Kettlyn Vieira passava a noite do dia 7 de outubro de 2019 na casa da professora volante Larisse Moraes, em Porto Alegre. Quase não conseguiu dormir. No dia seguinte, pulou da cama mais cedo que o necessário e colocou a melhor roupa que tinha: um vestido rosa até o joelho e um laço amarelo só de um lado do cabelo. Assim, foi com a professora até prédio do Memorial do Rio Grande do Sul, no centro da capital. Larisse se emociona até hoje ao lembrar do momento em que Kettlyn, trêmula, se posicionou na frente do elevador. O motivo da ansiedade na noite anterior estava logo ali, do outro lado das portas. Finalmente conheceria a escritora mineira Conceição Evaristo, de quem tanto tinha ouvido falar na escola.
Na ocasião, Conceição foi a Porto Alegre para ministrar a oficina "Memórias e Escrevivência", que reúne profissionais da área de educação para falar sobre a inserção de elementos e referências mais diversas no dia a dia de escolas e bibliotecas. 35 mulheres negras foram chamadas para participar da atividade. Kettlyn — à época com 11 anos — era a única criança no meio das adultas convidadas. Conseguiu uma vaga quando a professora Larisse pediu para que colocassem a menina em seu lugar. Os organizadores do evento cederam vaga para as duas.
Os livros da escritora, apresentados por Larisse em sala de aula, provocaram uma revolução na vida de Kettlyn. No dia do encontro, a menina tirou um caderno da mochila. Nele tinha escrito "Poema para Conceição", que declamou pessoalmente para a escritora. O texto segue como uma ode à vida e obra de Conceição Evaristo.
Simples palavras se tornam uma coisa linda
Aprendi a amar com seus contos, suas histórias
Olhos d'água, Becos da Memória
Quando vi suas poesias
comecei a escrever as minhas na mesma hora
Outros nomes de intelectuais negros apareceram com mais frequência nas aulas da "sora", como a menina chama Larisse. O mesmo ocorreu com lugares históricos (principalmente do Rio Grande do Sul) e momentos importantes da Hstória do povo negro. Os "afrobetiza" assim, como a professora define. "Nossa, cara, eu li coisas que nunca achei que ia ler, aprendi o que nunca achei que ia aprender!", conta uma Kettlyn empolgada do outro lado do telefone.
Ações como a da professora Larisse fazem parte de extenso debate sobre a necessidade de repensar o que e como está sendo ensinado em escolas do país. Como afirma a mestre e doutora em Educação, Rita Potyguara, o currículo escolar tem sido pensado não só como um caminho técnico para o aprendizado, mas como um espaço importante para transformar visões de mundo. Descolonizá-lo — ou seja, trazer para a vida escolar conhecimentos, referências e narrativas de outras culturas para além da europeia — resultaria em tornar a escola um espaço "mais plural, dando visibilidade ou reconhecendo a existência das diferentes presenças na sociedade."