, e então preto e branco. É quando acendemos nossas laternas e assim revelamos o que foi abençoado por aquela escuridão. É apaixonante

Lvcas Fiat, designer do Projeto Mantis

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Oráculo dos gregos

Criado no interior do Rio, Lanna nunca foi de curtir inseto e nada sabia de louva-a-deus até se deparar com um em seu sítio. Na época, já cursava o segundo ano de biologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), na capital fluminense, após ter se formado em administração e se frustrando com a profissão.

"Quando vi aquela criatura, queria fotografá-la, mas tinha muito medo. Achava que mordia ou picava, enfim, o que a gente normalmente acha de inseto, não é?", disse Lanna, que coletou o bicho para mostrar ao seu professor, que afirmou ser inofensivo e também pouco estudado.

"Fiquei com aquilo na cabeça, o tamanho da minha ignorância sobre uma parte do nosso mundo natural", disse. "Hoje, sabemos que o louva-a-deus permite ser uma espécie de bandeira para esse universo dos insetos."

Antes da pandemia, o projeto participava de eventos públicos de ciência e biologia para pregar "a palavra" do louva-a-deus. O nome vem da posição curiosa de suas pernas posteriores, modificadas em forma de garra (raptorial), como se estivesse rezando. São insetos da ordem Mantodea, do grego mantis (profeta) e eidos (aparência).

Lanna conta que os gregos chamavam o louva-a-deus de oráculo porque acreditavam que, ao encontrar um, para onde quer que ele estivesse olhando, estaria apontando o caminho para algo que foi perdido. "É aquele que vê o futuro, o caminho das coisas."

Mas hoje, nem todo mundo se lembra do nome. "Perguntam se é uma cigarra, um vaga-lume? O léxico está diminuindo muito, para todos os animais. Daqui a pouco vai ser tudo só inseto", disse. "É uma desconexão muito grande com a natureza."

Todo mundo fala de novas ferramentas para se conectar com o mundo, mas não vejo ferramentas para se conectar à natureza. Pode ser uma força muito grande.

Leo Lanna, biólogo do Projeto Mantis

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Curiosidades sobre o louva-a-deus no Brasil

  • Variedade

    O Brasil possui a maior diversidade de louva-a-deus do mundo, com mais de 250 espécies

  • Camuflagem

    Há os que imitam folhas secas (Acanthops falcata), flores (Callibia diana) e até formigas (Acontista concinna)

  • Tamanho

    Mínimo de 1 cm (Diabantia minima) e máximo de 11 cm (Macromantis hyalina)

  • Desenvolvimento

    Passam por mudas, ou seja, trocam de exoesqueleto

  • Alimentação

    Carnívoros, caçam pequenos insetos e às vezes bichos maiores, como sapos ou passarinhos. Sem veneno, nem picada, usam força de suas garras

  • Acasalamento

    Diferente de lugares frios onde a fêmea é conhecida por às vezes comer o macho na cópula, esse comportamento não ocorre nas espécies do Brasil

  • Locais

    Presentes em todos os biomas e ecossistemas, incluindo restingas e manguezais, florestas, cerrados e alto de montanhas com até 2.500 metros de altitude

  • Asas

    Em geral a fêmea não voa, apenas o macho

  • Expectativa de vida

    Entre 1 e 2 anos

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Branding científico

Uma forma de combater a ignorância foi tomar as redes sociais e caprichar na campanha, com ajuda dos dotes de publicitário de Fiat, formado pela ESPM-RJ.

Logo, colegas notaram a nova identidade visual do projeto, começaram a perguntar, e o designer passou a colaborar com o branding de outros projetos científicos.

"É muito frustrante ver projetos e iniciativas magníficos simplesmente desaparecendo, não conseguindo financiamento porque não conseguiram ganhar vínculo com o público", disse Fiat. "Percebemos o quanto faltam profissionais de diferentes áreas na divulgação científica."

A dupla criou a agência Ooteca (nome da casinha de ovos de louva-a-deus) para desenvolver campanhas para iniciativas científicas e de conservação. "A agência é uma das formas de conseguir dinheiro para o projeto e principalmente para nos manter", disse Fiat.

Entre os clientes, estão o Instituto Juruá, que agrega soluções participativas para a conservação da Amazônia, e o Projeto Dots, do biólogo Pedro Peloso, que documenta espécies ameaçadas de extinção no Brasil. Peloso foi o primeiro brasileiro a ganhar um prêmio de US$ 100 mil da Maxwell/Hanrahan Foundation, em 2021.

"Trabalhar e vender conservação e natureza é muito difícil. E é mais desafiador ainda com insetos. Por isso trouxemos arte para criar uma ponte de conexão", disse Fiat. "Traz um senso de vanguarda e respiro para a pesquisa."

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Encontros noturnos do Projeto Mantis na Amazônia

  • Cuíca

    "É sempre difícil ver um pequeno mamífero à noite. Gambás, cuícas, pequenos roedores e ratos-de-espinhos sempre surgem de repente e somem mais rápido ainda", diz o biólogo Leo Lanna

    Imagem: Projeto Mantis
  • Lacraia

    "As cores da lacraia são fantásticas e de pertinho ela é bem simpática. É um animal inofensivo se respeitarmos seu espaço", diz Lanna.

    Imagem: Projeto Mantis
  • Perereca-macaco

    "Seus olhos são um espetáculo à parte, mas ainda não se sabe o quão bem enxergam", diz o designer Lvcas Fiat.

    Imagem: Projeto Mantis
  • Suaçuboia laranja

    "Encontrá-la é uma das nossas maiores felicidades desde que conhecemos o Projeto Suaçuboia. Ela não é venenosa, e a mesma espécie pode ter grande variedade de cores e padronagens", diz Fiat

    Imagem: Projeto Mantis
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